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Print version ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) vol.10 no.18 São Paulo Sept. 2006
ARTIGOS
Matriz discursiva da contra-transferência: discussão ética acerca do acompanhamento terapêutico e de instituições de saúde mental
Counter-transference discursive matrix: ethical discussion concerning the therapeutic accompaniment and mental health institutions
Rogério Lerner1
Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia
RESUMO
Este artigo traz dados de pesquisas que apontam a existência de uma heterogeneidade na constituição do campo de trabalho do acompanhamento terapêutico e de instituições de saúde mental, decorrente da influência dos discursos da psicanálise e da inserção social de pacientes psiquicamente comprometidos. Seus efeitos contra-transferenciais são discutidos do ponto de vista ético, uma vez que carreiam: o estabelecimento de uma relação na qual o profissional destaca insuficiências de seu paciente e assume um lugar de compensador das mesmas; o sentimento de o profissional nada poder fazer pelo paciente com seus instrumentos terapêuticos; rivalidade entre profissionais e familiares. Conclui apontando a importância de que tais aspectos sejam considerados em supervisão clínica.
Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico, Psicanálise, Análise institucional de discurso, Saúde mental, Contra-transferência.ABSTRACT
This article works with data of researches that points to the existence of heterogeneity in the constitution of the field of work of the therapeutic accompaniment and mental health institutions. Such heterogeneity derives from the influence of psychoanalytic discourses and social insertion of mentally affected patients. Its counter-transference effects are discussed from the ethical point of view, since they lead to the establishment of a relationship in which the professional detects insufficiencies in his patient and tries to attend them or feels he is unable to deal with them or discovers the existence of a kind of rivalry between him and patients relatives. We conclude considering the importance of such aspects to be dealt with in the clinical supervision.
Keywords: Therapeutic accompaniment, Psychoanalysis, Institutional analysis of discourse, Mental health, Counter-transference.
O presente artigo propõe uma discussão acerca da ética na prática do acompanhamento terapêutico à luz de pesquisas realizadas em instituições de saúde mental.
Muitas das pessoas que trabalham na área da saúde mental, tanto acompanhantes terapêuticos como membros de equipes em instituições, são psicanalistas ou têm uma forte influência da psicanálise no seu trabalho. É intrigante que apesar de toda a importância atribuída à psicanálise, muitos profissionais dizem ser impossível trabalhar com psicanálise no acompanhamento terapêutico ou nas instituições. Os argumentos em prol dessa impossibilidade são diversos, tanto técnicos como teóricos, sustentados tanto por considerações com tendências pendentes para a psicanálise francesa como para a inglesa.
Outro aspecto digno de nota é a aplicação direta de idéias psicanalíticas oriundas da clínica em consultório a situações institucionais ou de acompanhamento terapêutico, bastante diversas daquela, sem levar em conta a especificidade de cada uma. Conceitos psicopatológicos, leituras transferenciais, suposições etiológicas e intervenções recorrentes em psicanálise são constantemente convocados, ainda que se mantenha a consideração de que é impossível se trabalhar com psicanálise.
No levantamento bibliográfico repetem-se argumentos contra o trabalho com psicanálise em situações externas ao consultório ao lado de aplicações de idéias psicanalíticas a essas mesmas situações, sem que se leve em conta a especificidade da mudança das condições de atendimento.
Com o intuito de investigar como se constrói a suposição de que a ocorrência do trabalho psicanalítico em instituições de saúde mental é impossível, formulei em 1999 uma pesquisa orientada por um método que leva em conta o fenômeno institucional em sua especificidade (Lerner, 1999). Esse método, forjado por Guirado (2000, 2004, 2006), chama-se análise institucional de discurso e considera que agentes institucionais produzem (tanto serviços quanto idéias ou imagens) e falam a partir dos lugares componentes do cenário institucional, ocupados nas relações que se repetem e se legitimam enquanto se repetem, engendrando os laços estabelecidos entre tais agentes e a clientela, incluindose aí o atendimento em suas diversas formas. Os lugares componentes, sua cenografia e os laços que daí decorrem podem ser investigados por meio da análise do discurso dos partícipes da realidade institucional, bem como por meio da análise de documentos que regulamentam sua ocorrência.
Na pesquisa mencionada, publicada na íntegra como livro (Lerner, 2006), foram entrevistados dez agentes institucionais de um Centro de Atenção Psicossocial de São Paulo. Os profissionais tinham as formações mais diversas: enfermeiros, técnicos de apoio, terapeutas ocupacionais, psicólogos e psiquiatras.
Nos discursos dos profissionais entrevistados, um dos vetores mais recorrentes dizia respeito ao teor compensatório que parecia sustentar as representações acerca das relações que os mesmos estabeleciam com os pacientes ou com o próprio trabalho. De maneira geral, um dos tópicos dominantes da pauta das relações foi a compensação de insuficiências: profissionais destacavam incapacidades de seus pacientes e imaginavam que deveriam orientar seu trabalho para compensá-las. Os profissionais não se davam conta de que a tendência de destacar incapacidades e atribuir ao paciente o lugar de insuficiente, assumindo o lugar de compensação, estava instalada na instituição como um todo. Assim, achavam ser necessário e possível fazer sempre mais pelo paciente.
As estratégias para a compensação das insuficiências eram várias e pareciam estar relacionadas com aquilo que se acreditava ser a natureza do limite da capacidade. O limite das capacidades dos pacientes para o trabalho dos grupos terapêuticos era caracterizado como uma imobilidade; os pacientes eram caracterizados, então, como candidatos a circular por projetos-trabalho. Tal expediente parecia cumprir também a função de compensar a cristalização à qual o profissional via-se limitado em seu trabalho nos grupos terapêuticos.
O dispositivo discursivo institucional levava agentes a destacar incapacidades, e atribuir aos pacientes o lugar de insuficientes. Entretanto, ao tentar compensar tal insuficiência, os agentes faziam algo pelo paciente¸ mantendo intocado o dispositivo discursivo institucional por não terem condições de se dar conta do mesmo. Tal dispositivo continuava a se repetir, reiterando as incapacidades dos pacientes. Nessa medida, os profissionais acabavam por caracterizar sua própria intervenção como insuficiente, pois tentavam compensar a insuficiência dos pacientes e o dispositivo discursivo institucional acabava por mantê-la. Então, os agentes passavam a considerar sua formação técnica insuficiente para o trabalho institucional que se dispunham a fazer, e passavam a realizar tarefas distintas, a fim de compensar a insuficiência de sua formação: eram propostos passeios, atividades culinárias, trabalhos manuais, entre outros. Tais atividades eram consideradas formas de o profissional fazer mais pelo paciente do que seu instrumental técnico permitia.
As cenas enunciativas a respeito da psicanálise e de outras técnicas terapêuticas (como psiquiatria, terapia ocupacional, entre outras) foram associadas a um tipo de relação, na qual o profissional considerava não poder fazer nada por seu paciente, necessitando ser, portanto, superada. A idéia de cura era vista como anacrônica e descabida, a palavra paciente era substituída pela palavra usuário, as iniciativas terapêuticas eram substituídas por iniciativas de inserção social. Entretanto, por mais que as técnicas terapêuticas e seu jargão fossem rechaçados e substituídos por iniciativas de inserção social, quando tal inserção era promovida com sucesso, era considerada uma cura, ou pelo menos terapêutica, e a explicação do sucesso se valia de noções psicanalíticas. As idéias rechaçadas retornavam a propósito daquelas que pretendiam substituí-las. Assim, havia uma ambigüidade discursiva em relação à psicanálise: como tantas outras técnicas terapêuticas, não possibilitava a compensação das insuficiências atribuídas aos pacientes, e devia ser compensada por iniciativas de inserção social; quando estas últimas tinham sucesso, eram lidas e explicadas pelas idéias antes rechaçadas.
A explicação para esse aparente paradoxo repousa na compreensão da heterogeneidade constitutiva da instituição em estudo. Tal heterogeneidade também está presente na fundação e nas vicissitudes sofridas pelo acompanhamento terapêutico. Tanto é assim que diversas instituições de saúde mental têm o acompanhamento terapêutico entre seus recursos, e diversos agentes institucionais trabalham como acompanhantes terapêuticos, além de manterem seus consultórios. O acompanhamento terapêutico, na medida em que se legitima como prática reconhecida, pode ser considerado um tipo de relação que se estabelece entre agentes e clientes com alguma regularidade, ou seja, uma instituição que sustenta e se sustenta em um discurso.
Centros de Atenção Psicossocial floresceram em um período fortemente influenciado pela luta anti-manicomial, que pregava a superação do modelo asilar e a instalação de dispositivos pautados pela promoção da inserção social de pacientes que antes eram mantidos segregados. Esta marca discursiva de fundação dessas instituições e do acompanhamento terapêutico influencia fortemente a maneira de o profissional assumir um lugar e de atribuir um lugar na relação que estabelece com seu cliente. Isso significa que o profissional vai orientar suas concepções acerca do paciente para as características que o impedem de se inserir sozinho, tentando estimular as características que possibilitariam ao paciente inserir-se. O profissional tenderá a promover de diversas formas a inserção do paciente e a se opor aos impedimentos para a mesma. Uma vez que o aparato da segregação se apoiava em elementos discursivos terapêuticos (argumentos retirados dos discursos da psicanálise e da psiquiatria), o discurso de defesa da inclusão social voltou-se contra tais elementos discursivos. Esta marca discursiva, porém, não é a única.
A psicanálise é uma forte marca discursiva do campo de trabalho com a mente em nosso meio. Como tal, também influencia intensamente a forma de se assumirem e se atribuírem lugares nas relações que se instituem. Assim, aspectos do discurso psicanalítico, como noções etiológicas e suposições acerca de mecanismos de defesa e de estrutura psíquica, orientam a maneira como o profissional tece considerações sobre o paciente: o inconsciente está antecipado na escuta do profissional. Este ocupará o lugar de quem pode saber acerca dos aspectos mencionados, e de quem poder fazer intervenções características da psicanálise, como interpretações, pontuações, silêncios, confrontações, tendo como meta favorecer a operação das funções psíquicas do paciente que, dado seu lugar de psicanalista, supõe necessitar de seu trabalho.
Tanto o acompanhamento terapêutico como instituições de saúde mental sofrem a convergência das marcas mencionadas. Diversos profissionais são psicanalistas, membros de equipes de instituições de saúde mental e acompanhantes terapêuticos. Várias instituições de saúde mental que oferecem cursos têm a psicanálise em seu programa. Muitos cursos sobre acompanhamento terapêutico também. Psicanalistas são chamados com freqüência para dar supervisão para equipes de instituições de saúde mental e para equipes de acompanhantes terapêuticos. Há abundantes publicações de casos clínicos que propõem uma leitura psicanalítica de pacientes de acompanhamento terapêutico e de instituições de saúde mental.
Assumir um lugar no discurso é uma forma de reivindicar o exercício do poder de participar do que se considera verdadeiro e legítimo em uma dada realidade institucional. É o exercício de poder ser alguém considerado participante da instituição em que se encontra. Diferentes marcas discursivas levam a diferentes formas de ocupação de lugares, ou seja, diferentes formas de exercício do poder. Uma vez que tais diferenças ocorrem quanto ao exercício do poder, acaba sendo engendrada uma disputa entre elas. É como se o lugar de promotor da inserção social disputasse com o lugar de psicanalista pela oportunidade de ser ocupado pelo agente institucional. Correlatamente, é como se a inserção social disputasse com a elaboração psíquica pelo estatuto de verdade mais característica da necessidade fundamental do paciente.
Em decorrência desse embate, torna-se difícil uma articulação entre psicanálise e iniciativas de inserção social. Em entrevistas, é muito freqüente que profissionais relatem se sentir perdidos ou desamparados em sua prática: se vão em uma direção, sentem-se mal por não se dirigirem a outra. Esta parece ser uma razão importante para que o profissional sinta que não consegue fazer muito por seu paciente, uma vez que não tem como se dar conta das diversas imposições oriundas do dispositivo discursivo institucional. Isso vale tanto para equipes de instituições de saúde mental quanto para acompanhantes terapêuticos. Quando os mesmos profissionais trabalham em seus consultórios, não se detecta a ocorrência do que foi descrito até aqui. É muito provável que isso decorra do fato de não haver, no consultório, a heterogeneidade apontada.
Em muitas ocasiões, a prática do acompanhamento terapêutico tende a reproduzir a atribuição de insuficiências e a conseqüente tentativa de suas compensação. Sem que o profissional se dê conta, repete a formação discursiva que destaca incapacidades e desconsidera muitas potencialidades do paciente. Orienta-se a compensar as insuficiências atribuídas, e acaba por considerar sua formação técnica insuficiente, necessitando ser compensada. Instaura-se um círculo vicioso: o profissional se sente incapaz tanto de compensar a insuficiência do paciente como de fazer face à demanda de realizar o projeto de poder das marcas discursivas heterogêneas que embatem entre si; a fim de recuperar a importância de seu lugar, acaba por intensificar o destaque das insuficiências dos pacientes, o que tornaria mais necessária ainda sua presença, compensando, aparentemente, a fraqueza que sente contaminar sua atividade.
O que se está tentando demonstrar é a existência de uma matriz discursiva contratransferencial que se combina com os aspectos psíquicos do profissional, levando a um incremento de suas resistências. A angústia que leva o profissional a defender-se tem uma de suas origens em conflitos que se intensificam no contato com o paciente. Outra origem parece residir no conflito institucional decorrente da heterogeneidade da matriz discursiva que fundamenta o campo do acompanhamento terapêutico e das instituições de saúde mental. O profissional tende a cristalizar o paciente em um lugar de inferioridade de capacidade, e tem sua criatividade embotada. Pesquisas mostram que nessas circunstâncias, quando o profissional se depara com aspectos do paciente diferentes daqueles com que caracteriza seu lugar de insuficiência, costuma pensar que o quadro está piorando e os pacientes estão resistindo. O prognóstico torna-se sombrio e o profissional fica desesperançoso. Então, nem se cogita que tais características podem ser produtivas para o paciente, frutos de sua criatividade e profícuas para construções de superações de impasses do mesmo.
Ainda é freqüente que profissionais defendam-se atribuindo aos pais e demais familiares a impossibilidade de cumprir seu trabalho. Passam a considerar que seu trabalho não avança porque os pais não investem ou participam do tratamento como deveriam; julgam que os pais são a origem e a manutenção da patologia do paciente. Inconscientemente, estabelecem com eles relações culpógenas, de intensa rivalidade, resultando em obstáculo ao acolhimento e ao estabelecimento de alianças terapêuticas necessárias para o trabalho.
Uma vez que pesquisas permitem a revelação desse tipo de enlace contratransferencial, é importante que profissionais estejam advertidos para o risco de sua ocorrência. Do ponto de vista da ética, é necessário que o profissional se pergunte em nome de quê orienta seu trabalho. Como vimos, ele bem pode estar orientado para um resgate narcísico do potencial do profissional, o que se revela nada terapêutico para o paciente. É importante que supervisões contemplem tanto os aspectos psíquicos do profissional quanto os discursivos aqui apontados, quando se trata de impasses para o andamento do trabalho terapêutico. Experiências institucionais que se orientam nesse sentido têm obtido resultados significativos na superação do que foi mencionado.
A perspectiva de pesquisas revelarem aspectos que incrementam dificuldades no atendimento representa uma oportunidade de contribuição para a discussão e o fortalecimento dos parâmetros éticos que o pautam.
Referências Bibliográficas
GUIRADO, M. A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000. [ Links ]
GUIRADO, M. Instituição e relações afetivas: o vínculo com o abandono. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. [ Links ]
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LERNER, R. Instituições: da Psicanálise na ordem do discurso de agentes de Saúde Mental. Dissertação (Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999. [ Links ]
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Endereço para correspondência
Rogério Lerner
Av. Prof. Mello Moraes, 1721 & 05508-900 & São Paulo/SP
Tel.: (11) 3091-4386
E-mail: rogerlerner@uol.com.br
Recebido em 23/04/06
Aprovado em 01/06/06
1Psicanalista; Docente do Instituto de Psicologia (Universidade de São Paulo); Mestre e Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (IPUSP).