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Psychê

Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.8 no.15 São Paulo Dec. 2004

 

ARTIGOS

 

Dedução de um paradigma concernente ao modo como Freud opera com certo tipo de dualismo em sua obra

 

Inference of a paradigm concerning the way Freud operates with given dualities in his work

 

 

Vinicius Anciães DarribaI

Universidade Estácio de Sá

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo é investigado o modo como Freud opera com os dualismos primário/secundário, primitivo/civilizado e infantil/adulto. Busca-se mostrar nos três casos que o sentido comumente associado à relação entre os componentes destes dualismos é questionado pelo autor, e que se pode deduzir dessa operação um paradigma comum. No âmbito do artigo é verificado ainda que o questionamento desse tipo de dualismo por Freud responde ao que, segundo ele, estaria em jogo na experiência da análise.

Palavras-chave: Dualismo, Freud, Paradigma, Primário/secundário, Primitivo/civilizado, Infantil/adulto.


ABSTRACT

This article investigates the way in which Freud operates with the dualities primary/secondary, primitive/civilized, and infantile/adult. Our aim is to demonstrate that, in the three cases, the meaning commonly associated with the relationship between the components of such dualities is questioned by the author and that a common paradigm can be inferred from that operation. The article also aims at verifying that the questioning of such dualities by Freud responds to what is at stake in the analysis experience according to him.

Keywords: Dualitie, Freud, Paradigm, Primary/secondary, Primitive/civilized, Infantile/adult.


 

 

Um certo tipo de dualismo na obra de Freud

Um aspecto fundamental no modo como se apresenta o pensamento de Freud é sua articulação nos termos de diferentes dualismos. Em algumas passagens eles aparecem como a configuração buscada pelo autor para sua trama conceitual, ao passo que em outros momentos eles consistem em pontos de partida para o encaminhamento de determinadas questões. No primeiro caso o exemplo mais inequívoco está no esforço de Freud, assumido ao longo de toda a obra, em conceber um dualismo pulsional. Sem nos ocuparmos aqui da discussão em torno dos motivos históricos dessa opção por um modelo dualista, estaremos nos voltando para o segundo caso que discriminamos, aquele em que os dualismos constituem formas de introdução para diferentes questões na obra de Freud.

No âmbito dos dualismos que cumprem essa função agruparemos três deles – primário/secundário, primitivo/civilizado e infantil/adulto –, em razão de identificarmos uma lógica comum no tipo de relação aí sugerida. Não estamos afirmando que o uso de tais dualismos por Freud confirme essa lógica (mostraremos que não); o que indicamos é que comumente esses pares sugerem uma determinada relação entre seus componentes. Os dualismos primário/secundário, primitivo/civilizado e infantil/adulto, independentemente do modo pelo qual veremos terem sido trabalhados por Freud, sugerem de saída uma relação que se baseia em duas idéias centrais: a de que aquilo que designa um dos componentes do dualismo se substitui ao que é definido como o outro componente, e a idéia anexa de que ao componente sucessor deve ser atribuída superioridade em relação ao outro.

Primário e secundário, primitivo e civilizado, infantil e adulto, designam usualmente pares, em que está sugerida uma relação na qual o segundo dos elementos absorve o primeiro, em um sentido evolutivo. O que queremos mostrar, no entanto, é que embora parta de tais dualismos, o pensamento de Freud acaba por subverter essa relação. Ele recorre a dualismos cujos termos sugerem de antemão uma determinada correlação, mas a operação que realiza leva exatamente ao seu questionamento. A questão que trabalharemos neste artigo diz respeito à identificação de um modo geral, segundo a qual Freud opera com esses dualismos, ou seja, propomo-nos a verificar a possibilidade de extrair deles um paradigma1 relativo à operação pela qual o sentido comum que a eles se associa é questionado. Examinaremos em seguida cada um dos dualismos.

 

Primário/secundário

Uma distinção no psiquismo entre processos primário e secundário já é proposta no Projeto para uma psicologia científica (Freud, 1950[1895], p. 442). O primário refere-se ao investimento de desejo levado até a alucinação do objeto desejado. Na medida em que o objeto não está presente, quando uma ação reflexa se produz a conseqüência é a frustração. Aí é situada por Freud a justificativa para a necessidade de um processo secundário, em que a percepção, que é associada à presença do objeto, se distinga da alucinação.

No processo psíquico primário não é contemplada qualquer distinção entre a percepção do objeto e o investimento alucinatório da lembrança do objeto em função do desejo. Em ambos os casos estará presente uma “indicação de realidade”. Esta é referida ao “sistema de neurônios ω”, o qual é concebido, ao longo da construção do aparato de Freud, como um sistema específico para responder à necessidade de situar a origem da qualidade2 (p. 420). Os neurônios ω são excitados junto com a percepção, fornecendo a indicação da qualidade. Cada percepção externa, então, produz em ω uma excitação, o que implica uma descarga por parte de tais neurônios. A indicação da realidade se dá por meio dessas descargas. A afirmação de que no âmbito do processo primário não é possível a distinção entre a percepção do objeto e sua lembrança é devida ao postulado de Freud de que o investimento do objeto desejado, levando à alucinação, produz a mesma indicação de realidade que uma percepção externa.

Diante do desapontamento que acompanha a descarga conseqüente à experiência alucinatória – na medida em que se trata de uma descarga sem satisfação –, Freud insiste na necessidade de um critério de discernimento entre percepção e lembrança investida alucinatoriamente. Esta função é associada ao “eu”, introduzido como agente da inibição do investimento a que se seguiria uma alucinação. O eu é concebido como uma organização que é oriunda da facilitação3 estabelecida entre neurônios sistematicamente investidos (p. 437). Estes passam, assim, a constituir um grupo de neurônios com investimento constante. Tal investimento consiste na provisão requerida pela função inibidora, a qual se exerce por meio da facilitação que se estabelece entre investimentos colaterais. O curso de uma excitação, que a princípio segue o caminho mais facilitado, pode ser alterado por um neurônio adjacente simultaneamente investido. Deste modo o eu – uma organização de neurônios constantemente investidos – pode inibir o curso de uma excitação.

A inibição por parte do eu impede que o investimento da lembrança do objeto desejado se dê a ponto de implicar uma indicação de realidade, situação na qual percepção e alucinação não seriam discerníveis. Ela é condição dos denominados processos psíquicos secundários (p. 442), nos quais Freud acredita que a descarga seja “segura”, na medida em que se procura previamente estabelecer uma identidade entre o investimento de desejo e a percepção. Com a definição desses elementos na busca de identidade que caracteriza o processo secundário, o autor passa a discorrer sobre os diferentes casos possíveis. Ele parte da situação em que o investimento de desejo e a percepção se assemelham parcialmente, não coincidindo, para descrever em que consiste a atividade de pensamento (p. 443). O pensamento surge no texto justamente como a atividade que, partindo de uma não coincidência entre os investimentos, busca a identidade.

Freud qualifica como “pensamento reprodutivo” essa busca pela identidade vinculada ao objetivo estabelecido de obter o direito à descarga, com a incidência da indicação da realidade. Mas ele supõe, ainda, que o processo possa independer deste objetivo, visando apenas a identidade, no que chama de “ato puro de pensamento”. Nesse caso, o investimento de desejo não coincide em nenhuma medida com a percepção. A conseqüência é um interesse por conhecer a imagem perceptiva, que é “hiperinvestida” a partir do eu.

Apesar de ser suposta sem qualquer objetivo prático imediato, essa atividade pode ser vista como uma facilitação das vias de descarga. Freud conclui haver um interesse primitivo em estabelecer uma situação de satisfação, concedendo um sentido eminentemente prático a toda atividade de pensamento. Ele declara que “o pensamento prático, origem de todos os processos de pensamento, continua sendo, também, o objetivo final deles” (p. 512). A atividade de pensamento não pode, em última instância, estar dissociada da finalidade de obtenção da descarga.

Quando nos voltamos, agora, para o capítulo 7 de A interpretação dos sonhos, vemos que a própria dissociação entre processo primário e secundário não é nítida. Freud parte da mesma justificativa da obra anterior para a necessidade de introduzir uma segunda atividade: diante da insuficiência do investimento de desejo alucinatório para promover a cessação do acúmulo de excitação, é preciso supor uma via indireta segundo a qual se obtenha “uma percepção real do objeto de satisfação” (1900, p. 543). Trata-se, como antes, de uma atividade de pensamento que visa tornar a descarga segura, e que tem como condição uma inibição do investimento de desejo, de modo a que não se chegue ao ponto da alucinação. Nos termos do aparelho psíquico aí concebido, está associada à atividade de um segundo sistema4.

É estabelecida assim a distinção entre um primeiro sistema, responsável pelo processo primário, cuja finalidade Freud define como uma “identidade de percepção”, e um segundo sistema, responsável pelo processo secundário, em que o que se busca é uma “identidade de pensamento” (p. 545). Mas o pensar não passa de uma via indireta para o investimento da lembrança de uma satisfação, pois segundo o autor, “o pensamento, afinal, não passa do substituto de um desejo alucinatório” (p. 517). O sonho é interpretado como sendo o “ressurgimento” desse processo primário na vida psíquica. Se a distinção entre um processo primário e outro secundário remete a uma perspectiva de superação de um modo de funcionamento do aparelho por outro, já vemos aí o fenômeno do sonho contradizer tal perspectiva.

Freud acrescenta aos sonhos os fenômenos neuróticos, no questionamento da eficácia funcional do modelo. No entanto, não se trata apenas de uma perturbação patológica sobre a vida psíquica, explicando a insistência daquilo que é da ordem do primário, e que em um quadro “normal” deveria estar superado pelo secundário. Freud subverte qualquer possível perspectiva evolutiva, na medida em que propõe que o mecanismo do sonho e das neuroses consta da “estrutura normal do aparelho anímico” (p. 550).

A conclusão, portanto, é que aquilo que é concebido como o fundamento do sonho é essencial à compreensão da própria estrutura do psiquismo. O dualismo processo primário/processo secundário não se sustenta nos termos de uma superação da deformação promovida pelo desejo inconsciente. Diante de uma suposta “precariedade” do processo primário, não há qualquer retificação que substituindo-o, garanta o acesso a uma certeza quanto à realidade. A experiência alucinatória do desejo deixa de ser uma insatisfação eliminável, e é tomada pela psicanálise como modelo da relação com o objeto.

 

Primitivo/civilizado

Em Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna, Freud parte da oposição que ele observa ser estabelecida por Von Ehrenfels, professor de filosofia em Praga, entre moral sexual natural e moral sexual civilizada (1908, p. 187). Enquanto a primeira permitiria aos homens conservarem sua saúde e eficiência, a segunda estimularia uma intensa e produtiva atividade cultural, mas em determinado grau acabaria representando um risco para os próprios objetivos culturais. Aos potenciais danos que o autor associa à moral sexual civilizada, Freud acrescenta o incremento da “doença nervosa moderna” (p. 188). É esta sua proposta no artigo: no âmbito da discussão proposta por Von Ehrenfels, identificar – como o principal efeito negativo das exigências que definem a moral sexual civilizada – o incremento do que é designado como doença nervosa moderna.

Freud dedica grande parte do artigo à retomada de sua teoria, segundo a qual a neurose é associada à renúncia de satisfação da pulsão sexual. Sem nos dedicarmos aos termos por meio dos quais ele desenvolve sua hipótese, o que nos interessa aqui é a posição assumida diante dos problemas apresentados pelas exigências da moral sexual civilizada. Ele considera que em função do papel desempenhado pela moral sexual vigente no agravamento do quadro da doença nervosa moderna, é legítimo considerar que determinadas reformas amenizariam a situação. Isto é, Freud entende que por meio de reformas, os danos atribuídos à civilização, representada aqui por uma moral sexual, poderiam ser revertidos. Duas décadas mais tarde seu ponto de vista se modifica.

Em Mal-estar na civilização, a crítica freudiana à civilização é mais pessimista5. Após declarar que tal crítica deve motivar a busca de alternativas, ele pondera que “talvez possamos também nos familiarizar com a idéia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civilização, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma” (Freud, 1930[1929], p. 138). Essa declaração se insere no contexto do artigo em que a civilização é questionada como veículo de felicidade. Freud está discutindo justamente a possibilidade de felicidade do homem e identifica, em termos gerais, as três fontes do sofrimento humano: “o poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade” (p. 105).

Partindo da idéia facilmente aceita que a civilização tem como intuito prevenir o sofrimento associado a essas fontes, Freud depara-se com a conclusão, qualificada por ele como espantosa, de que é a própria civilização que está na origem de grande parte do sofrimento vivido pelo homem. Tal situação concerne mais diretamente à terceira fonte do sofrimento – os relacionamentos humanos – e leva a humanidade a crer que em determinados momentos o abandono da civilização representaria um ganho em termos de felicidade. Tal conclusão, inusitada ao se pensar em termos evolucionistas, remete a outra passagem do artigo em que Freud indica ter “o cuidado de não concordar com o preconceito de que civilização é sinônimo de aperfeiçoamento, de que constitui a estrada para a perfeição, preordenada para os homens” (p. 117).

Se a civilização é justificada pela remissão do sofrimento associado ao que se supõe anterior a ela, e se Freud conclui que o sofrimento é igualmente gerado pelas próprias engrenagens que definem a civilização, verificamos que o ponto de vista evolucionista é aqui questionado. Não se trata de um arranjo inadequado de tais engrenagens, que uma reforma pudesse repor, a serviço do aperfeiçoamento que a civilização deveria representar. Como vimos, Freud já não acredita que uma reforma possa superar as dificuldades que se apresentam à constituição da civilização como caminho para a felicidade.

Segundo o autor, que antes já havia identificado como fonte de sofrimento o poder superior da natureza e a fragilidade dos corpos, e que verifica o quanto a civilização é malsucedida na prevenção do sofrimento associado à regulação das relações humanas, é preciso suspeitar que jaz aqui uma “parcela de natureza inconquistável – dessa vez, uma parcela de nossa própria constituição psíquica” (p. 105). Mas se o pensamento de Freud frustra a idéia de que com a civilização o sofrimento associado a essa “natureza” anterior a ela pudesse ser superado, ele não busca, por outro lado, idealizar a preservação de um estado primitivo da humanidade. Ele entende tratar-se de outro julgamento errôneo, já que também aí haverá atualização da parcela indomada de natureza psíquica a que faz referência.

Em relação ao dualismo entre a civilização e aquilo que se lhe supõe prévio, Freud questiona os pontos de vista usualmente expressos. Por um lado, diante do fracasso do processo civilizatório em garantir a felicidade, ao postular a impossibilidade de reforma ele descarta a idéia de que o sofrimento associado a um dos pólos – relativo ao que é anterior à civilização – possa ser eliminado por meio da assimilação pela civilização do que a ela se opõe. Lembremos que esse descarte da aposta reformista representou, inclusive, uma mudança de atitude na obra freudiana. Por outro lado, Freud também rejeita que se imagine a possibilidade de um primitivo preservado, no qual, em última instância, a felicidade estaria abrigada. A resistência de uma parcela indomada de natureza psíquica não é algo que se revele apenas em função dos constrangimentos impostos pelo que conhecemos como civilização, mas é generalizado por Freud, impedindo que concebamos um primitivo preservado que estaria em harmonia com ela.

O questionamento por Freud do dualismo presente nos dois artigos tem como resultado o ponto de vista segundo o qual a civilização não é capaz de assimilar, tornando inócuas, as fontes de sofrimento citadas. Este poder de preservação da felicidade não está igualmente do lado de um suposto estado não civilizado do homem, que levaria à conclusão de que é a civilização que está na origem do sofrimento humano. Esta segunda alternativa, que Freud também questiona, imporia a idéia de que há total separação entre a civilização e esse suposto estado primitivo, o qual poderia ser pensado como preservado em relação à iniciativa civilizatória. O que podemos reter do pensamento freudiano é que, seja do lado da civilização, seja do lado do que é supostamente anterior a ela – não importa, portanto, o contexto da relação humana –, o que é designado como “parcela inconquistável de natureza psíquica” se atualiza. Ou seja, ela atualiza-se no seio mesmo do que se acredita contê-la.

 

Breve comentário sobre o tema da “preservação” na obra de Freud

Nos dualismos que examinamos Freud lida com a convivência entre o que se supunha deveria estar superado e o que, nesse caso, o teria superado. Dedicaremos um pouco mais de atenção a essa configuração nos termos do tema caro a Freud, da “preservação na esfera mental”, para o qual ele voltou-se na primeira parte de Mal-estar na civilização (p. 86). O artigo parte das considerações do escritor Romain Rolland sobre o trabalho freudiano, então recentemente publicado, O futuro de uma ilusão, do qual o próprio Freud lhe havia enviado um exemplar. Concordando com a idéia geral do livro, Rolland discorda sobre o que seria a verdadeira fonte da religiosidade. Esta teria como origem, segundo ele, um sentimento atuante em nós, que nomeia sentimento “oceânico” – um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras (p. 81). Estaria aí a fonte da religiosidade, da qual se apoderam Igrejas e sistemas religiosos.

Freud afirma terem lhe causado dificuldades as opiniões expressas por seu amigo, já que não conseguia identificar em si mesmo um tal sentimento (p. 82). Não podendo contar com uma experiência pessoal do dito sentimento “oceânico”, ele se atém ao conteúdo ideativo descrito por Romain Rolland, no intuito de buscar uma explicação psicanalítica para o mesmo. São retomadas, então, as hipóteses acerca da gênese do eu como instância delimitada em relação ao mundo externo6. Como já exposto por Freud em outras obras, a separação entre eu e mundo externo não estaria dada na origem, mas seria construída em diferentes momentos. No trabalho citado ele resume a situação dizendo que originalmente o eu inclui tudo, e posteriormente separa de si mesmo um mundo externo (p. 85). Nosso sentimento atual do eu seria, portanto, resíduo de um sentimento mais inclusivo. Freud conclui que o “sentimento oceânico” de Romain Rolland corresponde à sobrevivência do sentimento primário do eu ilimitado, ao lado do eu mais estrito e demarcado que se desenvolveu.

A discussão que nos interessa inicia-se nesse ponto, em que Freud questiona sobre a possibilidade de conviverem o que é próprio de um eu primário com o que posteriormente caracterizaria o eu. À pergunta “terei eu o direito de presumir a sobrevivência de algo que já se encontrava originalmente lá, lado a lado com o que posteriormente dele se derivou?” (p. 86) ele responde afirmativamente, recorrendo a partir daí a uma série de analogias que poderiam ilustrar a situação. O primeiro exemplo que apresenta – o das espécies animais – é rapidamente abandonado, visto que as espécies inferiores sobreviventes não são, de um modo geral, os verdadeiros ancestrais das espécies mais desenvolvidas atuais (p. 86). Freud ensaia, então, uma outra analogia, em um campo a que recorre com freqüência em sua obra. Ele apela a uma imagem arqueológica, à imagem da Roma antiga revivida pelos historiadores.

Freud pergunta o que se encontraria, na atualidade, das diferentes fases históricas atribuídas à cidade. Com exceção do pouco que ainda resta intacto, o que existe são restos escassos que se confundem, seja com restaurações posteriores e suas próprias ruínas, seja com a confusão da metrópole atual. Freud propõe, então, que imaginemos Roma não como uma habitação humana, mas como uma entidade psíquica, “uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu, e onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir paralelamente à última” (p. 88). Isso definiria um problema para a representação que deveríamos fazer de Roma, pois conteúdos diferentes teriam que estar justapostos no espaço. Concluindo ser inapropriada a comparação, Freud ainda cogita a analogia com o corpo humano – que ele reputa ser um objeto de comparação mais estreitamente relacionado –, mas se depara mais uma vez com a impossibilidade de uma representação espacial, já que os órgãos da infância não se poderiam sobrepor ao que compõe o organismo adulto.

Tanto no exemplo da cidade de Roma quanto no do corpo humano, o que Freud diz justificar o esforço de estabelecer a analogia é a demonstração do “quão longe estamos de dominar as características da vida mental por meio de sua representação em termos pictóricos” (p. 89). O problema da “preservação na esfera mental” que se apresenta para Freud implica o questionamento da lógica de organização espacial a que o pensamento usual-mente se submete. Isto é, a representação de dois conteúdos sobrepostos em um único espaço é uma imagem absurda em referência à lógica do espaço que nos é comum. O pensamento que se impõe a Freud desafia, portanto, sua representação espacial.

Mas lidar com uma situação que apresenta problemas em relação aos parâmetros segundo os quais habitualmente pensamos não é para Freud um mero exercício intelectual de forçar os limites da representação: é a resposta a questões que se revelam cruciais em seu trabalho. Questões cruciais à psicanálise como vemos, por exemplo, em Análise terminável e interminável, em que ele lida com o problema da variabilidade dos efeitos da análise, e particularmente com a questão de saber se uma análise pode vislumbrar a cura da neurose por meio da transformação integral do que é designado, no artigo, como mecanismos de controle da pulsão. Ou seja, o que ele discute é se os mecanismos associados à neurose poderiam ser substituídos, em toda sua extensão, por outros que garantissem ao paciente o sucesso definitivo da análise. Para responder a essa questão, Freud chama a atenção mais uma vez para o “inacabamento” dos processos nos quais supomos que um estado de coisas será substituído por outro. É sob esse ângulo que ele aborda, como veremos a seguir, a variabilidade nos efeitos da análise.

Freud inicia a discussão, em Análise terminável e interminável, afirmando que o domínio intelectual do meio ambiente, por meio de generalizações, regras e leis que tragam ordem ao caos, falsifica o mundo dos fenômenos, em especial quando lidamos com processos de desenvolvimento e mudança (1937, p. 260). Negligencia-se o fato de que o mundo real consiste mais em estágios transitórios, alterações parciais, do que em estados opostos nitidamente diferenciados. Freud recorre também a uma analogia com o que se passaria no psiquismo, dizendo que de todas as supersticiosas crenças da humanidade que foram supostamente superadas, não existe uma só cujos resíduos não permaneçam entre nós ainda nos dias atuais (p. 261). É pela via de pensar a persistência do que se supunha estar superado que é encaminhada a resposta ao problema da variabilidade dos resultados da análise. O trabalho de análise nunca vai possibilitar uma transformação completa, sempre irão persistir antigos mecanismos. Vemos, nesse exemplo, que o problema de se pensar a convivência do que deveria estar superado, mas persiste, com o que deveria representar o estado superior, diz respeito antes de mais nada às questões postas pela experiência da análise tal como percebida por Freud.

 

Infantil/adulto

Atendo-nos ainda à discussão exposta em Análise terminável e interminável, verificamos que Freud ilustra o problema da convivência de estados supostamente sucessivos em termos da descrição que usualmente propõe do desenvolvimento da libido (p. 261). Ele indica que a teoria da substituição sucessiva de uma fase oral original por uma fase anal-sádica, e desta por uma fase fálico-genital foi, se não abandonada pela pesquisa posterior, corrigida. A experiência revelou que tais substituições não se realizam de modo repentino, convivendo partes da organização anterior com a mais recente. Freud conclui que a transformação nunca é completa e que estes resíduos conservam-se na configuração final. Inscreve-se aí o questionamento do último dos dualismos que anunciamos, aquele que opõe o infantil ao que define a vida adulta.

Basearemos nossa discussão nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, nos quais o dualismo adulto/infantil orienta a análise freudiana. Verificaremos que se trata do questionamento de tal dualismo, em uma estratégia – erigir um ponto de partida que será problematizado – que não é só desse trabalho, mas que está presente em toda a obra de Freud. O ponto de partida aqui são as associações, de um lado entre a sexualidade adulta e um padrão de normalidade em termos tanto de objeto quanto de objetivo sexuais, e de outro entre a sexualidade infantil e o que seriam os germes da perversão no adulto. Já se trata de uma distinção em relação à representação comum da pulsão sexual, que Freud identifica na “opinião popular”, segundo a qual tal pulsão estaria ausente na infância (1905, p. 127). Mas a transformação que nos interessa é a que é operada ao longo do trabalho de Freud, no sentido de questionar a delimitação entre o que caracteriza a sexualidade infantil e o que se substituiria no adulto “normal”.

No primeiro ensaio de Freud dedica-se a um exame das perversões, classificando-as conforme consistam em desvios em relação ao objeto ou ao objetivo sexual. Tais desvios são recenseados em relação ao que se considera o objeto sexual normal – o indivíduo do sexo oposto – e o objetivo sexual normal – “a união dos genitais no ato designado como coito” (p. 140). O importante nesse exame de Freud é a conclusão a que chega, de que o que se denomina usualmente perversão são componentes que não faltam à vida sexual “normal”. A oposição estrita entre normalidade e perversão é questionada, na medida em que a definição das práticas sexuais perversas é compatível com o que se observa não faltar no exercício dito normal da sexualidade. Essa ampliação do domínio da perversão é reforçada também pela observação de que as moções perversas são formadoras dos sintomas na neurose. Levando em conta o que chama de “séries ininterruptas que ligam a neurose à saúde” (p. 160), só resta a Freud concluir que a predisposição à perversão faz parte da constituição normal.

A demarcação da fronteira entre a perversão e a normalidade não é mais tão nítida. Desse modo, a conotação de reprovação associada ao termo “perversão” deve ser questionada (p. 151). Mas, como dissemos, o que se questiona fundamentalmente é a delimitação entre o que é normal e o que é perverso. Freud partiu de tal distinção para concluí-la inapropriada. Não há como estabelecer tal oposição nos termos em que ela habitualmente é definida, na medida em que ele verifica ser a predisposição à perversão universalmente humana e originária (p. 179). Essa suposta constituição, que contém os germes de todas as perversões, Freud afirma ser observável na infância. A sexualidade infantil é “perverso-polimorfa”, no sentido de que aquilo que no psiquismo fará resistência às moções pulsionais parciais ainda não se estabeleceu, ou seja, ainda não impôs o domínio do genital.

Mas se por um lado Freud define uma distinção entre o infantil perverso-polimorfo e o adulto, por outro vimos que o componente perverso deve ser generalizado na constituição sexual. Ou seja, se por um lado Freud baseia a discussão em um dualismo entre o que é próprio ao infantil e o que caracteriza a vida adulta, por outro oferece os argumentos para o questionamento do mesmo. Os termos em que é problematizada a distinção entre normalidade e perversão no primeiro dos Três ensaios... impõem também o questionamento do dualismo infantil/adulto que está presente no texto. O “infantilismo da sexualidade”, a que Freud faz referência, não se refere apenas à semelhança entre a sexualidade infantil e a do adulto perverso. O “infantilismo da sexualidade” é a constatação de que a sexualidade é infantil, ou seja, aquilo que Freud pôde, em um primeiro momento, propor em associação com a sexualidade infantil, é em última instância o que define a sexualidade humana.

O que concluímos do dualismo infantil/adulto é que não há uma substituição do que caracteriza o infantil por algo na vida adulta que lhe seja oposto. Ao mesmo tempo, o infantil não é algo que jaz inacessível, mas que ao contrário é atualizado no adulto. Ou seja, algo que é atualizado como essência mesma do que se supunha substituir a ele. Percebemos aqui que nossa conclusão coincide com a que resultou do exame dos dualismos anteriores. O que tentamos propor é que para além dos termos componentes dos dualismos com que Freud lida, a operação segundo a qual eles são questionados revela um padrão que permite identificarmos um paradigma que emerge do pensamento freudiano.

 

O paradigma que se deduz do modo como Freud opera com os dualismos

Retomemos as conclusões relativas à operação de cada um dos dualismos que analisamos em Freud, no intuito de verificar a existência de um paradigma que as articularia. Vale salientar que tal modelo é exclusivamente associado aos dualismos que examinamos. A existência de outros dualismos na obra de Freud – como por exemplo os dualismos pulsionais a que nos referimos no início do trabalho – não implicou, no âmbito deste trabalho, uma análise relativa à extensão do paradigma para a operação dos mesmos. O artigo limita-se, como indicado, ao exame do que é designado como um certo tipo de dualismo, ao qual se associa a temática aqui desenvolvida.

No primeiro caso examinado vimos como o autor define a relação entre um processo psíquico primário e um processo psíquico secundário no Projeto e em A interpretação dos sonhos. A distinção deveu-se à necessidade de pensar, para além da tendência primária a alucinar o objeto desejado, um processo no qual uma indicação de realidade pudesse anteceder a descarga, prevenindo a frustração pela ausência de tal objeto. Se o dualismo proposto pode sugerir, a princípio, que o secundário deveria se substituir ao primário em nome do aperfeiçoamento da relação com a realidade, o que observamos, no entanto, foi o questionamento disto por Freud. Ele acabou por concluir, baseado na observação de que o mecanismo do sonho e da neurose faz parte da estrutura normal do aparelho psíquico, que o componente alucinatório da relação com a realidade, designado pelo primário, não é superável, mas antes pauta essa relação.

O que verificamos no exame do dualismo processo primário/processo secundário pode ser sintetizado em dois pontos, que apresentaremos em termos gerais, visando avaliar sua pertinência também em relação aos outros dualismos. Em primeiro lugar vimos Freud concluir que os pólos do dualismo não podem, diferente daquilo que seus termos poderiam inicialmente sugerir, ser pensados em uma relação de substituição de um pelo outro. Em segundo, o fato de um dos pólos não ser substituído pelo outro não implica sua disjunção. No caso examinado, mais do que o primário não ser eliminado pelo secundário, persistindo patologicamente, o que se verifica é que estão “normalmente” imbricados.

No segundo caso, o do dualismo primitivo/civilizado, vimos seu questionamento por Freud encaminhar a conclusão de que a civilização não é capaz de eliminar as fontes de sofrimento associadas a um estado primitivo da humanidade. Mais uma vez o autor subverte a relação suposta entre os componentes do dualismo, na qual um se substituiria ao outro. No debate de Freud, o que é associado ao primitivo não é superado pelo processo civilizatório. Por outro lado, ele indica também que não se pode conceber o primitivo preservado de uma civilização que seria, agora ela, responsável pelo sofrimento humano. Ou seja, de acordo com o segundo ponto do paradigma que sustentamos, não há como pensar um primitivo preservado, mas sim uma continuidade entre o que a ele se atribui e a civilização.

Finalmente, em relação ao dualismo infantil/adulto, concluímos não haver uma substituição do que caracteriza o infantil por algo, na vida adulta, que lhe seja oposto. Vemos aí reincidir o primeiro aspecto do paradigma que especificamos. Ao mesmo tempo o infantil não se apresenta como algo que jaz inacessível, mas ao contrário atualiza-se no adulto. Ou seja, trata-se de algo que é atualizado como essência mesma do que se supunha substituir a ele, de acordo com o complemento do paradigma que associamos à operação de Freud. Tendo demonstrado a existência de um paradigma que definiria o modo comum, pelo qual são questionados esses diferentes dualismos, resta retomar o lugar de tal operação na obra freudiana.

Comentamos, na passagem em que foi discutido o problema da “preservação” em Freud, que não se trata para ele de um mero exercício intelectual, em que se busque conceber uma nova forma de representar a relação entre etapas, que supostamente se sucederiam. O questionamento que o autor opera nesse tipo de dualismo responde, como vimos, à problemática que a clínica da psicanálise introduzia. O que está em jogo, portanto, não é apenas uma opção de Freud entre as possibilidades abertas por sua teoria, mas algo que se impõe em função do modo como a experiência da análise é percebida por ele: como uma experiência não passível de ser concebida, em suas palavras, segundo estados opostos nitidamente diferenciados.

 

Referências Bibliográficas

FREUD, S. (1950[1895]). Projeto para uma psicologia científica. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1990. vol. I.        [ Links ]

________. (1900). A interpretação dos sonhos. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1990. vol. V.        [ Links ]

________. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1990. vol. VII.        [ Links ]

________. (1908). Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1990. vol. IX.        [ Links ]

________. (1930[1929]). O mal-estar na civilização. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1990. vol. XXI.        [ Links ]

________. (1937). Análise terminável e interminável. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1990. vol. XXIII.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Vinicius Anciães Darriba
Rua Marquês de São Vicente, 230 / bl.2 / 302 – Gávea
22451-040 Rio de Janeiro/RJ
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E-mail: vdarriba@centroin.com.br

Recebido em 05/02/04
Versão revisada recebida em 23/03/04
Aprovado em 26/03/04

 

 

Notas

I Psicanalista; Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ; Professor da Universidade Estácio de Sá.
1 O termo “paradigma” é proposto como sinônimo de modelo. Trata-se de uma acepção mais abrangente do termo do que o sentido técnico que ele tem, por exemplo, na obra de Thomas Kuhn. Nesta, ao analisar o processo de transformação das teorias científicas, o paradigma é definido como um modelo partilhado por uma comunidade científica, o qual abrange não apenas os princípios teóricos, mas também método de pesquisa e aplicações. A produção de uma revolução científica equivaleria, nestes termos, à adoção de um novo paradigma.
2 Isto porque os dois tipos de neurônios propostos até então por Freud – φ e ψ – estavam relacionados a processos quantitativos. Na medida em que tais processos se referiam apenas ao que é inconsciente no funcionamento do psiquismo, Freud vê-se obrigado a propor o novo tipo de neurônio ω para incorporar a possibilidade de explicação, pelo aparato do Projeto, das sensações conscientes.
3 A noção de facilitação no Projeto liga-se a uma diferenciação entre os percursos que um estímulo pode trilhar. A constituição de tal diferença é concomitante ao trilhamento, não sendo pré-estabelecida e definitiva a preferência por um caminho.
4 Os processos primário e secundário são tomados, nos termos do aparelho psíquico concebido em A interpretação dos sonhos, como atividades que se dão segundo diferentes sistemas, os quais seriam os “germes” do que é descrito, respectivamente, como sistema inconsciente (Ics) e sistema pré-consciente(Pcs).
5 Entendemos que a tradução da palavra alemã “Kultur” por “civilização”, no lugar de “cultura”, não compromete a discussão que aqui conduzimos com base nos dois artigos freudianos.
6 Essa delimitação, que definiria a autonomia do eu, é qualificada pelo próprio Freud como uma “aparência enganadora”, visto o modo como estão propostas as relações entre eu e isso (p. 83). No sentido do exterior, segundo Freud, mesmo a demarcação sendo nítida, a clareza dos limites entre eu e mundo externo, ao menos no estado amoroso, também deve ser reavaliada.