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Psicologia: ciência e profissão
Print version ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. vol.12 no.3-4 Brasília 1992
A categoria "Excluídos"
Pedrinho A. Guareschi
Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade PUC-RS Porto Alegre
Diante do título ao lado, gostaríamos de fazer um exercício de crítica com referência às palavras (conceitos) ali enunciadas, deixando-nos surpreender, ou admirar, sobre o que elas implicam, ou pressupõem. É Aristóteles quem nos diz que a atitude fundamental do cientista é a "admiração". Ela consiste em nos colocarmos diante do algo (ad) e olhar criticamente para ele (mirari), tentando perscrutá-lo em sua prfoundade. Com outras palavras, é um pouco penetrar o mistério das coisas, tentar chegar o mais próximo de sua essência, desvendá-lo, isto é, ir tirando os véus superficiais que o encobrem e que não permitem perceber sua verdadeira realidade.
Arrisquemos, pois, esse exercício. Pode muito bem ser que ele poderá provocar a muitas pessoas, possibilitando-lhes, certamente, uma visão mais abrangente e mais completa da realidade por elas significada. Gostaríamos até de prevenir aos leitores para que fossem vendo essas considerações também de uma maneira crítica, sem aceitar, de antemão, o que for sendo discutido. E desculpem-nos também por certa possível irreverência que possa transparecer de nossas considerações. Acreditem, no fundo, dizemos isso com muito respeito. São, afinal, certas convicções nossas. E fazemos isso num sentido de solidariedade.
Examinemos, pois, sucessivamente, os dois conceitos.
Categoria
É dito, inicialmente, que o excluído, é, constitui uma categoria. E a análise que, de saída, gostaríamos de fazer é exatamente sobre o que significa, e o que implica, falar em "categoria".
Nos manuais de metodologia somos instruídos de que as categorias se constituem e se definem através de duas características essenciais: a) devem ser abrangentes, e b) mutuamente exclusivas. Dizendo o mesmo com outras palavras, afirma-se que uma boa categorização é aquela que consegue colocar todos os fenômenos dentro das categorias propostas (abrangência), e aquela que ao mesmo tempo não permite que nenhum fenômeno possa ser colocado em mais de uma categoria (mútua exclusão).
Percebe-se, de imediato, que falar em categorias, já implica uma determinada concepção de mundo e de realidade, que gostaríamos de identificar e questionar com esse nosso trabalho. Temos consciência, e nos fomos convencendo no decorrer das inúmeras pesquisas, reflexões e estudos, tanto na "academia", como nas práticas populares, de que a teorização, a prática assim chamada de científica, implica, quer queira quer não, uma determinada postura valorativa. Estamos convencidos de que é impossível fugir dessa realidade. É por isso, também, que adotamos, em nossa prática, uma teoria crítica, que incorpora, como pressuposto fundamental de sua teoria, a impossibilidade de uma ciência neutra.
O falo de empregarmos o conceito "categoria", como definido pela metodologia tradicional explicada acima, implica assumir uma teoria metodológica, uma determinada visão de mundo e de realidade, que pressupõe a possibilidade de fenômenos absolutos, sem relação nenhuma entre eles. Imagino, em minha mente, uma porção de caixinhas, onde vou colocando, classificando, os fenómenos ou fatos que encontro no decorrer da investigação. Alguns aqui, outros acolá.
Tudo bem. Não há nada de mal em colocar, nas diversas "categorias", coisas parecidas, ou iguais, se quiser. Está claro que posso ir juntando, acumulando dados, separando-os em grupos mais ou menos semelhantes. O problema que está suposto, porém, e que passa a ser aceito, sem discussão, é de que esses fatos ou fenômenos não têm nada a ver uns com os outros. Vamos dar um exemplo, pois não há nada mais prático do que ver como acontecem as coisas na realidade.
Se você perguntar a alguém, seu amigo, a que classe social ele pertence, poderá ouvir dele duas respostas, aparentemente iguais, mas que implicam visões de mundo, de realidade e de sociedade totalmente distintas. Alguém poderá dizer-lhe que pertence "à classe média", ou poderá dizer-lhe que é um assalariado. Qual a diferença? Pensemos!
Dizer que sou "classe média", fornece-me, de imediato, a idéia de que existem várias classes, certamente mais duas, a alta e a baixa. Alguns até sofisticam um pouco mais e dizem: "sou classe média alta", ou "classe média baixa". Existiriam, assim, para eles, cinco classes, em vez de três. E ele se "encaixaria" numa delas.
Se formos perguntar pelos "critérios" de se encaixar numa ou noutra dessas "categorias", certamente aparecerá o critério de renda, que é o fundamental, acompanhado, algumas vezes do critério de educação (instrução), ou de profissão. Mas o importante é o seguinte: quando falo em classe "média", ou "alta" ou "baixa", não estabeleço nenhuma relação intrínseca entre elas; simplesmente as coloco ali juntas, dizendo que uma está "em cima" da outra. E de que se eu ganhar mais dinheiro, passo de uma para a outra, e uma continua não tendo nada a ver com a outra. Se uma aumenta, não é porque eu ganhei mais dinheiro. O que é afirmado é apenas que você não pode estar nas duas, por que são "mutuamente exclusivas", e nada mais. Não está dito, por exemplo, que você ficou rico, aumentou sua renda, por causa da outra classe, ou que os outros ficaram mais pobres por que você enriqueceu. Dizendo de novo: não há uma relação intrínseca entre elas, somente uma relação estanque, independente. Por isso mesmo que são "mutuamente exclusivas".
Quais as consequências disso? Você mesmo pode deduzir. Eu começo a pensar num mundo onde existem fenômenos separados, à parte, independentes uns dos outros. E, claro, onde existem também grupos, classes, independentes, que não têm nada a ver uns com os outros. Se há ricos, tudo bem; certamente trabalharam mais. Se há pobres, azar; certamente são preguiçosos e beberrões, ou, no mínimo, possuem menos sorte, o "destino" não lhes sorriu...
Mas atenção: não se pode afimar que "classificar", "categorizar" não ajude. Ajuda, sim. Mas ajuda para pouca coisa. Apenas coloca as coisas em caixinhas. Mas não digo, com isso, que uma caixinha é dum tipo porque a outra é de outro. Com outras palavras: não estabeleço uma relação intrínseca. Assim, eu digo que há ricos e pobres, mas não digo que há "enriquecidos", ou "empobrecidos". Quando digo "rico", eu entendo um grupo que não tem nada a ver com outro. Agora, quando digo "enriquecido". Quando digo "rico", eu entendo um grupo que não tem nada a ver com outro. Agora, quando digo "enriquecido", eu estabeleço uma relação: não existe o "enriquecido", sem alguém que o "enriqueceu". É necessário "um outro", isto é, existe aqui uma relação. Do mesmo modo com o "pobre" e o "empobrecido". Num mundo de "categorias" eu falo de pobres e ricos; num mundo de relações, eu falo de enriquecidos e empobrecidos.
Aviso mais uma vez: essa discussão mexe com a gente. Não a aceite de mão-beijada. Fique pensando. Como se dão as coisas, de fato, na realidade, no mundo concreto? É possível separar uma coisa da outra? E agora, o ponto mais sutil e escorregadio, difícil de ser percebido: Será que as teorias, os conceitos (como, por exemplo, o de "categoria", como mostrado acima) não têm nada a ver com a prática "lá fora"? Será que o nome que eu dou às coisas não tem nada a ver com a compreensão maior ou menor dessas realidades? Ou, se quiser: será que a "teoria" não tem nada a ver com a "prática"? Responda você mesmo.
O "excluído"
A bom entendedor, meia palavra basta. Com a discussão feita acima, muitos já se terão dado conta das complexicidades que poderemos enfrentar ao discutir tal "categoria"...
Evidentemente, devemos começar por afirmar que o "excluído" não existe por si mesmo. Ele é uma realidade sempre ligada a outra. Se digo que alguém é excluído, devo logo perguntar: Excluído de onde? Ou: excluído por quem? O ser excluído de algum lugar, implica que exista esse outro lugar.
Uma primeira consideração que se poderia fazer, logicamente falando, é a de que nós "necessitamos" dos excluídos. Precisamos deles para nos afimar. E gostaria de refletir sobre essa problemática, tentando mostrar que essa "necessidade" do excluído se dá sob diversos aspectos, ou em várias dimensões. Podemos, com isso, falar dos diversos tipos de excluídos.
a) O "excluído" da "normalidade"
(o "o doente mental")
Os psicólogos costumamos brincar, às vezes, perguntando: "Você sabe o porquê de nós costumarmos falar mal dos outros?" E a resposta dada é: "Porque temos vergonha de dizermos que somos bons!"
Atrás desse diálogo se esconde uma grande verdade: Como não pega bem, ou temos vergonha de dizer que somos inteligentes, honestos, trabalhadores, etc. passamos a chamar os outros de ignorantes, desonestos, preguiçosos, etc. E a dialética é clara: Se "eles" são ruins, logo "nós" somos bons... porque nós somos diferentes deles, logo...
Poderíamos aplicar o mesmo aos assim chamados "doentes mentais", ou "loucos". Essa questão já foi bastante discutida. Onde se coloca verdadeiramente anormalidade? Ou quais os critérios para podermos definira normalidade? O filme "Um estranho no ninho" nos provocou e nos ajudou a refletir essa problemática, juntamente com toda a leva de autores da "anti-psiquiatria". A conclusão a que chegamos de tudo isso é de que a "ciência", muitas vezes, se liga ao poder, e a falta de humildade ou de respeito começa a fazer vítimas entre todos os que são "diferentes" de nós.
Lembro-me ainda do pavor com que um colega jornalista me contava sua corajosa, mas arriscada aventura de ter tentado "dar uma de louco". Internou-se, no Hospital Psiquiátrico S. Pedro, e passou a viver como "os outros", para sentir na própria pele o que aconteceria. Foi fingindo, desafiando os "técnicos". Seu grande pavor, porém, foi ao ouvir um "técnico" comentar que esse era um louco especial, perigosíssimo, pois "se assemelhava muito aos normais!" Por detrás disso esconde-se o tremendo preconceito do "fato dado", ou "fato consumado": se está"lá", é sinal que é louco, e pronto. Não interessam os outros critérios.
Pois essa é a questão fundamental que gostaríamos de discutir: não existem teorias absolutas e prontas. Nós estamos sempre crescendo em consciência e compreensão do mundo e das coisas. Existe sempre o "mistério", o indizível, o intocável, o invisível. A ciência, quando se absolutiza, quando se "totaliza", torna-se um poder autoritário. Quando eu perco a "relação" (atenção que relativo provém de relação, e relativo é o oposto de absoluto!) das coisas, quando eu penso no "excluído" da normalidade sem a relação com o "incluído", e quando eu defino o que é "normalidade" de uma. maneira absoluta, eu estou praticando uma ciência autoritária, ditatorial. Não existe o "louco" sem o "sadio". E mais: muitas vezes quem passa a definir os critérios de "louco" ou "sadio" são os que detém o poder. No auge do nazismo, não foi difícil a Hitler convencer e carregar após si as universidades, as igrejas, para que o apoiassem e a suas idéias, bem como queriam as grandes empresas (Krupp, Siemens, Volkswagen) que foram as principais responsáveis pela sua ascensão ao poder. Quem não o seguisse era "anormal" e anti-patriótico. Em Neuremberg, seus seguidores foram condenados e enforcados pois eram criminosos e "loucos". Como se pode ver, os critérios de "normalidade" são rotativos, sofrem alguma alternância...
b) O "excluído" económico
(o "preguiçoso")
Ao refletir sobre esse ponto, vêm-me de imediato à memória os versos de Vinícius de Moraes, no seu provocante poema "O Operário em Construção". O operário, ao olhar para a mesa onde sentara, percebeu que
"tudo, naquela mesa,
garrafa, prato, facão,
era ele quem os fazia,
ele, um humilde operário,
um operário em construção".
antes, "tudo desconhecia de sua nobre missão". Mas depois, "começou a notar coisas, a que não dava atenção". Por exemplo:
"Notou que sua marmita
era o prato do patrão;
que sua cerveja preta,
era o whisky do patrão;
que seu macacão de zuarte,
era o terno do patrão;
que o casebre onde morava,
era a mansão do patrão;
que seus dois pés andarilhos,
eram a roda do patrão;
que a dureza do seu dia,
era a noite do patrão;
que sua imensa fadiga,
era a amiga do patrão.
E o operário disse "não"!"
Talvez não haja exemplo melhor do que seja a exploração, dum lado, e doque seja a superação da alienação, de outro. É exatamente no momento em que o operário se dá conta da relação, intrínseca e imprescindível, entre ele e seu patrão, que a alienação tem fim. Um necessitado outro. O excluído economicamente, o favelado, o mendigo, o empobrecido, é condição necessária da existência do incluído.
É também interessante dar-se conta que a exclusão econômica é, na maioria das vezes, senão a causa, ao menos a condição para a exclusão política, religiosa, cultural c social. Sem defendermos um determinismo econômico, percebemos, contudo, que à medida em que as pessoas são privadas das necessidades básicas de sobrevivência, como alimentação, saúde, moradia, etc. nessa medida são também marginalizados dos outros benefícios sociais.
A que situação contraditória e paradoxal nos leva uma visão absolutizada, "categorial", de sociedade. Essa mesma sociedade que possibilita a existência do "excluído", passa depois a negá-lo; o gera, para depois matá-lo, o cria, para depois rejeitá-lo. O rico necessita do trabalhador para, através do fruto de seu trabalho, enriquecer-se; mas no momento em que chega a uma situação desejada, nega a relação, fecha-se sobre si mesmo e trai quem possibilitou sua própria existência.
c) O "excluído" religoso
(o "pecador")
O absolutismo totalitário não se contenta em dominar apenas as dimensões econômicas, sociais, intelectuais e mentais das pessoas. Ela precisa dar conta, também, da dimensão transcendente do ser humano. Desde os primórdios da história humana, já encontramos a necessidade dos poderes ditatoriais de dominar também a dimensão de abertura ao mistério e ao transcendente das pessoas. Como todo poder que se intitula "divino" necessita de vítimas e sacrifícios para seu culto, para provar sua "divindade", encontramos, consequentemente, junto aos absolutismos religiosos, a contrapartida dos sacrificados.
Os Faraós, além de senhores dos homens e das mulheres, da vida e da morte, eram também sumos sacerdotes e deuses. Os Césares, intitulavam-se deuses e exigiam adoração de seus súditos, na Idade Média, os imperadores espanhóis e portugueses exigiam para si privilégios "de direito divino". O imperialismo financeiro do "in God we trust" considera-se hoje defensor incondicional da "civilização ocidental e cristã"...
E ao lado desses "poderes absolutos e divinos", vamos encontrar sempre suas vítimas sacrificadas, que se constituem na sua negação e seu desmascaramento. Através de suas vidas, denunciavam a dominação absolutizadora e lhes mostravam a "relatividade" do poder e a existência do "Outro". Foi assim com os judeus perseguidos pelos Faraós, que os tinham reduzido a condenados à morte, massacarados pelo trabalho escravo, mas lutando por sua libertação e denunciando a opressão. Foi assim com os cristãos que denunciavam o poderio destruidor dos Césares, e tiveram de arder como tochas acesas e serem devorados nos circos para defender a igualdade fundamental dos seres humanos. Foi assim com os escravos negros e os índios, que com sua resistência e sua morte recusaram-se (e ainda se recusam) a servir de escabelo dos imperadores de "direito divino". E está sendo assim com a multidão inumerável de vítimas do Imperialismo econômico e financeiro, da política dos "direitos humanos" que, por todo o Terceiro Mundo são torturados, martirizados dia a dia pela fome e sub-nutrição, mas resistem corajosamente através de sua fé e solidariedade, na esperança e na utopia duma sociedade libertada e fraterna.
Em toda essa história, era sempre o dominado, o oprimido, que era o "pecador". Os senhores dos corpos e das "almas" decidiam também sobre quem era santo ou pecador. Assenhoreavam-se do Espírito, que sopra onde quer, o Deus da Libertação, e o colocavam a seu serviço. Mas os "pobres de Javé", sofridamente, perseverantemente, resistiram e continuam a resistir, denunciando todos os absolutismos religiosos que, de tempos a tempos, mostram seu espectro assustador entre os mortais.
d) O "excluído" intelectual
(o "ignorante")
Demorei ao menos cinco anos para me convencer duma afirmação que ouvi de Paulo Freire em Genebra, em 1970: "Não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes". Essa afirmação nos choca de imediato, pois numa sociedade onde tudo é materializado e mensurado, como a nossa, o saber é também, consequentemente, quantificado. E nessa quantificação, há os que têm "mais" e "menos".
Se refletimos com cuidado, veremos que todo saber é fundamentalmente uma experiência, e a experiência é pessoal, baseada em milhões de referenciais, é irrepetível. Assim o saber é um sabor.
Dizemos ainda hoje que tal comida "sabe" a cebola. Toda pessoa vive construindo seu saber pela experiência e pela "sacação", pela surpresa gostosa de dar-se conta do significado, pela descoberta repentina e inesperada da relação... É o "hãh!"que automaticamente nos escapa. Esse "saber-sacação", bem ao contrário dos condicionamentos repetitivos e semiautomáticos da aprendizagem behaviorista, que não difere qualitativamente da aprendizagem dum golfinho ou do cachorro, nunca nos será tirado.
Qual a necessidade de "quantificar" os saberes? Exatamente para melhor poder estabelecer divisões na sociedade. A diferença nos "saberes" originou a divisão social do trabalho que, por sua vez, dá origem à divisão de classes. Mas quem pode me provar que determinada experiência, determinado saber, é maior, menor, melhor ou pior que os outros? Não há ponto de referência objetivo para mostar essa "superioridade" intrínseca. Recordo-me, com respeito a isso, daquela história do barqueiro que atravessava pessoas num largo rio. Em uma das viagens, iam um advogado e uma professora. Como quem gosta de falar muito, pergunta o advogado ao barqueiro: "Companheiro, você entende de leis?" -"Não", responde o barqueiro. E o advogado, compadecido: "E pena. Você perdeu metade da vida..." A professora, muito social, entra na conversa: "Seu barqueiro, você sabe ler e escrever?" -"Também não", responde o remador. -"Que pena", condói-se a mestra. "Você perdeu metade da vida..." Nisso chega uma onda bastante forte e vira o barco. O canoeiro, preocupado, pergunta: "Vocês sabem nadar?" - "Não!" respondem eles rapidamente. - "Então é pena", conclui o barqueiro, "vocês perderam toda a vida!"
Essa história pode não ser verdadeira, mas nos mostra a relatividade do saber. Ao mesmo tempo nos alerta sobre a íntima relação de poder que deriva do pressuposto das diferenças no saber. Com que direito, ou baseado em que critério, quem senta numa cadeira e faz um trabalho burocrático passa a receber dez ou cem vezes mais do que o que faz um trabalho manual? Não é do colono, do trabalhar da fábrica, que todos nós vivemos? Mas o que aconteceu historicamente foi que um determinado grupo humano conseguiu impor sobre os outros a crença de que seu "saber" valia mais, era mais importante. Primeiro foram os magos, que controlavam os arcanos dos deuses; depois os religiosos; em seguida, os filósofos; hoje, os "acadêmicos", os políticos e os burocratas. O mais escandaloso, para nossa sociedade brasileira, é que enquanto em alguns países como a Suíça, ou Cuba, o que ganha mais, ganha entre 6 e 8 vezes o salário mínimo, aqui no Brasil essa diferença chega a mais de mil vezes...Que "saber" fantasticamente "importante", não acha?
Com essas considerações já podemos tirar as consequências da "necessidade" da criação do "ignorante". Ele é analfabeto, não sabe ler e escrever, por isso vale menos, pode receber um salário abaixo da sobrevivência. Enquanto isso àquele que "esquentou banco por mais tempo", atribui-se o direito de usufruir da mais-valia do trabalhador braçal. E, paradoxalmente, não fosse o "ignorante", não existiria o "intelectual"; eles se "necessitam" dialeticamente, mas o intelectual o nega na prática cotidiana e nas relações vitais.
e) O "excluído" cultural
(o "bárbaro")
As considerações feitas acima valem, do mesmo modo, para a "categoria" do excluído cultural,, o que denominamos, desde o tempo dos romanos, de "bárbaro".
Apesar de tantas experiências históricas, ainda subsiste o preconceito de que existe, como no caso do saber, uma cultura melhor, ou pior. Todos os povos, ao se relacionarem com a natureza, foram construindo sua cultura, transformando a natureza à medida de suas necessidades. Cultura é, pois, toda ação do homem sobre a natureza. E cada povo foi construindo sua cultura conforme suas circunstâncias. A cultura é a identidade fundamental dum grupo humano. A cultura é a alma de um povo. Na medida em que se destrói ou se domina, a cultura de um povo, destrói-se e domina-se esse povo.
A cultura é, pois, a maior riqueza de um povo, sua identidade, o cerne e o reduto íntimo e sagrado que garantem sua sobrevivência. O problema surge no momento em que duas culturas começam a se relacionar. Em vez de se reconhecer a riqueza e validade intransferível e inalienável de cada cultura, começa-se por "julgar" e rotular a outra cultura como "inferior", "bárbara", "primitiva". É o que acontece hoje no Brasil com a discussão sobre nossos indígenas. A filosofia "integracionista" da Funai e dos governos militares não é nada mais do que um gesto absolutista e autoritário de quem não consegue aceitar a possibilidade de sobrevivência de culturas diferentes. Os índios continuam a ser "bárbaros", como no tempo dos romanos. Isso fornece os pressupostos para sua dominação e extermínio.
Mas há um outro ponto, um pouco mais venenoso, que se relaciona com a problemática da cultura e que gostaria de discutir aqui. Até há pouco tempo, a antropologia, sem se dar conta, mas de uma maneira extremamente autoritária e parcial, contentava-se em estudar os povos e culturas, descrevendo-as cuidadosamente, nos mínimos detalhes. E isso era tudo. Esse é chamado o enfoque etnográfico da antropologia. Nos últimos anos, os estudos sobre cultura deram-se conta da importância decisiva de se poder "entender" e "compreender" os significados, os sentidos, que as pessoas dão aos gestos, ritos e às coisas. De nada adianta tentar descrever o que estou vendo, se não alcanço compreender o significado do que aquilo significa para as pessoas. Esse novo enfoque no estudo da cultura é chamado de antropológico.
Mas onde o "veneno" dessa constatação? Simples: há muitos estudiosos, professores e pesquisadores, que fazem seus estudos e pesquisas sem nem sequer suspeitarem de que o que eles pensam, suas teorias, sua visão de mundo, etc. influencia decisivamente na maneira de ver e de saber como as coisas são. As teorias "objetificantes", baseadas no positivismo e funcionalismo, contentam-se em "descrever o que está lá", sem se preocuparem em saber se o que eles estão vendo corresponde mesmo ao que eles "estão pensando" (através de suas teorias e valores) que estão vendo... Penso que essa atitude teórica dificilmente pode deixar de ser autoritária e parcial. Acaba-se fazendo, em ciência, exatamente o que os conquistadores faziam ao ver os índios "adorarem seus deuses", que para os espanhóis e portugueses "deviam" ser falsos, pelo simples fato de serem diferentes dos deles... É somente através de relações de poder que se pode dizer que uma cultura é melhor. Decorre daqui a importância fundamental de uma teoria crítica, pois essa teoria começa por ser crítica de si mesma, não aceita a divisão entre aquele que pesquisa e o objeto estudado.
f) O "excluído" político
(o "divergente")
No rol dos excluídos, poderíamos ainda incluir talvez o mais perigoso deles todos: o que não aceita a aparente "unicidade" e "funcionalidade" da sociedade. Para o poder dominante e absoluto, tudo deve estar em "ordem" e existe um equilíbrio intrínseco no "sistema" social. O máximo que se pode esperar, são possíveis "disfunções", que são contratempos passageiros, superáveis com o tempo, e que automaticamente vão se "ajustar".
Para tal visão de mundo, todo o que pensa de outra maneira, todo o que aspira a uma "nova ordem", todo o que pensa uma possível mudança, não passa de um subversivo, de um divergente. Ele atenta contra a suprema lei do equilíbrio universal de todas as coisas. Ele é por isso mesmo um "marginal", um "periférico", alguém que ainda não foi assimilado à corrente central, mas que, cedo ou tarde, se "encaixará".
Creio que é fácil entrever a ideologia subjacente a tais pressupostos. Num mundo concebido dentro de tais parâmetros, não existe o "relativo"; tudo é "absoluto". Podem existir, isto sim, "categorias", mas essas categorias são classificações, repartições dessa totalidade, sem nenhuma referência, sem nenhuma relação intrínseca entre si. São repartições estanques de um todo fechado.
O "divergente" político é o mais perseguido dos "excluídos" pois ele se coloca na área do poder e da mudança. É por isso mesmo que ele precisa ser execrado e exorcizado continuamente e cuidadosamente. As armas para esse exercício devem ser escolhidas a dedo. O poder não pode demonstrar que agride abertamente ou que não aceita as divergências. Precisa mostrar sua "abertura" ao diálogo, sua disposição de negociar. A tática é, então, "comer o mingau pela beirada", na bela expressão popular, e que o politicólogo alemão Claus Offe chama de "seleção negativa". É a pressão mais sutil e mais disfarçada, pois consiste não em reprimir, mas em não deixar fazer, em não permitir que haja possibilidade de o fato poder acontecer. Simplesmente "não se coloca o fato na agenda", e assim ele nem é discutido.
Pode-se acrescentar a essa estratégia também a técnica da "combinação", que consiste em ligar a determinados agentes perigosos, conotações negativas, como as de "extremista", "anti-social", "radical", "não-científico", etc. Até há pouco tempo o "barbudo" carregava consigo tal conotação, discriminação essa que ultimamente está difícil de ser mantida.
Conclusão
Fomos parar relativamente longe em nossas considerações. Foi nossa intenção de procurar desvendar o escondido e o subjacente aos conceitos de "categoria" e "excluído", que nos provocaram a esta tarefa. Cremos que foi possível acenar para o fato de que, no mundo dos homens e do social, não há, de uma parte, uma categoria da qual se possa dizer que abranja todo um determinado grupo de fenômenos, pois todo fenômeno é relativo, e nesse sentido está aberto e ligado à totalidade; nem que existam categorias mutuamente exclusivas, pois elas necessariamente se incluem, pelo simples fato de se relacionarem. Foi principalmente este último ponto que procuramos desenvolver, mostrando o vazio presente à "categorização" de determinados grupos sociais.
Um segundo ponto a que quisemos nos referir e fazer presente é que definir a realidade através da análise das relações ali existentes, é tarefa muito mais completa e abrangente do que simplesmente tirar uma fotografia dessa mesma realidade, eu posso apenas descrever os fenômenos e classificá-los, mas sua verdadeira constituição esconde-se por detrás dessa aparência.
Finalmente, um último ponto bastante desafiador: No momento em que desejarmos transformar uma realidade, quem nos pode ajudar mais? Não será o que chamamos de "excluído", o que está à margem, que melhor nos poderá ajudar a perceber a relatividade, o novo, o desconhecido das coisas? O "excluído", em seu vazio, com seu sinal de interrogação a nos questionar continuamente, ao mostrar-nos as contradições dessa realidade que se quer pronta e absoluta, nos insinua que é na margem que está a possibilidade de compreender o centro, que é nas periferias do mundo que se gestam as grandes transformações, que são as diferenças que dão completude e compreensão global ao mundo e às coisas.