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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.41 no.41 Rio de Jeneiro July/Dec. 2019

 

ARTIGOS

 

Adolescência, Luto e História

 

Adolescence, Mourning and History

 

 

Marcella Bueno Brandão Siniscalchi*; Cristiana CarneiroI, II**

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
IINúcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas - NIPIAC - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo discute o luto na adolescência a partir dos textos freudianos; objetiva tecer uma reflexão entre o luto e a possibilidade de construção de uma história pessoal na atualidade; questiona se a adolescência pode ser pensada como um momento importante para a historicização da existência do sujeito. Esta questão convoca uma argumentação que se volta à possibilidade de narrar e rememorar a infância no trabalho psíquico do adolescente de maneira a edificar a elaboração do luto.

Palavras-chave: Adolescência, Luto, História, Narrativa, Psicanálise.


ABSTRACT

This article discusses mourning in adolescence as from the Freudian texts. It aims at stimulating a reflection between mourning and the possibility of building a personal history in the present time. It questions whether adolescence can still be thought of as an important moment for the historicization of the subject's existence. This question summons an argument that turns to the possibility of narrating and recalling childhood in the psychic work of the adolescent building up on ways of elaborating the mourning process.

Keywords: Adolescence, Mourning, History, Narrative, Psychoanalysis.


 

 

O presente trabalho pretende produzir, principalmente, uma reflexão sobre o tempo da adolescência na sua relação com o trabalho de luto e com a construção de uma história pessoal. A adolescência pode ser pensada como um momento importante para a historicização da existência do sujeito? Esta questão é colocada na medida em que se compreende a adolescência a partir de uma perspectiva psicanalítica que a considera como um acontecimento subjetivo e traz como marca o símbolo de ser uma passagem (RASSIAL, 1997), uma travessia, uma transição, na qual a dimensão da perda é significativa e convoca o sujeito adolescente a iniciar um trabalho de elaboração que diz respeito ao luto.

A transição da adolescência condiz exatamente com a quebra do paradigma da vida em família para um mundo novo que se abre: o da vida em sociedade. E, como todas as mudanças, vem repleta de incertezas e inseguranças. Sem saber exatamente o que se está perdendo nem o que está por vir, o luto, como uma resposta frente à dor das perdas, tem função estruturante e ajuda a dar nome ao que foi perdido ao apresentar um caráter de trabalho elaborativo em torno da dor, impedindo que esta se eternize e, também, possibilitando a separação do objeto perdido (QUINTELLA, 2012).

No contemporâneo, assistimos a um aumento de jovens com quadros depressivos, de suicídios, tentativas de suicídio, e outras violências autoprovocadas que, de acordo com dados recentes da Organização Mundial de Saúde, já fazem do suicídio a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos em todo o Mundo (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017). Este fenômeno, de tantas vidas jovens sendo interrompidas, pode sugerir a vivência de um considerável padecimento psíquico, e torna importante refletir se o luto, como trabalho de elaboração que possibilita a saída do registro da perda e a abertura de um devir, pode ser considerado um processo valioso para o sujeito na transição para a vida adulta.

 

A adolescência, um tempo de lutos?

Segundo a psicanálise, é através do desenrolar do complexo de Édipo que o aparelho psíquico vai se organizando na infância. Nesse sentido, o complexo de Édipo assume papel fundamental na estruturação psíquica do sujeito e na orientação do desejo, que se efetuam dentro do núcleo familiar, através do reconhecimento das diferenças entre gerações e das diferenças sexuais. O destino do sujeito será traçado pelo recalque e pelo ordenamento psíquico que dele resulta, sendo responsável por incidir nas relações futuras de cada sujeito. Quer dizer, durante toda a vida, as vivências do sujeito estão remetidas a esse originário, expressando-se em forma de revivescências e repetição.

Compreende-se, através de uma concepção freudiana, que o reencontro do sujeito com o desejo sexual na puberdade, como um segundo momento da sexualidade, reatualiza os conflitos edipianos da primeira infância. Assim, a passagem da adolescência como trabalho psíquico frente às transformações advindas da puberdade, traduz-se em um tempo de revivescências, que levam à reedição do complexo de Édipo e possibilitam ao sujeito um trabalho de (re)elaboração e (res)significação que pode, inclusive, mudar o sentido e o destino da sua história e que se efetua, essencialmente, com sua inclusão como membro da coletividade social.

Esta leitura é possível mesmo Freud não tendo produzido uma teoria clara da adolescência. Ele abordou especialmente a puberdade, como momento de maturação dos órgãos genitais e de reencontro com o objeto sexual, que produziriam implicações no psiquismo. As indicações iniciais de Freud (1905/2016) sobre a incidência dos processos da puberdade no psiquismo apresentam tanto as transformações no corpo (físicas e biológicas), que levam a remanejamento da vida sexual infantil, quanto evidenciam a ocorrência - paralelamente - da reedição dos conflitos da situação edípica, que diz respeito à própria grandeza que o infantil assume na psicanálise. Ele será revivido, mas também poderá ser (res)significado pelo sujeito adolescente a partir das modificações que a sexualidade infantil sofrerá com a entrada na puberdade.

A reativação do Édipo na puberdade pode ser compreendida como uma reedição por sua manifestação ocorrer simultaneamente com a superação das fantasias incestuosas, a separação dos ideais parentais e a escolha de novas referências identificatórias. Nesse sentido, outro trabalho que se inicia na entrada da adolescência, considerado por Freud (1905/2016, p. 149) como "uma das realizações psíquicas mais significativas e também mais dolorosas da época da puberdade", é o desligamento das figuras parentais. Freud (1909[1908]/1976) sugere que a hostilidade dirigida aos pais nesse período diz respeito ao lamento pela infância que se foi. Com isto, nos chama a atenção para a dificuldade e a dor que abarcam o crescimento, sendo necessária certa dose de agressividade, que possibilite a separação dos primeiros objetos de amor. Ele considera, ainda, que a oposição entre as gerações é o que garante o progresso da cultura (FREUD, 1905/2016), pois o conflito entre as gerações será necessário para que o adolescente possa se lançar na escolha de novos objetos de amor. Gurski (2006) sublinha a importância da diferença entre as gerações para que algo de novo, em termos subjetivos, seja produzido pelo sujeito.

Em Romances familiares, Freud (1909[1908]/1976) aborda o processo de desidealização dos pais da infância, necessário para o desligamento da autoridade dessas figuras que são tão importantes. Sabe-se que a criança pequena tem seus pais em um lugar privilegiado e de grande estima. Eles representam a autoridade e são detentores de todo conhecimento. Mas, conforme a criança vai crescendo, conhecendo outros adultos e se desenvolvendo intelectualmente, começa a pôr em dúvida tudo isso que acreditava ser extraordinário e incomparável em seus pais. Além disso, uma importante contribuição para esse primeiro afastamento dos pais idealizados são os intensos impulsos da rivalidade sexual, a que Freud teve acesso através da psicologia das neuroses. Eles levam a criança ao sentimento de estar sendo negligenciada e não correspondida em seu amor, sendo muito comum a fantasia de adoção (Id., ibid. ).

A desidealização dos pais da infância pode deixar o adolescente em contato com um profundo desamparo que o fará recorrer a certas defesas, como a desvalorização dos objetos para negar os sentimentos de dor e perda, e a busca de figuras substitutas dos pais no plano social. Estas figuras substitutivas partilhadas socialmente são uma primeira forma de elaborar a perda dos primeiros objetos de amor. Nesse processo de separação dos pais, Kehl (2000, p. 43) aborda como os grupos de jovens - a função fraterna - podem ajudar a partir das identificações horizontais: "É na circulação horizontal que se cria a possibilidade, para os sujeitos, de desenvolvimento de traços identificatórios secundários essenciais para permitir a diversificação de escolhas de destinos". Além disso, servem como suporte para a nova realidade em que o sujeito se encontra, que foi descortinada pelas mudanças do próprio corpo.

Seguindo as referências freudianas sobre os processos da puberdade, e em concordância com Pereira e Gurski (2014, p. 379), entende-se que "a adolescência é uma espécie de efeito Nachträglichkeit (a posteriori ) da sexualidade infantil: é seu retorno e também seu desenlace"; sendo a sexualidade na puberdade, então, o motor para toda uma reorganização física, psíquica e subjetiva no sujeito.

Enquanto a puberdade sugere a ideia de um "casulo borbulhante", a entrada na adolescência significa que uma história pessoal começou a acontecer do lado de fora da família (CORSO, D.; CORSO, M., 2018, p. 61). Portanto, é um tempo da existência que tem potencial de uma (re)escrita da própria história na medida em que o sujeito pode se separar das figuras parentais e produzir algo de sua autoria. A travessia da adolescência se efetuará na medida em que poderá se configurar narrativamente, como formula Pirone (2010): quando o sujeito pode produzir sentido no próprio passado por meio da capacidade de criar ficções, investir no presente para, então, poder se projetar no futuro. Nesses termos, a construção de uma narrativa da própria história opera o processo de subjetivação do adolescente, que é permeado por uma série de (re)arranjos psíquicos, como os identificatórios, nos quais o luto parece ter papel fundamental.

As mudanças que o adolescente enfrenta nos planos da escolha de objeto e identificatório vão ao encontro da visão de Octave Manonni (1996) de uma compreensão da adolescência como um problema de identificações, no plural, como destaca o autor. O adolescente precisa deixar cair suas velhas identificações para que novas ocupem o seu lugar, o que lhe faz adquirir um "ar emprestado" (Id., ibid., p. 32). No entanto, no final da adolescência, os objetos que foram tomados por empréstimo pelo eu não são liberados, mas, ao contrário, o sujeito parece conseguir, em certo sentido, tornar-se eles, integrá-los ao próprio eu: "Certamente sua personalidade permanece tão composta quanto sempre foi, mas composta de alguma forma integrada" (Id., ibid., p. 33). Dessa maneira, Manonni (1996) traz a importante pergunta sobre o que acontece com o eu durante esse processo: Como compensa as identificações perdidas e aceita as novas? Junto a esta importante pergunta, adicionamos uma nova: Como não se perder para a morte se, em certa medida, a transição da adolescência representa a morte de uma parte de si?

Uma resposta se anuncia quando consideramos que é a condição de criança que deve ser deixada em nome de uma escolha para a vida e da possibilidade de construção de um futuro. O trabalho de luto do adolescente envolve, então, uma elaboração em torno da morte propiciando a saída do registro da perda e impondo a necessidade de investir em novos objetos e a abertura para um devir. Trata-se de um trabalho do eu em transformar a dimensão de violência psíquica, que está no cerne da experiência adolescente, em serviço da vida (CARDOSO; MARTY, 2008).

 

O paradoxo na operação psíquica adolescente

Com base na perspectiva psicanalítica da adolescência que viemos desdobrando e que a concebe como um tempo de lutos, evidencia-se que as transformações físicas e biológicas da puberdade, de caráter universal, não garantem uma transformação psíquica e subjetiva, apesar de introduzirem a necessidade de mudança na revivescência do Édipo, principalmente, em termos de provocar a separação dos pais idealizados da infância. Junto a isto, há também na entrada na adolescência uma convocação social de que o sujeito ocupe um novo lugar, o que implica abrir mão de sua posição de criança e estabelecer uma nova relação com os outros. Assim, no processo de construção de um lugar subjetivo e no laço social, o jovem precisará, em alguma medida, romper com laços objetais e identificatórios já estabelecidos e reconfigurar as referências identificatórias que constituíram uma ideia de si mesmo até então. Contudo, Freud (1930[1929]/2010) nos advertiu de que a renúncia de uma posição libidinal ou de um objeto não é uma tarefa realizada facilmente. Dessa maneira, consideramos que o lento processo de luto do adolescente tem papel fundamental para que alguma transformação psíquica e subjetiva realmente se efetue, já que nela está pressuposta a perda.

Digamos que a perda no modelo freudiano é paradoxal porque se por um lado ela é causa de desprazer, de angústia, evocando um perigo para o sujeito, por outro lado não existe transformação que não envolva a perda, portanto será também através dela que o sujeito poderá exercer um domínio, se modificar (CARNEIRO, 2002, p. 100).

Em Luto e melancolia, Freud (1917[1915]/2006) nos diz que as perdas demandam um trabalho elaborativo e de simbolização que envolve uma atividade do sujeito na transformação da dor. De acordo com as ideias freudianas, há no luto um trabalho psíquico lento e gradual de desligamento libidinal do objeto perdido e, somente quando realizado este trabalho, possibilita-se a separação do objeto perdido e a libido estará livre para ser investida em um substituto. Este processo é permeado por uma insistente recordação do objeto perdido de maneira a produzir um trabalho de memória que acontecerá mediante um trabalho de elaboração e simbolização pela via da palavra. Quintella (2012) coloca que o luto é uma resposta frente à dor das perdas que tem função estruturante, pois ao dar nome ao que foi perdido, apresenta seu caráter de trabalho elaborativo em torno da dor, impedindo que esta se eternize e também possibilitando a separação do objeto perdido e abertura ao devir. Já na resposta melancólica, a complicação se deve ao fato de que não haverá o retorno da energia para investir em um novo objeto, pois não há renúncia ao objeto e o sujeito continua sendo afetado por uma perda da qual não sabe muito do que se trata.

É importante ressaltar que o desligamento libidinal do objeto perdido depende da relação do sujeito com a realidade e, neste caso, a aceitação de que o objeto amado não mais existe constitui-se um importante elemento do trabalho de luto (FREUD, 1917[1915]/2006). Só assim surge a exigência de que a libido seja retirada para ser, posteriormente, investida em novos objetos.

Transferindo e adequando os processos do luto normal no campo do luto do adolescente, constatamos que são vários os "objetos perdidos" e o sujeito adolescente tem considerável trabalho para possibilitar a integração do seu eu à nova realidade em que se encontra, e que foi descortinada pelas mudanças do próprio corpo. No caso da adolescência, podem-se supor diversos "objetos perdidos" que produzem o sentimento de perda, de renúncia, de luto: o corpo da infância, sua quietude e imagem estável; os pais idealizados da infância e o laço estabelecido com eles; os ideais fundados a partir dos antigos referenciais identificatórios; a segurança da vida na família; a ilusão de uma completude bissexual e seu respectivo sentimento de onipotência. São renúncias e perdas provocadas por separações e modificações, que se expressam no plano narcísico e objetal, na realidade e no psiquismo (EMMANUELLI, 2008).

De certa forma, pode-se dizer que o adolescente vive um paradoxo. Ele precisará romper com a infância idealizada e perdida, suas referências até então, ao mesmo tempo em que para que ocorra a elaboração de luto, de maneira a simbolizar as suas perdas e dar um destino para a dor, precisará recordar o passado e interligá-lo com o seu presente e com o futuro; ou seja, um trabalho elaborativo que altera passado e futuro a partir do presente (CARNEIRO, 2002) pela via da palavra e constrói os fios da própria história. A questão que se destaca, portanto, é a necessidade de um trabalho psíquico do sujeito para colocar essa dimensão do infantil - considerado indelével no psiquismo pela psicanálise - de outra maneira na vida. Nessa direção, a transição da adolescência seria justamente um trabalho de (re)elaboração e (res)significação que pode, inclusive, mudar o sentido e o destino da história individual.

À vista das considerações acima, pressupõe-se que não há luto sem um trabalho psíquico do sujeito pela via da palavra. A palavra na psicanálise constitui-se como um elemento que carrega um potencial transformador, tanto por suas possibilidades elaborativas ao produzir caminhos associativos e favorecer a criação de sentidos sobre os acontecimentos e a historicização do vivido como uma forma de memória, quanto por seu potencial enunciador que coloca o sujeito em uma posição ativa (KLEGER; MACEDO, 2016). Logo, não há trabalho de luto sem a possibilidade de construção de uma narrativa que venha "tecer com uma trama de palavras o entorno do objeto perdido" (CARNEIRO, 2002, p. 146). Esta seria a maneira de efetuar a perda - necessária para a transformação e retomada para a vida - sem que haja uma aniquilação de si mesmo, ou seja, uma morte do próprio eu.

Assim, entende-se que no trabalho de luto do adolescente também se faz necessário um retorno ao passado, nos levando a indagar em seguida: Como se dá esse retorno? Sabe-se que a significação de um acontecimento implica uma articulação entre passado, presente e futuro. Portanto, para que esta articulação ocorra torna-se imprescindível a consideração de um antes e um depois, ou seja, é preciso que o passado apresente algum valor e o futuro seja uma possibilidade. A partir da relação entre infância e esquecimento - e, portanto, da concepção de memória - delineia-se, a seguir, como pode ser entendido o antes e o depois na história do sujeito e apresentaremos a ideia de uma história que é (re)construída pelo sujeito no a posteriori e, deste modo, sempre passível de ser transformada. A noção de a posteriori, que é apresentada a seguir, relaciona-se com uma ideia de transformação posterior, que ressignifica as lembranças.

 

A palavra e o luto: narrar é preciso?

As ideias aqui expostas sobre o trabalho psíquico do adolescente, na perspectiva da elaboração de luto, vão ao encontro da proposta da psicanálise de um retorno à infância como um caminho subjetivante. A infância, que adquire com o passar do tempo um sentimento de estrangeira e longínqua para o sujeito, é considerada na teoria psicanalítica como central, pois não é totalmente ultrapassada, mesmo que percebida como esquecida (CARNEIRO, 2015). Com a compreensão do inconsciente, atemporal, admite-se que o "passado, passível de ser lembrado ou não, tem efeitos significativos sobre o presente" (Id., ibid., p. 128). Assim, a infância, que costuma trazer a marca do esquecimento, se faz presente através de seus efeitos. De acordo com a prática psicanalítica, sabe-se que a tentativa de retorno a ela é sempre acompanhada de certa barreira da memória, porém, o que Freud (1914b) nos ensinou é que enquanto não há a possibilidade de recordar o passado, não há a possibilidade de esquecê-lo efetivamente.

Nos estudos sobre a histeria, essas questões estão em destaque, já que as histéricas adoeciam e sofriam justamente pela impossibilidade de esquecer (CARNEIRO, 2015). As histéricas de Freud sofriam de reminiscências: "sofriam tanto por não saber recordar como por não poder esquecer" (Id., ibid., p. 130). De maneira resumida, o que ocorria nesses casos era que o desprazer causado pelas experiências desencadeantes produzia um "esquecimento", no sentido de uma ruptura entre os elos da memória e, com isso, sem acesso à própria a história no nível da consciência, o passado em vez de poder ser dito por palavras, falava no e pelo corpo da histérica (BENEDICKT, 1992 apud CARNEIRO, 2015) resultando em sofrimento.

A ruptura do elo entre o acontecimento passado e o momento presente teria como consequência uma descontinuidade básica na vida psíquica redundando na impossibilidade de lembrar, na impossibilidade de acesso do sujeito à sua própria história. A infância nesse caso apontaria prioritariamente à amnésia histórica. Indo num sentido contrário, a recordação se oferece como possibilidade de [re]construção que comporta um sentido novo, apontando para uma história passível de ser modificada. Nessa ótica, a infância ao ser rememorada possibilitaria uma abertura para a criança estrangeira que cada adulto traz consigo (CARNEIRO, 2015, p. 127).

De acordo com a citação acima, o que se apreende é que a ruptura entre passado e presente impede a transformação. Diante da impossibilidade de um retorno ao próprio passado, a história permanece congelada produzindo os mesmos efeitos. Nesses casos, o passado costuma se apresentar através do ato, como "uma descarga que se atualiza no corpo" (KEGLER; MACEDO, 2016, p. 179). Já num sentindo contrário, a recordação pela palavra traria a possibilidade de criar novos sentidos e, assim, produzir história. Ou seja, como sublinha Carneiro (2015), a revivescência do passado pela palavra funciona como uma oportunidade do sujeito de construir os elos entre os traços de memória proporcionando o acesso à própria história e possibilitando uma elaboração psíquica. No caso das histéricas, essa era a forma pela qual Freud considerava possível diluir as "intensidades coaguladas nas reminiscências, podendo-se, a partir disso, eficazmente esquecê-las" (Id., ibid., p. 130).

Em seu texto Recordar, repetir e elaborar (1914/2010), Freud aborda o esquecimento também no caso da neurose obsessiva. Com isso, diz "de um esquecimento que seria marca dos sujeitos [...] 'esquecimento' que, longe de ser aniquilado continuaria ao longo da vida do sujeito resultando em consequências" (CARNEIRO, 2015, p. 130). Assim, se de acordo com Freud o esquecimento é a marca dos sujeitos e, portanto, o passado do sujeito está sempre intrincado por certa barreira da memória, como pode se dar esse acesso? O que significa, então, um retorno ao passado?

Uma virada importante acontece quando Freud (1914/2010) constata que, em alguns casos, ocorre de ser recordado algo que não poderia ter sido esquecido, porque nunca foi consciente. Ele observa que, no entanto, essa diferença não modifica as consequências para o sujeito, o que significa dizer que o "esquecimento" apresenta seus efeitos mesmo nos casos para o qual lembrança alguma pode ser resgatada. Com essa descoberta, o sujeito e sua história passam a ser pensados de uma forma nova:

Ela [a história] não será mais entendida como reconstituidora, como tentativa de "encontrar" a lembrança certa, mas como uma reconstrução que comporta um sentido novo, que não estava lá. O esquecimento, então, não fará mais em primeiro plano lembrar, mas recordar, que significa fazer vir à memória, no qual é o fazer que se destaca, tecendo de novos fios da história e a fazendo sempre outra (CARNEIRO, 2015, p. 133).

Nesse sentido, Maldonado e Cardoso (2009, p. 51) destacam, a partir da teoria freudiana da memória, que "'a verdade' não estaria oculta à espera de ser encontrada, mas estaria sempre enlaçada no relato que dela se faz". Freud (1914/2010) percebeu que o que é recordado das experiências e impressões não diz respeito puramente aos acontecimentos reais (externos), mas tem a ver com a noção de realidade psíquica, no qual a fantasia tem papel preponderante. Assim, entendemos que a memória se faz por um movimento contínuo de transformação, sendo fruto de um trabalho psíquico que "incide sobre as recordações ao longo de diferentes épocas da vida, modificando-as segundo as circunstâncias" (MALDONADO; CARDOSO, 2009, p. 50).

O passado passa a ser entendido como uma (re)construção e não como algo que deve ser reconstituído (CARNEIRO, 2015). Isto indica que o sentido, a significação, só pode ser expresso no a posteriori ; no depois de um acontecimento é que se produz a história. Assim, o retorno à infância subjetivante envolve "refazer os fios da história para ao fazê-la falar, torná-la outra" (Id., ibid., p. 135).

Estas ideias são importantes porque colocam a história como algo que tem potencial transformador. Ao subjetivá-la, ao torná-la própria nesse tempo de significação "só-depois", ao mesmo tempo, a história se transforma e transforma o próprio sujeito. Como narrativa que articula um antes e um depois, a história só pode ser produzida no a posteriori e com certa medida de criação.

Corso e Corso (2011, p. 20) abordam a importância de produzir uma história pessoal - o mito particular - que será tecida pela fantasia e pela ficção: "O discurso possível a respeito do que somos e do que nos aflige será constituído de histórias: são tentativas de estabelecer um sentido para nossa existência e uma trama para sustentar nossos desejos". Desejos que entrelaçam o passado, o presente e o futuro, sendo o fio que os une (FREUD, 1908[1907]/1976). Reafirma-se, assim, a compreensão de que a passagem da adolescência se efetua na medida em que pode se configurar narrativamente (PIRONE, 2010). Quer dizer, como descreve Pirone, quando o sujeito pode produzir sentido no próprio passado por meio da capacidade de criar ficções, investir no presente para, então, poder se projetar no futuro.

Nesse ponto, cabe esclarecer que a ficção diz respeito ao tipo de narrativa que apresenta um conteúdo imaginativo, não sendo necessária uma correspondência com os fatos reais, e, deste modo, serve de amparo para a subjetividade e também a produz. Por permitir um distanciamento do "aqui-agora" relacionado ao descompromisso com a realidade, pela ficção facilita-se falar de si "através da possibilidade do surgimento de algo novo" (TFOUNI; MORAES, 2003, p. 67).

A formulação "agora eu era", proposta por Herzog e Mariante (2008) como representação de um trabalho do adolescente como "ser do entre" (testemunha da infância e mensageiro dessa experiência), também nos remete aos contos de fadas - um tipo de história de ficção - e nos faz pensar justamente em um passado que pode ser elaborado no presente, e, assim, se abre para o futuro. Essa transformação é fruto de uma invenção que se faz na criação de uma história. Portanto, o lúdico e a criação - recursos próprios do infantil - podem servir como instrumentos para o luto, sendo coadjuvantes importantes na elaboração que permitirá um retorno para a vida e a construção de um futuro.

 

À guisa de conclusão

Iniciamos o presente texto pensando a adolescência na psicanálise em sua articulação com o trabalho de luto. O adolescente é aquele que não mais se reconhece no corpo infantil, que se despede do suposto paraíso perdido da infância, que não consegue conservar os pais idealizados, portanto um sujeito marcado por perdas significativas. Ainda assim, o espaço aberto pelas perdas também pode acenar para um devir promissor, aberto ao novo e às diferentes possibilidades. Para que as perdas possam ser simbolizadas, um trabalho elaborativo que transforma passado e futuro a partir do presente pela via da palavra e constrói os fios da história se faz necessário, ainda que em meio ao paradoxal retorno e afastamento do infantil. Entre, então, uma infância diante da qual quer toda a distância, mas que ao mesmo tempo se faz presente a todo o tempo, a narrativa, tanto no contexto clínico, quanto no educativo, pode se constituir numa estratégia importante para a edificação do trabalho de luto. A clínica psicanalítica com o adolescente oferece a possibilidade de criação de uma narrativa da própria história que contribui para o trabalho de (re)arranjos psíquicos e de construção de novos sentidos. Enquanto no contexto da educação, ao se proporcionar espaços de reflexão em grupo, assim como oficinas de escrita, na medida em que esta também remete à subjetividade, a produção de uma narrativa singular, a construção de sentidos e o movimento de historicização também se fazem presentes, favorecendo o trabalho psíquico da adolescência.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 11/05/2019
Aprovado para publicação em: 16/09/2019

Endereço para correspondência
Marcella Bueno Brandão Siniscalchi
E-mail: marcella.bbs@gmail.com
Cristiana Carneiro
E-mail: cristianacarneiro13@gmail.com

 

 

*Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
**Psicanalista. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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