SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.18 issue1Interventions for preventing and reducing aggressive behavior as part of teacher trainingSexual violence against children and adolescents: data from a reference service author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.18 no.1 Ribeirão Preto  2010

 

Negligência infantil: estudo comparativo do nível socioecônomico, estresse parental e apoio social

 

Child neglect: a comparative study of socioeconomic level, parental stress and social support

 

 

Marina Rezende BazonI; Ida Leyda Martínez Avila de MelloII; Lílian Paula D. BérgamoIII; Juliana Martins FaleirosIV

IUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto
IIUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto
IIIUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto
IVUniversidade de São Paulo, Ribeirão Preto

Endereço para correspondências

 

 


RESUMO

Apesar de a negligência ser uma das modalidades de maus-tratos mais prevalentes, ela é a menos investigada. O presente trabalho pretende contribuir para uma melhor caracterização e compreensão desse fenômeno, estudando cuidadores notificados por negligência ao sistema de proteção (n = 30), comparando-os a outros, pareados em variáveis sociodemográficas, porém sem histórico de maus-tratos (n = 30). Os participantes responderam a um questionário de caracterização sociodemográfica e econômica e a um concernente à rede e ao apoio social percebido, bem como a uma escala de estresse parental. Os dados foram comparados estatisticamente e indicaram que os cuidadores notificados se distinguiam no sentido de viverem em condições materiais mais adversas, de sentirem mais estresse associado ao papel parental. Isso ocorre devido a uma percepção negativa de si enquanto cuidador, e de se perceberem menos apoiados socialmente, sobretudo pela família extensa, no plano de necessidades subjetivas. Em conjunto, essas características parecem concorrer para o incremento do risco de negligência.

Palavras-chave: Violência Doméstica, Maus-Tratos Infantis, Negligência, Estresse, Apoio Social.


ABSTRACT

Although child neglect is one of the most prevalent modalities of maltreatment, it is the least investigated modality. The present study aims to contribute to a better characterization and comprehension of child neglect, targeting parents who were reported for negligent behavior to protection agencies. These parents (n = 30) were compared to a reference group (n = 30) with no history of maltreatment, but appropriately paired to the former group by socio-demographic variables. Participants answered a socio-demographic and economic questionnaire, as well as another instrument concerning their network and the perceived social support and parental stress scale. The data were statistically treated and indicated that negligent parents lived in more adverse material conditions and suffered more stress than the reference group. It is seems to be associated with negative perceived parental role in terms of subjective needs, and to perceiving themselves with inadequate socially supported, especially by their extended families. Overall, these features seem to contribute to the increased risk of neglect.

Keywords: Domestic Violence, Child Maltreatment, Neglect, Stress, Social Support.


 

 

Entre as inúmeras formas de violência que afetam crianças e jovens, a de natureza interpessoal, praticada em âmbito doméstico, pelos pais e/ou responsáveis, denominada maus-tratos infantis (World Health Organization & International Society for Prevention of Child Abuse and Neglect [WHO & ISPCAN], 2006), é, talvez, a mais devastadora, pelo número de vítimas que faz e pela seriedade de suas consequências.

A negligência é a modalidade entre as diferentes formas de maus-tratos que, segundo a definição proposta pela WHO e ISPCAN (2006), inclui tanto eventos isolados quanto um padrão de cuidado estável no tempo por parte dos pais e/ou outros membros da família, pelos quais esses deixam de prover o desenvolvimento e o bem-estar da criança/adolescente (considerando que poderiam fazer isso) em uma das seguintes áreas: saúde, educação, desenvolvimento emocional, nutrição, abrigo e condições seguras.

Tal problemática foi, durante muito tempo, "negligenciada" pela ciência (Dubowitz, 2007), devido ao fato de ela ser considerada uma questão de menor relevância, sendo confundida frequentemente com a pobreza ou sendo concebida como uma simples consequência dessa.

O tema, contudo, começou a impor-se como objeto de interesse científico em virtude do número de casos que chegavam aos serviços de proteção (Hildyard & Wolfe, 2002). Investigações sobre a incidência e a prevalência de maus-tratos demonstraram que suas taxas eram muito elevadas, algo em torno de 50% do total de casos nos diversos contextos. Encontraram-se, também, indícios de que as taxas da negligência, em comparação às outras modalidades de maus-tratos, cresceriam a taxas mais elevadas (Sedlak & Broadhurst, 1996) e de que ela se caracterizaria por um maior nível de reincidência (Jonson-Reid, Drake, Chung & Way, 2003). Em paralelo, algumas investigações sobre o impacto dos maustratos no desenvolvimento infantil também revelaram a existência de prejuízos sérios associados à negligência crônica (Glaser, 2002) e sua forte associação com óbitos na primeira infância (Berkowitz, 2001).

Assim, nas últimas duas décadas, em âmbito internacional, houve um maior investimento em pesquisas referentes, especificamente, à negligência infantil, e em países como o Canadá, a partir de 1998, a implementação de pesquisas específicas foi recomendada e apoiada pela Agência de Saúde Pública daquele país (Public Health Agency of Canada [PHAC], 2000). Nesse contexto, Lacharité (2005) argumentou em prol da importância de se obter informações que permitam diagnosticar e tratar a negligência infantil adequadamente, considerando sua magnitude e o fato de ela, além das consequências negativas diretas, se constituir em um fator de risco para as outras modalidades de maus-tratos.

No Brasil, mesmo frente às indicações de a negligência ser uma problemática de grande magnitude (Bazon, 2008), a necessidade de tornar a negligência um tema de maior interesse acadêmico-científico ainda é premente1. É preciso, contudo, frisar que o desafio de estudar o fenômeno da negligência é significativo. Sua compreensão é limitada pela complexidade daquilo que a constitui e, por consequência, pela dificuldade de obter uma operacionalização satisfatória do constructo que permita sua identificação e mensuração (Zuravin, 1999).

Nesse sentido, a obtenção de informações sobre os fatores associados à negligência, quando a problemática é identificada e assinalada na comunidade em que vive a família, é um bom meio para se aproximar de uma melhor compreensão do fenômeno e obter informações sobre variáveis que poderão servir ao teste de uma teoria etiológica no futuro (Schumacher, Slep & Heyman, 2001). Investigações implementadas com base nesse paradigma têm oferecido informações sobre um número significativo de elementos associados à produção da negligência, denotando que as condutas negligentes devem ser entendidas a partir da interinfluência exercida entre a criança, os pais (e a família, num sentido mais amplo) e o entorno social no qual estão inseridos (Lacharité, 2005; WHO & ISPCAN, 2006).

Por meio de um estudo de revisão da literatura sobre fatores de risco específicos à negligência, Schumacher et al. (2001) destacam os que parecem efetivamente associados à produção do problema. No plano sociodemográfico, quando comparadas a famílias não negligentes, as negligentes apresentariam um número maior de gestações, sendo estas, muitas vezes, resultado de concepções não planejadas, e se caracterizariam por ter maior dificuldade econômica, vivendo em condições mais adversas, geralmente com a ajuda de benefícios sociais. Em termos psicológicos, os cuidadores apresentariam uma autoestima menos elevada e uma maior impulsividade, sendo diagnosticados mais frequentemente pelo uso abusivo de álcool e outras drogas e, em termos psicossociais, viveriam mais intensamente uma falta de apoio social e se ressentiriam mais de estresse associado à vida cotidiana, incluindo aí o decorrente do cuidado da criança. No que concerne ao comportamento, destacar-se-ia o fato de as mães negligentes parecerem interagir menos frequente e positivamente com os seus filhos, e estes engajar-se-iam mais em problemas de comportamento.

No panorama delineado pelo conjunto dessas variáveis, as de natureza psicossocial teriam especial relevância em virtude de seu peso na discriminação de grupos de cuidadores negligentes. Estes, devido às suas limitadas habilidades de adaptação e poucos recursos pessoais, frente às diversas pressões ambientais e ao isolamento social, apresentariam dificuldade para a emissão de comportamento responsivo às necessidades básicas da criança (Corconran, 2000; Dufour & Chamberland, 2003). Segundo Lacharité (2005), essa dinâmica concorreria para a manifestação de problemas na interação com a criança e com o entorno comunitário.

Assim, diante da necessidade irrefutável de também colocar a negligência na agenda dos investimentos acadêmico-científicos, em âmbito nacional, com vistas a melhor compreensão do fenômeno, em nosso contexto, desenvolveu-se a pesquisa aqui relatada, cujo objetivo principal foi o de investigar sua relação com variáveis de natureza psicossocial, especificamente o estresse parental e o apoio social, e com variáveis de contexto de vida, relacionadas às condições socioeconômicas da família (situação empregatícia, poder aquisitivo e condições de moradia), comparando dois grupos, um notificado por negligência, ao Conselho Tutelar (grupo clínico), e um grupo de comparação.

Hipotetiza-se que as famílias em que se verificam problemas nos cuidados com os filhos, tal como a negligência, tendam a viver em condições materiais mais adversas, geradoras de tensões que, no cotidiano, se acresceriam às geradas pela própria prática parental (Kazdin & Whitley, 2003). Verificar-se-ia, então, um ciclo em que o estresse diminuiria a disponibilidade emocional e dificultaria o desenvolvimento e/ou a implementação de habilidades para a criação/socialização dos filhos, o que, em seu turno, incrementaria o estresse experimentado, resultando em um desengajamento do cuidador em relação às responsabilidades parentais.

Tal situação seria atenuada caso pudessem contar com uma rede que lhe provesse com apoio material, emocional e afetivo de modo a satisfazer suas necessidades, posto que "dispor de alguém que ofereça ajuda ou apoio em situações de necessidade pode facilitar o enfrentamento de problemas e diminuir os efeitos negativos de situações estressantes, favorecendo a saúde e o bem-estar emocional" (Griep, Chor, Faerstein & Lopes, 2003, p. 626). Entretanto, na negligência, paradoxalmente a rede social seria mais frágil e/ou o apoio social seria percebido pelos cuidadores como menos provedor de ajuda.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo 60 adultos, pais ou responsáveis, dos quais 30 haviam sido notificados por negligência aos Conselhos Tutelares da cidade de Ribeirão Preto-SP (Grupo Clínico - GCl) e 30 não tinham histórico de maus-tratos contra os filhos (Grupo de Comparação - GC).

Os participantes do GCl foram recrutados por meio de um levantamento, realizado entre julho e outubro de 2006, das notificações registradas nos Conselhos Tutelares como negligência, entre os anos de 2004 e 2006, identificando-se e retendo-se aquelas que, após estudo, descreviam uma problemática equivalente ao conceito de negligência adotado no estudo. Cumpre informar que os casos remetiam a situações em que as crianças haviam evadido a escola sem justificativa, padeciam da falta de acompanhamento médico, sem vacinação, ou haviam sofrido acidentes domésticos graves, por terem sido deixadas sozinhas, sem supervisão.

Após a seleção dos casos, deu-se início ao contato com as famílias notificadas, munido de uma carta de apresentação fornecida pelo Conselho Tutelar, esclarecendo aos responsáveis a finalidade do contato e explicitando a inexistência de vínculo entre a pesquisa a ser realizada e as tomadas de decisão e ações do Conselho. Do total de casos inicialmente selecionados (136), tentou-se o contato com 87 para conseguir realizar 32 entrevistas, tendo-se deparado com 13 recusas e 42 casos cujos envolvidos não foram localizados nos endereços indicados.

Coletados os dados com o GCl, as informações de natureza sociodemográficas foram organizadas de modo a criar parâmetros para o recrutamento dos participantes do GC, visando emparelhar sujeito a sujeito. Assim, o GC foi formado por conveniência, a partir de indicações de profissionais da área da assistência social do município, de adultos/responsáveis que residiam nas mesmas regiões e bairros que os do GCl, mas que em suas avaliações eram adequados nos cuidados despendidos aos filhos, e não possuíam histórico oficial de maus-tratos. Para a constituição do GC, de modo a emparelhar 30 sujeitos com os 30 do GCl, foram necessárias a realização de 42 entrevistas, realizadas entre abril e junho de 2007.

Em síntese, os grupos não se diferenciaram significativamente em termos das características sociodemográficas controladas: 93% dos participantes, tanto no GCl como GC, eram do sexo feminino; 67%, em ambos os grupos, possuíam um companheiro(a) estável por ocasião da pesquisa e, portanto, 33% não possuíam companheiro, estando sozinhos à frente da família; a idade média no GCl foi de 36,9 anos e 36,7 anos no GC; em média, o número de anos de estudo no GCl foi de 6,9, ao passo que no GC foi de 7,8; e o número de crianças sob a responsabilidade, em média, no GCl era de 2,6, sendo a idade média destas de 7,9 anos, enquanto no GC a média de crianças era de 2,1, com idade média de 8,1 anos.

Instrumentos

Para a realização do presente estudo foram utilizados os seguintes instrumentos:

1) Questionário de Caracterização Sociodemográfica da Família, elaborado com base no modelo proposto por Bringiotti (1999), que visa a obtenção de informações que possibilitem uma caracterização do respondente em termos de idade, sexo, nível educacional, estado civil, número de filhos ou crianças sob os cuidados e idade das crianças, além de buscar por informações sobre as condições de vida, como situação empregatícia, número de moradores na mesma residência, número de cômodos da casa e impressão do bairro de residência.

2) De modo complementar, empregouse também o crivo Critério de Classificação Econômica Brasil - CCEB -, desenvolvido a partir de um estudo realizado com base no banco de dados do LSE - Levantamento Sócio-Econômico -, de 1993 do IBOPE (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa [ABEP], 2003). Tal instrumento caracteriza-se como um check-list, pelo qual se verifica a posse de determinados objetos ou bens de consumo e o grau de instrução do chefe da família. Tais informações possibilitam classificar a família, em termos econômicos, em classes que vão de A1 a E, conforme o total de pontos alcançados (de 0 a 34).

3) Uma versão do Parenting Stress Index (Abidin, 1990), o Índice de Estresse Parental - ISP -, validada para o Brasil semanticamente e também em termos de conteúdo por Dessen e Bigras (2000), a partir da versão adaptada para Québec-Canadá (Bigras & LaFrenière, 1995). Sua função é avaliar o componente de estresse presente nas interações pais-criança, considerando as características de temperamento e de comportamento da criança, a percepção dos pais a esse respeito, bem como as características de personalidade dos pais. É composto por treze variáveis, das quais quatro se referem às características de temperamento da criança e compõem a dimensão "Criança Difícil" (adaptabilidade, exigência, humor, hiperatividade), e duas se referem às expectativas dos pais quanto à criança, seja com relação à possibilidade de ser recompensado por ela, seja com relação à conformidade da criança a uma imagem idealizada (aceitabilidade e reforço), compondo a dimensão "Interações Disfuncionais"; três se referem à personalidade dos pais (depressão, sentimento de competência e apego parental) e integram a dimensão "Sofrimento Parental" em relação à qual também integram quatro variáveis situacionais (a relação dos pais com seu cônjuge, o apoio social disponível, a saúde dos pais e a restrição causada pela função parental).

O Inventário é constituído por 36 afirmações e as respostas são ajustadas a uma escala do tipo Likert: concordo completamente (1), concordo (2), não tenho certeza (3), discordo (4), e discordo completamente (5). As respostas são corrigidas pontuando-as de forma invertida, ou seja, quem responde 1 pontua 5, 2 pontua 4, e assim por diante, de forma que o escore total pode variar de um mínimo de 94 pontos (baixo estresse) a um máximo de 117 pontos (alto estresse).

4) Questionário de Apoio Social - QAS, adaptado a nossa realidade por pesquisadores do "Estudo Pró-Saúde" (Chor, Griep, Lopes & Faerstein, 2001). Avalia o grau com que várias facetas do apoio são percebidas como de ajuda para o indivíduo, sendo estas: a emocional, a de informação, a afetiva, a de interação positiva e a material. Também avalia a rede social, ou seja, a quantidade de pessoas com as quais o indivíduo mantém contato ou alguma forma de participação social.

A versão adaptada por Chor et al. (2001) é composta por 24 perguntas, sendo cinco relacionadas ao conceito de rede social e 19 relacionadas ao conceito de apoio social. As respostas dos participantes quanto ao apoio social são ajustadas a uma escala de frequência: nunca (1), raramente (2), às vezes (3), quase sempre (4), sempre (5), de forma que a soma das respostas indica o nível de apoio total do participante, cujo escore pode variar de 19 a 95. Tratando especificamente das dimensões que compõem o apoio social, as referentes ao apoio material, emocional, de informação e de interação social positiva agregam quatro questões em cada uma delas, sendo a pontuação mínima de quatro e a máxima de 20. Somente na dimensão de apoio afetivo, que agrega três questões, a pontuação mínima é 3 e a máxima é 15. A dimensão de apoio material refere-se à provisão de recursos e de ajuda material; o afetivo está ligado às demonstrações físicas de amor e de afeto por parte de outras pessoas; o emocional diz respeito às expressões de afeto positivo, de compreensão e de sentimentos de confiança; o apoio de informação refere-se à disponibilidade de outras pessoas para fornecer orientações; e o de interação social positiva relaciona-se ao apoio recebido no sentido da interação e da disponibilidade das pessoas para a diversão e situações prazerosas.

Procedimentos de coleta e análise de dados

O projeto relativo ao estudo aqui relatado foi submetido e aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos (Processo CEP-FFCLRP nº 258/2006 - 2006.1.828.59.6). Assim, para o contato com os potenciais participantes de ambos os grupos, dispunha-se de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que era apresentado de modo a solicitar sua colaboração com a pesquisa. Na medida em que se obtinha o aceite, o participante era convidado a responder aos instrumentos imediatamente ou, dependendo de sua vontade, agendava-se um outro dia e horário.

Todos os participantes foram contatados em suas residências, e as entrevistas deram-se nesse contexto, com uma duração média de aproximadamente uma hora e trinta minutos cada.

As respostas fornecidas pelos participantes aos instrumentos padronizados - ISP e QAS - foram corrigidas seguindo suas normas técnicas. As fornecidas ao Questionário de Caracterização foram analisadas e convertidas em categorias numéricas, assim como a avaliação feita com a aplicação do Critério Brasil. Todos os dados (sujeito a sujeito) foram compilados em uma planilha no software Windows Excell, de modo a calcular as médias e os desvios-padrão e proceder às análises estatísticas, visando averiguar diferenças significativas entre os grupos (p < 0,05). Utilizou-se o programa Jandel SigmaStat (Statistical Software 2.0), empregando o teste t de Student para amostras independentes (quando a distribuição da variável era considerada normal) ou Mann-Whitney Rank Sum test (quando a distribuição não era normal).

 

Resultados

Embora se tenha trabalhado com participantes semelhantes em termos de sexo, idade, nível de escolaridade, situação conjugal e número e idade de crianças sob a responsabilidade, verificou-se a existência de diferenças significativas entre os grupos, em variáveis sociodemográficas que caracterizam as condições concretas de vida das famílias, indicando que as de GCl vivem em condições materiais mais adversas que as de GC.

Em primeiro lugar, tendo-se sondado a impressão do bairro de residência junto aos participantes, considerando os serviços disponíveis e a qualidade de relacionamento com a vizinhança, encontrou-se resultados que indicam uma diferença significativa entre os grupos, tendo o GCl uma média inferior ao de GC (6,10 ± 2,60 e 7,80 ± 2,19, respectivamente), o que remete a uma impressão menos favorável do contexto de residência naquele, apontando para uma menor satisfação com o local em que mora.

Em segundo lugar, destaca-se o fato de as famílias dos participantes do GCl, embora constituídas por um número de membros equivalente às de GC (4,80 ± 2,90 e 4,23 ± 1,19, respectivamente), viverem em residências com menos cômodos que as de GC (3,83 ± 1,12 e 4,73 ± 1,14, respectivamente), o que denota condições de moradia menos favoráveis às famílias acometidas pela problemática da negligência.

Pesquisou-se, também, a situação empregatícia dos respondentes. Os resultados obtidos foram classificados de acordo com as seguintes categorias: "do lar"; "desempregado"; "afastado"; "prestação de serviços" (quando se tratava de algum tipo de serviço subordinado a uma empresa); "comerciário" (quando o participante estava ligado a uma empresa cujo produto é sujeito a venda); e "geração de renda" (quando o participante era autônomo e seu produto era passível de venda ou se constituía em um serviço). A Tabela 1 apresenta o resultado dessa classificação em frequências e porcentagens, na qual se destaca a proporção de participantes desempregados (53,3%) no GCl, em comparação à do GC (13,3%), sendo que neste grupo a maioria dos participantes encontrava-se empregado, estando ligados a funções relacionadas à prestação de serviços (50%).

Quanto a possibilidade de essas famílias obterem itens de consumo associados ao conforto, a avaliação com o "Critério Brasil" indicou a existência de diferença significativa entre grupos, tendo o GCl (8,67 ± 2,51) um poder inferior ao do GC (13,30 ± 3,17). Vale lembrar que houve uma tentativa inicial de estabelecer equivalência entre os grupos estudados, em termos socioeconômicos, recrutando-se os participantes de ambos nas mesmas regiões/bairros. Contudo, verificou-se uma maior concentração de respondentes do GCl em categorias correspondentes às classes economicamente mais desfavorecidas (80% na classe D, 17% na classe C e 3% na classe E), ao passo que os de GC, comparativamente, situavam-se majoritariamente em classes mais favorecidas (67% na classe C, 17% na classe B2 e apenas 16% na classe D).

No que tange às características de natureza psicossocial, a Tabela 2 sintetiza os resultados referentes ao ISP, destacando-se as diferenças significativas entre os dois grupos avaliados.

Pelo exposto acima, destaca-se, primeiramente, o fato de o GC ter obtido um escore total muito próximo do mínimo em termos da pontuação relativa ao índice de estresse parental, ao passo que GCl apresenta um escore 8 pontos acima, o que indica a experiência de mais estresse neste grupo, embora tal diferença não seja estatisticamente significativa.

Os grupos diferenciam-se significativamente somente na dimensão referente aos Pais (Sofrimento Parental), com o GCl apresentando um nível de estresse maior associado ao funcionamento parental, lembrando que essa dimensão avalia sentimentos de competência e de apego parental, bem como o nível de depressão (GC = 31,73 ± 6,78 < GCl = 35,67 ± 8,04).

No que concerne aos resultados referentes à avaliação da rede e do apoio social, a Tabela 3, sintetiza-os, indicando as diferenças significativas entre os dois grupos.

Destaca-se o fato de haver diferenças significativas entre os dois grupos no tocante ao tamanho da rede, considerando-se que o número de pessoas da família extensa com o qual os membros de GCl podem contar é significativamente menor do que o do GC, ainda que não haja diferença entre eles no que se refere ao número de amigos (não parentes) que constituem suas redes.

Com relação ao apoio social recebido, segundo a percepção dos respondentes, não há diferença significativa entre GC e GCl apenas no que se refere ao apoio material recebido. Em todas as outras dimensões os grupos se distinguem, inclusive no escore total.

 

Discussão

Os resultados obtidos com a presente investigação permitem afirmar que os respondentes das famílias notificadas por negligência infantil, em comparação aos das famílias do grupo de comparação, apresentam determinadas características sociodemográficas e psicossociais que os diferenciam. Primeiramente, o contexto em que vivem esses cuidadores pode ser considerado mais adverso, sobretudo no que se refere às condições materiais de sobrevivência. Apesar da tentativa de pareamento entre os grupos estudados, os resultados indicaram que o grupo notificado por negligência se caracteriza por ser constituído por famílias mais pobres, pertencendo, em geral, a classes que experimentam maiores dificuldades econômicas (classes D e E) e por um número maior de participantes desempregados, condição que restringiria a perspectiva de alteração de tais condições materiais de vida.

Em se tratando da negligência, é preciso cogitar a eventual confusão entre condição de pobreza da família e a problemática em si. Na linha do que colocam Dubowitz, Black, Starr e Zuravin (1993), uma criança que não esteja tendo suas necessidades atendidas devido à condição de pobreza de sua família estaria vivendo negligência "estatal", apoiados na concepção ampla de que esta se dá "quando as necessidades básicas das crianças não são atendidas, qualquer que seja a causa" (Dubowitz et al., 1993, p. 12).

A perspectiva adotada no presente estudo é, todavia, a de que a pobreza e a negligência se distinguem, embora estejam bastante associadas. A relação que talvez explique a associação entre níveis socioeconômicos mais baixos e negligência é a de que as desvantagens criadas por tais condições concretas sejam menos favoráveis ao desenvolvimento humano (Schumacher et al., 2001). Em âmbito nacional, autores como Azevedo e Guerra (1989) também julgam importante diferenciar a negligência da pobreza, indicando a necessidade de observar se falhas nos cuidados infantis resultam ou não de condições de vida, além do controle dos responsáveis. Nessa mesma direção, Crittenden (1999) argumenta que a negligência ocorre também em famílias que não têm dificuldades econômicas e que, por isso, ela se refere mais propriamente a déficits de habilidades/comportamentos parentais, acontecendo independentemente das condições materiais.

Segundo Oliveira-Formosinho e Araújo (2002), as dificuldades econômicas e a má gestão dos recursos econômicos familiares revelam-se como fatores fortemente associados ao problema quando relacionados a outras variáveis. Assim, a avaliação de outros aspectos psicossociais é necessária para obter informações mais refinadas, para uma melhor compreensão da dinâmica da negligência e, também, para poder distinguir o fenômeno em meio a situações de miserabilidade econômica.

Nesse sentido, no presente estudo, destaca-se o fato de os cuidadores considerados negligentes, além de disporem de menos dinheiro para a aquisição de bens relacionados ao conforto, viverem em casas em situação de aglomeração, inferida pelo cruzamento entre as variáveis "números de cômodos", significativamente menor, e "número de pessoas residentes no mesmo espaço", ligeiramente maior, o que é apontado pela literatura como fator de aumento de tensões na família (Manso, 2002). Ademais, os participantes desse grupo encontrar-se-iam mais insatisfeitos com o local de suas residências, considerando-se o entorno, em termos de vizinhança e de disponibilidade de serviços, menos satisfatório. Sabe-se que a satisfação com o entorno de moradia tem uma impacto positivo na saúde e no bem-estar dos indivíduos, pois as interações sociais com os membros e as organizações da comunidade se constituem em fonte potencial de apoio, por ser um contexto em que pessoas podem obter informações e ajuda, e por suscitarem o sentimento de pertença e de integração a uma comunidade mais ampla (Cohen, Underwood & Gottlieb, 2000). O contrário disso implicaria num isolamento social da família, com chances de afetar negativamente a saúde e o bem-estar de seus membros. Nessa direção, há indicações quanto ao fato de mães notificadas por negligência contarem com menos apoio de redes sociais formais e informais, descrevendo seus vizinhos como menos amigáveis e disponíveis e de elas parecerem efetivamente mais "ilhadas" em seu entorno social (e pelo entorno, por serem percebidas como inadequadas), o que dificulta o estabelecimento de relações de reciprocidade e o próprio acesso aos apoios comunitários (Polansky, Gaudin, Ammons & Davis, 1985).

Nesse panorama de dificuldades materiais e relacionais, acrescentar-se-iam as tensões geradas pela própria criação dos filhos. Pela perspectiva aqui adotada, o impacto dessa fonte de estresse, para os cuidadores, dependeria, entretanto, de suas percepções de si mesmos como educadores, de suas interações com a criança e das características desta. Com base nos resultados obtidos com a aplicação do ISP, pode-se afirmar que os dois grupos estudados diferenciam-se no plano da percepção de si, como cuidadores, na medida em que a comparação destes na dimensão Pais (Sofrimento Parental) indicou que os cuidadores notificados por negligência apresentariam um estado de depressão relacionado ao sentimento de incompetência parental mais significativo.

Ainda que o escore total do ISP não tenha indicado diferença entre os grupos, em termos de níveis de estresse parental, é preciso considerar, segundo os apontamentos do próprio instrumento (Abidin, 1990), que os cuidadores com pontuação distintiva na dimensão dos Pais (Sofrimento Parental) padeceriam por se sentirem "desgastados" e "esmagados", com baixa autoestima, receosos de sua falta de competência em fornecer o necessário para suas crianças e experimentando, por isso, o estresse. Quanto mais intenso o sentimento de depressão gerado pela percepção negativa de si enquanto cuidador, maior seriam a culpabilidade e a insatisfação pessoal e menor a capacidade para mobilizar energias para os cuidados com a criança. Tais características propiciariam a instalação de um quadro de apatia, sendo que vários pesquisadores identificaram essa condição à própria situação de negligência (DiLauro, 2004; DePanfilis & Dubowitz, 2005; Zielinski & Bradshaw, 2006; Dubowitz & Bennett, 2007). Colocando de outro modo, maiores escores no plano do "Sofrimento Parental" indicariam a experimentação de sentimentos de incompetência mais intensos (relativos à sensação de ter habilidades limitadas de manejo dos comportamentos da criança e de não ser reforçado pela criança nas habilidades possuídas) e, consequentemente, de menor apego (relacionado à vivência de uma distância afetiva em relação à criança, o que caracterizaria relações marcadas por poucas trocas ou pela falta de habilidade para detectar e compreender os sinais e as necessidades da criança).

Em uma investigação semelhante a aqui apresentada, DiLauro (2004), utilizando também o ISP, relata que os pais que negligenciavam seus filhos também obtiveram resultados que os diferenciavam no ISP, especialmente no domínio dos Pais (Sofrimento Parental), corroborando nossos resultados. Estudos sobre características psicológicas de pais que maltratam indicam que, de forma geral, estes tendem a fazer cobranças irreais a si próprios e também aos filhos, o que os conduz ao sentimento de depressão e infelicidade (Brown, Cohen, Johnson & Salzinger, 1998; Hildyard & Wolfe, 2002; Gracia, 2002; Scannapieco & Connell-Carrick, 2002; Guterman & Lee, 2005).

Deve-se esclarecer que o domínio dos Pais no ISP, além de oferecer informações sobre características de personalidade destes, também dá elementos para refletir sobre a competência parental, de fato (Abidin, 1990). Com isso, pode-se considerar que os cuidadores negligentes talvez padeçam de uma falta real de conhecimento prático relacionado ao desenvolvimento da criança e, por consequência, de dificuldades de manejo do comportamento infantil, ou de uma inabilidade em perceber com precisão os sentimentos e as necessidades dos filhos.

Segundo a literatura, o impacto do estresse numa família seria, contudo, moderado por outras variáveis de natureza psicossocial, como o apoio social fornecido por pessoas e/ou grupos de convivência (Dunst, Trivette & Cross, 1986). Estudos específicos na área dos maus-tratos demonstraram que o apoio social funciona como um fator de proteção, provavelmente por aplacar o impacto dos acontecimentos estressantes da vida (Kotch, Browne, Ringwalt, Dufort & Ruína, 1997; McLewin & Muller, 2006). Assim, ganham sentido os resultados obtidos junto aos grupos no que concerne à rede e ao apoio social. Nesse quadro, destaca-se, em primeiro lugar, a diferença significativa entre os dois grupos quanto à rede social, ou mais especificamente quanto à rede de parentes, em virtude da qual pode-se afirmar que a rede de GCl conta com um menor número de pessoas oriundas da família extensa, com as quais pode contar (em média duas, ao passo que em GC conta-se com, em média, o dobro). Corroborando tal achado, os estudos de Manso (2002) e Zielinsky e Bradshaw (2006) verificaram que nas famílias com situações de abandono físico as relações sociais dos cuidadores eram escassas ou mesmo nulas no âmbito da família extensa, sendo essas geralmente marcadas por conflitos constantes. Como consequência, os cuidadores, nessas famílias, mostrar-se-iam reticentes na hora de solicitar ajuda junto aos parentes. Na mesma direção, investigando o conceito de apoio social em famílias negligentes, Kotch et al. (1997) verificaram que havia mais hostilidade e rejeição nos relacionamentos dentro da família extensa.

Retoma-se o fato de os grupos estudados se distinguirem na maior parte das dimensões do apoio social, denotando que os cuidadores notificados por negligência se percebem como tendo menos apoio afetivo, relacionado às demonstrações físicas de amor e afeto; menos apoio emocional, associado à experiência de afeto positivo, compreensão e sentimentos de confiança; menos apoio informacional, relativo à disponibilidade das pessoas para oferecerem orientação; e menos apoio de interação social positiva, relacionado à disponibilidade das pessoas para juntas se divertir e relaxar. Os grupos não apresentariam diferenças somente em termos de apoio material percebido, indicando que o notificado por negligência, no tocante ao auxílio relacionado a aspectos concretos da vida, perceber-se-ia tão apoiado quanto o grupo de comparação.

Assim, o problema maior, nas famílias negligentes, parece referir-se à percepção de uma indisponibilidade do outro no tocante à satisfação de suas necessidades de natureza subjetiva. Considerando que a rede de apoio social em ambos os grupos se difere no que se refere à "família", mas não no que diz respeito a "amigos", pode-se pensar, no caso, que a falta de apoio ressentida decorre da existência de problemas relacionais com a família extensa e do fato de o relacionamento com os amigos não se desenvolver a ponto de atender às demandas de apoio outras, que não as de ajuda material/instrumental. É importante mencionar que no estudo de revisão realizado por Heyman e Slep (2000) ressalta-se que os dados das investigações vão, basicamente, na mesma direção, denotando que as famílias que maltratam os filhos geralmente se ressentem de um apoio emocional de baixa qualidade, embora não se distingam no tocante ao suporte instrumental, ou seja, em termos de ajuda concreta, relacionada a empréstimo de recursos financeiros e/ou auxílio para a realização de tarefas. As famílias que maltratam tendem a se perceberem tão apoiadas quanto outras famílias, mas em termos do apoio relativo às necessidades de escuta, de companhia e de diálogo para refletir sobre tomadas de decisão, elas vivenciam um déficit.

 

Considerações finais

À guisa de síntese, pode-se afirmar que a investigação implementada contribuiu no sentido de oferecer pistas para uma melhor compreensão do fenômeno da negligência, na medida em que as hipóteses traçadas no início da investigação se verificaram parcialmente. Os resultados obtidos relacionados à negligência infantil, em conjunto, esboçaram uma dinâmica em que os cuidadores dessas famílias, na maioria das vezes, viveriam situações de maior dificuldade, algumas objetivas, relacionadas a condições concretas de vida, outras relativas aos relacionamentos interpessoais, especialmente com os membros da família extensa, considerando-se poder contar com um número muito reduzido de parentes. A rede social de apoio, constituída mais propriamente por amigos, seria provedora de auxílio material, mas faltante em termos de apoio às necessidades subjetivas, em suas percepções. Por consequência, eles se sentiriam emocionalmente desamparados (solitários) para fazer face a determinadas adversidades inerentes ao desempenho do papel parental, para o qual perceber-se-iam como incompetentes. Nesse contexto, tais cuidadores tornar-se-iam apáticos ou passivos frente às demandas relacionadas ao cuidado das crianças. Eles apresentariam dificuldades para implementar certas habilidades requeridas para a criação de filhos ou para buscar a ajuda necessária e ativar os recursos na rede de apoio, que poderiam vir ao seu encontro para responder às suas necessidades e às das crianças sob a sua responsabilidade.

Chama a atenção o fato de o grupo clínico aqui estudado não apresentar diferenças significativas mais marcantes, em comparação ao grupo controle, no plano da vivência de estresse parental, de modo maisgeneralizado. É possível que tal resultado se deva à natureza das questões inerentes ao instrumento utilizado, o Inventário de Estresse Parental (ISP), que se atém basicamente à pesquisa de informações relativas ao componente psicológico do fenômeno que, por se constituírem em sinais mais sutis, são mais difíceis de serem avaliados pelo respondente, em si mesmo, em comparação a sinais de ordem física (Lipp & Malagris, 2001).

Além disso, pode-se remeter, para a explicação de tal resultado, ao significado das dimensões nas quais não se verificou diferenças entre os grupos: Criança Difícil e Interações Disfuncionais. Considerando que a negligência se refere a um desengajamento emocional e comportamental do cuidador, é possível que os participantes notificados por negligência não tenham se destacado no que se refere à avaliação negativa da criança devido à dificuldade de levar em conta os aspectos demandados pelo instrumento (como o nível de adaptabilidade da criança, a existência de variações de humor nela, seu grau de atividade motora e de exigência de atenção/cuidado), oriunda do distanciamento existente entre eles. Nessa mesma direção, eles tampouco teriam capacidade para expressar expectativas não atendidas pela criança, pelo fato de não terem expectativas.

Tal raciocínio, entretanto, impõe novas e mais complexas indagações à pesquisa, tendo em vista que os casos mais graves de negligência se caracterizam pelo agravamento e pela cronicidade do padrão de interação disfuncional, no sentido de o desengajamento emocional e comportamental ir aumentando ao longo do tempo. Dentro disso, uma pergunta seria: a ausência de estresse relacionada à avaliação e às expectativas com relação à criança comporia, de fato, a dinâmica do problema, ou isso dependeria da fase de estruturação do mesmo? Será muito importante, em estudos futuros, adotar uma abordagem desenvolvimental para o estudo do fenômeno.

Ainda concernindo à variável estresse, considera-se que teria sido muito útil, também, ter lançado mão de um instrumento de avaliação mais abrangente, com capacidade de abordar o fenômeno pela via dos indicadores de natureza física (e não somente por meio do componente psicológico), e de averiguar sua presença (ou não) de forma mais ampla, ou seja, de modo menos específico, como o faz o ISP, ao centrar a investigação sobre a presença de estresse associado ao desempenho do papel parental. Nesse sentido, ter-se-ia obtido mais informações para subsidiar com mais propriedade a discussão em torno da hipótese levantada no estudo, de a negligência decorrer, em parte, da presença de estresse excessivo, oriundo não só do exercício da parentalidade, mas também de condições de vida adversas, face à escassa disponibilidade de apoio social.

Ademais, o estudo também indicou a possibilidade de os cuidadores notificados por negligência terem, de fato, menos habilidades para lidar com os desafios da criação/educação dos filhos. Dentro disso, teria sido muito interessante dispor de um instrumento com capacidade de avaliar aspectos relativos aos comportamentos e às atitudes dos cuidadores.

Visando superar esses limites apontados, novas pesquisas deverão incluir outros instrumentos de investigação, como o Inventário de Sintomas de Estresse, construído por Marilda Novaes Lipp, em 2000, e o de Estilos Parentais, construído por Paula Gomide, em 2006, levando-se em conta a natureza das informações que tais instrumentos podem levantar, sendo ambos brasileiros e possuírem boas qualidades psicométricas adequadas.

No que respeita à variável rede e apoio social, a despeito de os resultados encontrados com o instrumento empregado terem ido ao encontro do hipotetizado inicialmente, vale lembrar que tal instrumento trata de informações fornecidas pelos próprios participantes, baseados em suas próprias percepções. Se, por um lado, esse aspecto é uma qualidade do instrumento, sobretudo no que se refere à avaliação do apoio recebido, na medida em que este, de fato, só faz sentido do ponto de vista de quem está sendo indagado, por outro lado, ele não provê informações sobre a existência ou não de recursos humanos e/ou institucionais, na comunidade dos participantes, e a disponibilização efetiva de apoio social. Ou seja, com o instrumento que foi utilizado, não se sabe se o apoio social, nas várias modalidades tratadas, não é oferecido ou se os participantes notificados por negligência têm dificuldades de reconhecer e/ou aproveitar o apoio oferecido (ou tal como ele é oferecido). A consideração dessa nuance em pesquisas futuras poderá acrescentar novos elementos à compreensão do problema.

De forma geral, acredita-se que estudos com delineamento metodológico mais sofisticado também deverão ser implementados, visando investigar a pertinência da dinâmica aqui esboçada, testando a relação de interdependência entre as variáveis estudadas, e acrescentando outras, consideradas como risco para a negligência, de modo que a complexidade do modelo em estudo se aproxime mais e melhor daquela que caracteriza a realidade em foco.

 

Referências

Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (2003). Critério de Classificação Econômica Brasil. Disponível em: <www.abep.org>. Acesso em: jan. 2006.         [ Links ]

Abidin, R. R. (1990). Parenting Stress Index-manual. Charlottesville: Pediatric Psychology Press, Third Edition.         [ Links ]

Azevedo, M. A., & Guerra, V. N. A. (1989). Crianças Vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo: Iglu.         [ Links ]

Bazon, M. R. (2008). Violências contra crianças e adolescentes: análise de quatro anos de notificações feitas ao Conselho Tutelar na cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 24, 323-332.         [ Links ]

Berkowitz, C. (2001). Fatal child neglect. Advances in Pediatrics, 48, 331-361.         [ Links ]

Bigras, M., & LaFrenière, P. J. (1995). Índice de Stress Parental. Manuel d 'utilisation. Complément francophone à l'édition américaine. Toronto: Multi-Healthy System.         [ Links ]

Bringiotti, M. I. (1999). Maltrato Infantil. Madrid: Miño e Dávila editores.         [ Links ]

Brown, J., Cohen, P., Johnson, J. G., & Salzinger, S. (1998). A longitudinal analysis of risk factors for child maltreatment: findings of a 17-year prospective study of officially recorded and self-reported child abuse and neglect. Child Abuse & Neglect, 22(11), 1065-1078.         [ Links ]

Chor, D.; Griep, R. H. ; Lopes, C. S., & Faerstein, E. (2001). Medidas de rede e apoio social no Estudo Pró-Saúde: prétestes e estudo piloto. Cadernos de Saúde Pública, 4 (17), 887-896.         [ Links ]

Cohen, S., Underwood, L. G., & Gottlieb, B. H. (2000). Social Support Measurement and Intervention: A Guide for Health and Social Scientists. Oxford: Oxford University Press.         [ Links ]

Corconran, J. (2000). Family interventions with child physical abuse and neglect: a critical review. Children and Youth Services Review, 22(7), 563-591.         [ Links ]

Crittenden, P. M. (1999). Child Neglect: Causes and Contributors. In H. Dubowitz (Ed.). Neglected Children. Research, Practice and Policy (pp.47-68). Thousand Oaks, CA: Sage Publications.         [ Links ]

Dessen, M. A., & Bigras, M. (2000). As crianças pré-escolares com problemas de comportamento e suas famílias: identificação de fatores de risco (processo 523059/96-5). Brasília, DF: CNPq.         [ Links ]

DePanfilis, D., & Dubowitz, H. (2005). Family Connections: A Program for Preventing Child Neglect. Child Maltreatment, 10(2), 108-123.         [ Links ]

DiLauro, M. (2004). Psychosocial factors associated with types of child maltreatment. Child Welfare, 83(1), 69-99.         [ Links ]

Dubowitz, H., Black, M., Starr, R. H. J., & Zuravin, S. (1993). A conceptual definition of child neglect. Criminal Justice and Behavior, 20 (1), 8-26.         [ Links ]

Dubowitz, H. (2007). Understanding and addressing the "neglect of neglect:" Digging into the molehill. Child Abuse & Neglect, 31, 603-606.         [ Links ]

Dubowitz, H., & Bennett, S. (2007). Physical abuse and neglect of children. Lancet, 369, 1891-1899.         [ Links ]

Dufour, S., & Chamberland, C. (2003). L 'Efficacité des interventions en protection de l'enfance: recension des écrits. Montréal: Centre d'excellence pour la portection et le bien-être des enfants, 47p.         [ Links ]

Dunst, C. J., Trivette, C. M., & Cross, A. H. (1986). Mediating influences of social support: Personal, family, and child outcomes. American Journal of Mental Deficiency, 90(4), 403-417.         [ Links ]

Glaser, D. (2002). Emotional abuse and neglect (psychological maltreatment): a conceptual framework. Child Abuse & Neglect, 26, 697-714.         [ Links ]

Gracia, E. (2002). El maltrato infantil en el contexto de la conducta parental: Percepciones de Padres e Hijos. Psicothema, 14(2), 274-279.         [ Links ]

Griep, R. H.; Chor, D.; Faerstein, E. & Lopes, C. (2003). Apoio Social: confiabilidade teste-reteste de escala no Estudo Pró-Saúde. Cadernos de Saúde Pública, 19(2), 625-634.         [ Links ]

Guterman, N. B., & Lee, Y. (2005). The role of fathers in risk for physical child abuse and neglect: Possible pathways and unanswered questions. Child Maltreatment, 10(2), 136-149.         [ Links ]

Heyman, R. E., & Slep, A. M. S. (2000). Risk factors for family violence: introduction to the special series. Aggression and Violent Behavior, 6, 115-119.         [ Links ]

Hildyard, K. L., & Wolfe, D. A. (2002). Child neglect: developmental issues and outcomes. Child Abuse & Neglect, 26, 679-695.         [ Links ]

Jonhson- Reid, M. J., Drake, B., Chung, S., & Way, I. (2003). Cross-type recidivism among child maltreatment victims and perpetrators. Child Abuse and Neglect, 27, 899-917.         [ Links ]

Kazdin, A. E., & Whitley, M. K. (2003). Treatment of parental stress to enhance therapeutic change among children referred for aggressive and antisocial behavior. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 71, 504-515.         [ Links ]

Kotch, J. B., Browne, D. C., Ringwalt, C. L., Dufort, V., & Ruina, E. (1997). Stress, social support, and substantiated maltreatment in the second and third years of life. Child Abuse & Neglect, 21(11), 1025-1037.         [ Links ]

Lacharité, C. (2005). Programme d'aide personnelle, familiale et communitaire: Nouvelle génération. Trois-Rivières (Québec): GRIN/UQTR.         [ Links ]

Lipp, M. E. N., & Malagris, L. E. N. (2001). O stress emocional e seu tratamento. In B. Rangé (Org). Psicoterapias cognitivocomportamentais: um diálogo com a psiquiatria (pp.475-490). Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Manso, J. M. (2002) Estudio de las variables que intervienen en el abandono físico o negligencia infantil. Anales de Psicologia, 18(1), 135 - 150.         [ Links ]

McLewin, L. A., & Muller, R. T. (2006). Attachment and social support in the prediction of psychopathology among young adults with and without a history of physical maltreatment. Child Abuse & Neglect, 30, 171-191.         [ Links ]

Oliveira-Formosinho, J., & Araújo, S. B. (2002). Entre o risco biológico e o risco social: um estudo de caso. Educação e Pesquisa, 28(2), 87-103.         [ Links ]

Polansky, N. A., Gaudin, J. M. Jr., Ammons, P.W., & Davis, K. B. (1985). The psychological ecology of the neglectful mother. Child Abuse & Neglect, 9(2), 265-75.         [ Links ]

Public Health Agency of Canada. (2000). Child Neglect: Current Definitions and Models: A review of child neglect research, 1993-1998. Ottawa (Ontario): Canada.         [ Links ]

Scannapieco, M., & Connell-Carrick, K. (2002). Focus on the first years: An Eco-Developmental Assesment of child neglect for children 0 to 3 years of age. Children and Youth Services Review, 24(8), 601- 621.         [ Links ]

Schumacher, J. A., Slep, A. M. S., & Heyman, R. E. (2001). Risk factors for child neglect. Agression and Violent Behavior, 6, 231- 254.         [ Links ]

Sedlak, A. J., & Broadhurst, D. D. (1996). Third national incidence study on child abuse and neglect. Washington, DC, U.S.: Department of Health and Human Services.         [ Links ]

World Health Organization & International Society for Prevention of Child Abuse and Neglect (2006). Preventing Child Maltreatment: a guide to taking action and generating evidence.Geneve: Who Press.         [ Links ]

Zielinski, D. S., & Bradshaw, C. P. (2006). Ecological Influences on the sequelae of child maltreatment: A review of the literature. Child Maltreatment, 11(1), 49-62.         [ Links ]

Zuravin, S. J. (1999). Child Neglect: A review of definitions and measurement research. In H. Dubowitz (Ed.). Neglected Children. Research, Practice and Policy. Thousand Oaks, CA: Sage Publications.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondências:
Marina Rezende Bazon
Departamento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo
Av. Bandeirantes, 3900
CEP: 14040-901 - Ribeirão Preto, SP
Fone: (16) 3602.3830
E-mail: mbazon@ffclrp.usp.br

Enviado em Abril de 2009
Revisado em Agosto de 2009
Aceite final em Janeiro de 2010
Publicado em Dezembro de 2010

 

 

1 Com base em levantamento bibliográfico realizado na base de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), verifica-se quão raras são as publicações nacionais específicas sobre o tema. O levantamento trouxe apenas seis artigos nacionais relacionados à problemática da negligência (Davoli & Ogido, 1992; Morais & Eidi, 1999; Vagostello, 2002; Cruz, 2004; Farias, 2005; Algeri & Souza, 2005), dos quais apenas quatro a tinham como foco (Davoli & Ogido, 1992; Morais & Eidi, 1999; Vagostello, 2002; Cruz, 2004); os outros dois artigos apenas chamavam a atenção para essa problemática entre outros tipos de maus-tratos.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License