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Psychê

Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.10 no.19 São Paulo Dec. 2006

 

ARTIGOS

 

Reprodução assistida e subjetivação infantil

 

Assisted reproduction and the process of becoming a person

 

 

Maria da Graça Reis BragaI; Maria Cristina Lopes de Almeida AmazonasII

Universidade Católical de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo as autoras se propõem a refletir sobre o processo de subjetivação infantil, tendo em vista o contexto do desenvolvimento das tecnologias de procriação assistida. Para tal, irão se valer dos ensinamentos de Winnicott a respeito das relações primárias entre pais e filhos, articulando-os com o estado gestacional, nascimento e relações primárias entre os bebês e suas mães, no contexto das novas biotecnologias. Seguem discutindo as vicissitudes que acompanham a situação de ser mãe por meio dessas técnicas, e o tornarse sujeito nesse novo contexto.

Palavras-chave: Winnicott, Reprodução assistida, Relação mãe-bebê, Subjetivação, Safra.


ABSTRACT

In this article, the authors propose a reflection on the process of becoming a person, in case of children, facing the context of the latest assisted reproduction technologies. To reach this aim, this reflection is based on the lectures of Donald W. Winnicott about the first relationship between parents and children, making some links with the processes of pregnancy, birth and primary relationships, in the contemporaneous context of the new biotechnologies. It also discusses variable conditions and consequences of being a mother and becoming a person in these new situations.

Keywords: Winnicott, Assisted reproduction, Mother and baby relationship, Subjectivity, Safra.


 

 

O extraordinário desenvolvimento das técnicas conceptivas, desde o nascimento do primeiro bebê de proveta ao final da década de setenta, produziu um cenário em relação à procriação diante do qual torna-se necessário refletir sobre o processo de filiação e as relações primárias entre pais e filhos frente a um contexto novo e relativamente freqüente: o da reprodução assistida.

Particularmente interessa-nos pensar o tema da subjetivação infantil nesse contexto. Um de seus aspectos fundamentais é a relação primária mãebebê, que a princípio não é propriamente uma relação, pois não existem duas pessoas do ponto de vista psicossomático. A mãe apresenta-se identificada com o bebê que carrega no ventre, e este, ao nascer, apresenta-se indiferenciado dela, em estado de dependência absoluta.

O tema é vasto, complexo e diz respeito a muitas disciplinas e áreas do conhecimento humano, como a Medicina, a Biologia, a Psicologia, a Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, o Direito e a Bioética.

O desenvolvimento deste tema e as idéias contidas no presente artigo são decorrentes das considerações desenvolvidas na dissertação de mestrado em psicologia clínica intitulada: Maternidade e tecnologias de procriação – o feminino na contemporaneidade (Braga, 2005), e da pesquisa teórico-empírica que lhe serviu de base.

Essa pesquisa foi realizada entre os meses de junho a outubro de 2003, na cidade de Recife/PE, tendo como participantes seis mulheres que estavam ou já tinham estado em tratamento para engravidar, com êxito ou não nos tratamentos, utilizando as tecnologias reprodutivas disponíveis indicadas por seus médicos e especialistas, consideradas de baixa ou alta complexidade, como estimulação e monitoramento ovulatórios associados a coito programado; inseminação artificial homóloga (utilizando sêmen do próprio marido); Fertilização in vitro (FIV); e Injeção Intracitoplasmática de Espermatozóide (ICSI).

Das seis mulheres que nos emprestaram suas falas neste trabalho, duas não conseguiram engravidar após sucessivos e longos tratamentos; uma engravidou de um bebê apenas; uma engravidou de gêmeos; e duas de trigêmeos. Uma delas sofreu abortos progressivos dos trigêmeos, do segundo ao quarto mês de gravidez. Todas as que conseguiram engravidar submeteram-se a vários tipos de tratamento, de complexidade progressiva.

As mulheres prestaram seu consentimento por meio de termo escrito e se submeteram a uma entrevista semidirigida, partindo de uma questão disparadora: “como elas poderiam narrar suas vivências com a reprodução assistida, desde o início de suas buscas e tentativas para ter filhos”. As entrevistas foram gravadas, transcritas e o material coletado foi submetido à metodologia de análise de conteúdo, análise temática, no enfoque da pesquisa qualitativa, priorizando as narrativas produzidas em sua totalidade.

O objetivo geral da pesquisa foi compreender como se deu, para essas mulheres, a experiência de buscar a maternidade por meio de tecnologias e tratamentos médicos para procriação. Ao final da análise, tal objetivo pôde ser alcançado pela produção de análises temáticas em torno da discussão de três grandes temas/objetivos específicos: mulheres e biotecnologias na cultura contemporânea; o feminino e a maternidade; casais e famílias, pais e filhos.

Muitas questões estão presentes em uma discussão como a que propomos desenvolver neste trabalho, e na verdade estão muito longe de uma conclusão. Consideramos, inclusive, que tais questões não devem ser precocemente encerradas em conclusões apressadas e definitivas, pois o assunto é muito novo e a postura de não apressar conceitos diante de um fenômeno que se apresenta é muito importante. Para nos ajudar a pensar, iremos nos valer dos ensinamentos de Winnicott em vários momentos de sua obra.

 

As relações primárias entre pais e filhos na visão de Winnicott

Um tema central no pensamento de Winnicott é o da criatividade e suas origens (1951). A noção de criatividade aqui se distancia das artes e encontra seu significado em uma posição e atitudes em relação à realidade externa, as quais conferem ao sujeito um colorido, um sentido de que a vida é digna de ser vivida. Criatividade em Winnicott é uma proposição universal, que se relaciona ao estar vivo, e tem em seu oposto a “não-vida”, a submissão à realidade, o render-se à intrusão ambiental e à adaptação submissa.

A origem do desenvolvimento da capacidade (ou não) para o viver criativo volta-se para o início da vida do bebê, seu desenvolvimento primitivo, e para tal, é de importância vital a questão da provisão ambiental. No início da vida do bebê, a dependência é um estado fundamental e possui significado. Para Winnicott (1951), a história de um bebê não pode ser descrita levando-se em consideração o indivíduo, mas sim em termos da provisão ambiental que atende à dependência satisfatoriamente, ou que aí fracassa.

O que Winnicott chama de fenômenos transicionais é a maneira pela qual um ambiente facilitador, suficientemente bom, torna possível ao indivíduo, nos estádios mais primitivos de sua existência, passar do estado de não-integração ao estado de integração, e vivenciar sua onipotência, assim como enfrentar o grande choque da perda desta última.

Nas relações primárias entre pais e filhos, o primeiro momento da relação de objeto é o “objeto subjetivo” (Winnicott, 1951). O bebê é o objeto, não se identifica com ele. O objeto subjetivo, no dizer do autor, é uma espécie de “loucura” específica permitida aos bebês muito novos. Tal estado de coisas só se faz possível pela provisão ambiental suficientemente boa, pois tudo que existe na vida do bebê é criado no campo de sua onipotência. O bebê cria o objeto, mas para ser criado ele necessita “estar ali” no momento certo – essa é uma provisão ambiental suficientemente boa. Já com a mãe se dá o processo de identificação com a criança, e o reconhecimento dela como sujeito; o que é diferente da posição do bebê, que é de indiferenciação sujeito/objeto e dependência absoluta.

O objeto subjetivo é o primeiro objeto, não reconhecido como um fenômeno da realidade externa, como pertencente ao campo do “não-eu”. O seio materno é uma aplicação prática do objeto subjetivo. Esse primeiro momento é necessário para abrir caminho para o sujeito objetivo, para a construção do self e o estabelecimento de uma sensação de possuir identidade (Winnicott, 1951).

O sentimento de “ser” é algo que vem antes da idéia de conjunto, de estar em união ou em relação com algo ou alguém. O bebê, no início da vida, forma uma unidade com o outro, num processo de identificação primária, que é a base para os outros processos de identificação.

Winnicott fala de elementos feminino e masculino puros presentes em homens e mulheres. A relação de objeto do elemento feminino puro é justamente o que providencia esta experiência de “ser”, a continuidade de gerações, o que é transmitido de uma geração a outra pelo elemento feminino puro de homens e mulheres. Já a relação de objeto do elemento masculino pressupõe uma noção de separação, quando o bebê outorga ao objeto a qualidade de pertencer ao campo dos fenômenos externos, o “não-eu”, ou seja, a objetivação do objeto. Dessa maneira, o elemento feminino se traduz na relação com o seio ou com a mãe. O bebê torna-se o seio ou a mãe. O objeto é o sujeito e se relaciona com o ser. O elemento masculino remete ao “fazer”, aos impulsos e às relações do bebê com o mundo externo.

Para alcançar o estado de separação sujeito/objeto existe uma faixa intermediária entre o objeto subjetivo e o objeto objetivo, que Winnicott chama de objeto transicional. Dito de outro modo, o bebê cria aquilo que está ali graças à provisão ambiental e à capacidade da mãe em apresentar o mundo ao bebê de maneira simplificada e em pequenas doses, com ritmo, repetição e rotina, tornando o ambiente confiável.

Para Winnicott (1951), objeto é o outro dotado de subjetividade, isto é, alteridade, o que a princípio se traduz no que se chama de cuidado materno. Ele fala sobre “necessidades psíquicas” que se traduzem em amor materno e cuidados físicos. O afeto não vem só da relação com o outro, mas também do corpo. Isso nos lembra a lição freudiana de que a mãe, ao cuidar de sua criança e nela investir libidinalmente, traz o corpo do filho para a dimensão erógena, ou seja, coloca para o filho o horizonte de amar e ser amado. A possibilidade de o bebê futuramente poder investir nos outros passa por esse caminho.

O foco se dá na experiência do bebê, experiência pré-subjetiva. Não podemos falar precisamente em relação sujeito/outro no que concerne ao início da vida do bebê, pois o que existe é a indiferenciação, puramente experiência de ser, cuidado físico. Nessa fase da vida o cuidado se traduz na única maneira de amar e proporcionar a experiência da continuidade de ser.

Para o bebê, continuidade de ser é o meio ambiente facilitador (função materna e paterna). O bebê não existe sem o cuidado materno. A experiência de ser é proporcionada pela mãe suficientemente boa e pelo meio ambiente facilitador, que é adaptado pelas necessidades psicossomáticas (Winnicott, 1960).

Esse período deve servir como envoltório psíquico, continente, envelope; ele vem antes da dimensão do desejo. A necessidade é libidinal, é psicossomática. Para Winnicott, necessidade psíquica vem antes de desejo e demanda. O bebê cria, ele não recebe nada. É criativo, onipotente e simplesmente continua a ser. Continuidade de ser é o elemento puro feminino, tem a ver com o ser. Para a mãe é também a cultura familiar, o discurso que afirma algo relacionado com “eu tenho de ser como minha mãe quando eu for maternar”, é o ritmo feminino (Winnicott, 1951).

O bebê “apercebe”, ou seja, “cria ao lado”, não existe continuidade de ser sem criação. Do fundo indiferenciado da unidade bebê e cuidado materno (e também pela agressividade do bebê, que toca o meio, não apenas reage à invasão dele), gradualmente emerge a criança como um sujeito. Os bebês não são apenas produtos de suas mães e de seus pais, mas organizações subjetivas que se encontram “em marcha”. Cada bebê traz sua fagulha, seu ímpeto de continuar vivo, de respirar e se desenvolver, e cabe às funções materna e paterna propiciarem um ambiente apropriado (Winnicott, 1965a).

Para Winnicott tudo é continuidade, não há nada inaugural. A experiência do nascimento é uma continuidade. Há uma idéia do nascimento como agressividade, o movimento para nascer é acionado pelo bebê para gerar continuidade. O nascimento não é traumático por excelência, mas poderá vir a ser, caso a invasão do ambiente seja demasiadamente longa e intolerável. Tranqüilidade, quietude da continuidade de ser não significa monotonia.

A continuidade de ser é uma solidão essencial, mas não é desamparo. É justamente porque o bebê está amparado pelo cuidado materno que está sozinho. Não-solidão significa intrusão. A solidão significa que não tem outro. O outro que tem é o outro epidérmico, da sensação, da necessidade psíquica. O objeto subjetivo não é outro porque foi criado, mas é uma diferença. Só que é uma diferença advinda da continuidade de ser, que também é surgimento (Souza, 2003).

A posição da mãe nessa experiência é diferente. Ela é adulta, a vida continua, ela não depende do bebê, mas deve ter capacidade de se identificar com ele, na experiência de continuidade de ser e permitir gradualmente uma conciliação com seus outros interesses e investimentos. Ser mãe, ter filhos, é estar no “entre”, no espaço transicional. Preocupação materna primária é cuidado.

No pensamento winnicottiano toma vulto a questão do desenvolvimento emocional primitivo (1945). Ela se interessa pelos estádios muito precoces do desenvolvimento do bebê, pois antes de uma criança alcançar a condição de uma pessoa relacionada a outras e ao mundo externo, é necessário que tenha percorrido um longo caminho em termos de desenvolvimento primitivo.

Para Winnicott, algo de muito importante acontece na fase do nascimento. Um bebê maduro, nascido ao final de nove meses está preparado para o desenvolvimento emocional. Já o mesmo não acontece com os bebês prémaduros, nascidos antes desse período, que só vivenciam os fenômenos importantes do desenvolvimento emocional quando alcançam a maturidade fisiológica. Para Winnicott, ao contrário de muitos autores que tratam do desenvolvimento infantil, o período até os seis meses de vida, em termos psicológicos, é de fundamental importância. É nesse período que esperamos que ocorram satisfatoriamente os processos de integração (tornar-se uno, juntar os pedaços); personalização (desenvolver o sentimento de ser uma pessoa e estar dentro do próprio corpo); e realização (apreciação do tempo e do espaço e dos outros aspectos da realidade).

 

Ser mãe através da procriação assistida

O que pretendemos enfatizar dessa breve e parcial exposição do pensamento winnicottiano é a questão do desenvolvimento primitivo, tendo como condição fundamental a provisão ambiental, que para ser satisfatória, um fator básico reside na espontaneidade do cuidado materno. E é justamente esse fator que pode se tornar mais complexo e difícil nas mães que enfrentam longos e penosos tratamentos para engravidar.

A reprodução assistida, além de trazer esperança e profunda satisfação a muitos casais que desejam filhos e lutam contra a infertilidade, produz tratamentos desgastantes e estressantes em relação a vários pontos de vista (emocional, orgânico, financeiro, relacional etc). O relacionamento e a sexualidade do casal são afetados. A gestação, quando alcançada, é preocupante e angustiante – principalmente no primeiro trimestre, pelo medo da perda e a sombra do aborto espontâneo. Nos casos de gestação múltipla, a partir do sétimo mês também há maior preocupação, em virtude de eventos como a doença hipertensiva da gravidez e o diabetes gestacional, principais fatores da antecipação do parto e prematuridade dos bebês.

As mulheres entrevistadas em nossa pesquisa (Braga, 2005), que passam por um tratamento rigoroso para engravidar, têm “algo mais” com que se ocupar. Elas se confrontam intensamente com a dificuldade ou impossibilidade de gerar um filho (seja a causa médica fundamental de origem feminina, masculina ou do casal) e também com o desejo de ser mãe. Elas têm um sentido de auto-exigência, cobrança e culpabilização muito elevado, e é difícil para elas essa espontaneidade, esse estar “a sós” com seus filhos.

“Na época ela [a médica] me chocou, e eu saí muito arrasada da consulta com ela, porque o exame dele realmente tinha dado uma quantidade de esperma muito baixa. E ela disse: ‘olhe, do jeito que está, nem pra fertilização serve (...). Não, agora a gente vai investigar o que está acontecendo, e seja o que Deus quiser’. Foi muito difícil porque a gente fica muito aquela coisa, assim, que ‘a culpa é de quem eu não estou engravidando, por quê? A culpa é minha, a culpa é sua’, fica muito... aquela coisa. (...) Então, aquela ansiedade meu Deus, era uma dificuldade tão grande. (...) Eu sempre saía da consulta chorando, sempre, sempre, sempre. Saía e chegava em casa arrasada” (Eliane1).

“É angustiante, porque você vai vendo a idade passando. Eu tenho de correr contra o tempo, entendeu? Eu nova desse jeito e não consegui já em duas tentativas, aí eu comecei a me angustiar. A própria médica disse: você tem de correr contra o tempo. Você já tem dois ovários que já foram mexidos, quer dizer, eles já não estão mais eficientes como seriam se não tivessem sido mexidos. Então, quer dizer, é uma corrida contra o tempo mesmo. Em relação ao meu marido, não, ele tem o problema dele, não vai mudar. Mas eu não posso perder os meus dois ovários. Então a angústia é essa” (Renata).

São muitas pessoas envolvidas no processo. A mulher sempre está rodeada por especialistas, incumbida de cumprir prescrições do que deve ou não fazer, com muita insegurança na própria capacidade de ser ela mesma. Ser mãe é assumir a plena responsabilidade, e isso é diferente de fazer apenas o que os outros dizem, ou de ser atenta e disciplinada para seguir um roteiro homogêneo elaborado pelos estudiosos e técnicos.

Espera-se que a mulher grávida passe por uma gradual transformação, não apenas em seu corpo, mas também em seus sentimentos. Seu interesse movimenta-se do exterior para o interior, e o centro do mundo passa a residir em seu corpo. Ela começa a aceitar o risco de se preocupar com um único objetivo – o bebê que vai nascer (Winnicott, 1965b).

A mãe que sofreu muito para engravidar supervaloriza ao extremo a criança em sua barriga, tudo gira em torno dela. Mesmo antes de engravidar, a vida concentra-se em torno disso, nada mais importa. Por não se sentir bastante segura para carregá-la, necessita muito do apoio dos que não são mães daquele bebê, carece muito da cultura circundante, seja ela científica ou do senso comum da família e amigos. Essa mãe muitas vezes duvida de seus verdadeiros sentimentos e de sua compreensão acerca do bebê.

“Aí começou o medo de perder. A partir desse momento eu teria a possibilidade de perder. Eu fui uma grávida que eu... Eu só me lembrava o que tinha dentro da barriga, tomar o remédio na hora; se sentir uma dor ligar para o médico. De fazer os exames, de ir ao médico. De comprar o remédio, de ligar para o laboratório; eu não queria saber da outra parte porque minha preocupação era de os bebês nascerem. (...) Aí eu sei que foi uma gravidez assim, só mesmo de exames, só tem histórias de exames na minha gravidez, de exames, de médicos. Durante a semana eu ia duas, três vezes ao médico. Exame de sangue, ultra-sonografia. Eu acho que eu nunca fiz, ninguém fez, tanta ultra-sonografia. É muita ultra-sonografia, porque eu me preocupava em saber se tava bem” (Bernadete).

Algo muito importante é uma mãe sentir o mais cedo possível que seu filho é digno de ser conhecido como pessoa. A primeira tarefa materna é a de travar conhecimento com o bebê. Quando ele nasce, ela também não acredita completamente nele nos primeiros momentos. Assim, conhecê-lo é tarefa urgente, pois o bebê não é apenas um corpo a ser cuidado, é também uma pessoa. Se o bebê não é sujeito por não existir outro, e sim dependência e indiferenciação no primeiro momento, ele tem de ser sujeito para a mãe, pois só assim ela pode se identificar com ele, reconhecendo-o como pessoa.

“Então eu vim chorar no dia que eu cheguei em casa, vim chorar literalmente, porque aí desabou o mundo (...) e chorei tudo que eu não tinha chorado, porque eu sentia aquilo, eu não sabia como era, não falava com ninguém. Pelo amor de Deus, eu quero ficar sozinha! Eu não sei quanta coisa aconteceu naquele quarto trancada, chorando. (...) Aí sim, até esse momento... eu não quis ir ver as meninas quando eu saí do hospital. Eu ia lá, olhava, ainda era meio estranho para mim aquele negócio de mãe, sabe? Dentro da barriga era uma coisa, quando elas estavam fora virou outra, não tinha leite, não tinha nada. Aí era aquela coisa meio estranha, sabe? Eram os bebês que tavam ali, eram meus bebês, meus bebês, mas não tinha aquele, aquela coisa não. Porque eu ainda tava me sentindo tão mal, sabe? Eu tinha de desabafar de alguma forma. Então, quando foi de noite eu disse: ‘Eu quero ir no hospital, eu quero ver as meninas ’” (Bernadete).

Infelizmente essa cultura que circunda as mulheres que usam a tecnologia para engravidar resgata em muito a tradição de se pensar que até os seis meses de idade os bebês não são nada além de corpos e reflexos; que só a técnica do cuidado é o que conta, não efetivamente o cuidado materno. Winnicott (1965c) afirma justamente o contrário: a assistência materna é sempre pessoal e humana; os cuidados físicos proporcionam o suprimento de necessidades psicológicas, e o amor se expressa em cuidados corporais.

A cultura produzida pelas biotecnologias de certa forma contribui para atenuar a importância do bebê como pessoa, ressaltando apenas sua fragilidade como corpo, sua importância como filho de alguém que finalmente conseguiu engravidar e ter o filho a quem dar seu sobrenome, e o que é preciso fazer para que fique vivo e saudável do ponto de vista do organismo. A mãe é necessária como pessoa viva, como presença e corpo vivo, como experiência de continuidade de existência para o bebê, e muitas vezes, em virtude das gestações múltiplas e prematuridade dos bebês, é separada deles precocemente, assim como o pai.

“E tanto que, quando elas nasceram, a pediatra dizia: ‘Mãe, eu vou dar alta a C. [primeira filha]’. Na minha cabeça eu dizia: ‘Não, não dá alta não’... eu não ia conseguir levar C. para casa. Eu não ia saber como lidar com ela. (...) E conforme ela veio para casa, com seis dias, aí foi uma maravilha, uma maravilha, porque se ela tivesse dado alta a C. no dia que eu saí do hospital, tinha sido uma negação. Tudo que eu senti naqueles meses todinhos, entendeu? Eu tinha que botar para fora de alguma maneira. (...) E virou aquela festa dentro de casa, né? O bebê. E as outras eu ia de manhã, ia de noite, com ele, todos os dias” (Bernadete).

As mulheres que buscam as novas tecnologias de procriação como solução para a tão sonhada maternidade têm essa tarefa aumentada. Tal fato pode estar relacionado a sentimentos intensos e ambíguos, como o de não poder experimentar sua integração e realização idealizadas como pessoa e como mulher, uma vez que alcançar a posição materna, gerando um filho no próprio útero, para muitas delas, é um degrau de importância fundamental para tal completude. Outro fato também relacionado é a vivência da gravidez múltipla – um acontecimento significativo nos tratamentos de reprodução assistida.

“Ah! Ser mãe é assim... é dividir, é abdicar de muita coisa, é renunciar a muita coisa, é educar junto com ele, educar os dois... mas deve ser muito bom. (...) Eu tenho minha profissão, tenho minha vida, tudo. Mas eu acho que o filho era a plenitude, era tudo o que eu queria agora” (Denise).

“É impressionante o amor que você tem pelo..., assim, desde o momento que você sabe que está grávida. Eu passei quatro meses com os meus nenéns, e eu já era assim, apaixonadíssima. Eu digo, ‘ah, eu queria tanto meus dois de volta, até os meus três de volta, não tinha problema’. Eu acho que homem nunca vai entender essa relação da gente, não é?... Eu até sinto falta, ainda, tanta falta daqueles quatro meses que eu tava tão feliz, que eu tinha eles dentro de mim” (Simone).

“Às vezes a gente fica pensando que a gente está sendo egoísta, em vez de todo esse gasto eu podia adotar, né? Mas aí vem também a questão da mulher. A mulher quer ficar grávida, a mulher quer, né? Pode reclamar de dor nas costas, de tudo, mas está linda, se achando ótima, se achando linda, se achando poderosa, às vezes, né, porque está grávida. (...) Ah, não tem, em termos de vivência, não tem nem uma palavra para definir isso, mas eu me sinto assim realizada, muito feliz mesmo. Assim, ao mesmo tempo muito difícil, eu faria de novo, porque é uma coisa de você carregar mesmo em você” (Eliane).

Winnicott (1965d) traz uma nota sobre os gêmeos – antes um fenômeno não muito freqüente e hoje produzido em larga escala em laboratório. Para ele, quase todas as mães afirmam que não teriam escolhido gêmeos se tivessem sido consultadas. Hoje, as mães que passaram por tratamentos para engravidar simplesmente continuam sem escolha, pois ter múltiplos é o meio de ter um filho; ter múltiplos é, pois, um “acidente” que acontece com freqüência. Muitas ainda engravidam de múltiplos quando fazem fertilização em laboratório, e em virtude dos tratamentos dolorosos, invasivos, caros e muitas vezes longos, enunciam a preferência por dois filhos (o que estava em sua programação familiar) de uma vez, evitando submeter-se a novo processo.

“O pessoal fala: ‘e se vier três, e se vier quatro?’. Meu marido vive vendo o álbum da clínica, ele passou na página que tinha três, quatro, ele encostou o álbum, ficou logo apavorado... Mas, assim, eu sempre penso na grande felicidade, se tivesse que acontecer, se fossem dois meninos ou duas meninas, se fossem dois eu acho que seria... até por conta da minha idade, sabe? Ter uma gravidez agora que já está sendo difícil, e partir para uma outra depois. Eu acho que se já viessem dois seria o ideal” (Denise).

Em nossa pesquisa observamos também que algumas mulheres não se imaginam mães de tantos filhos ao mesmo tempo (Braga, 2005). Trata-se de um impacto muito grande, não elaborado durante a gravidez – na maioria das vezes de risco e muito problemática. Não há tempo para elaborações. Algumas relatam estados depressivos durante os tratamentos, na gestação ou no pósparto. Depois que as crianças nascem também contam a respeito de um choro ininterrupto, horas a fio, antes de poder ver os bebês e poder estar com eles.

Em contrapartida, também relatam a enorme satisfação de tê-los hoje, já crescidos, o orgulho e a felicidade de ter e de exibir filhos múltiplos. Uma boa mãe disposta a adaptar-se a seu bebê vê-se em maior dificuldade, sem dúvida, quando é mãe de vários de uma vez. Deve ficar imensamente mais complicado propiciar ao bebê o sentido de posse, a sensação de que exerce o controle sobre a situação. Um bebê que é gêmeo de outro (ou de outros) tem sempre um outro bebê (ou outros) com quem se defrontar. Isso é diferente de desenvolver gradualmente uma disposição para permitir um aditamento familiar, como se dá no caso do nascimento de um irmão (Winnicott, 1965d).

“Ah, você pode ter mais de um, certo, isso eu sempre soube. Mas eu nunca imaginei que isso pudesse acontecer, entendeu? Dois ainda vá lá, mas três? Pra mim é muito. Mas, assim, quem não quer ter filhos gêmeos, né? Toda mulher gostaria de ter filhos gêmeos. Dois ainda... mas três? Pra mim já era demais. Mas olhe, eu fiquei triste quando eu perdi esse que não se desenvolveu, mas a própria Dra. Z. disse que ia ficar muito mais tranqüila, porque uma gestação de gêmeos é muito diferente de trigêmeos” (Simone).

Para Winnicott, conta muito se os gêmeos sentem ou não que cada um exerce a posse da mãe no início. A tarefa da mãe de vários é excedente. Como ela pode dar-se toda a mais de um ao mesmo tempo? Sua tarefa talvez não seja tratar igualmente a todos eles, mas sim tratar cada um como único, reconhecê-los imediatamente e descobrir-lhes as diferenças.

Hoje não contamos com a questão da semelhança física, pois os gêmeos fertilizados são quase sempre de aparência diferente, pois são usados vários óvulos e vários espermatozóides na fertilização. Todavia, sem dúvida a mãe terá uma tarefa enorme, pois são muitos ao mesmo tempo, e a tendência é tratá-los como se fossem um. Nada vale a pena se faltar um deles, uma vez que após o nascimento permanecem, com freqüência, por períodos variáveis na UTI neonatal. Muitas vezes não se consideram mães de verdade enquanto todos não vão para casa. Às vezes também experimentam sentimentos conflitantes de alívio e culpa em relação aos que já vieram para casa e aos que ainda ficaram no hospital. A maior dificuldade é manter com cada um dos filhos um relacionamento total, em que cada um seja plenamente reconhecido pela mãe.

É importante considerar a presença dos outros – presentes e ausentes ao mesmo tempo – embriões que sobram de um procedimento de fertilização em excesso e restam congelados. As mães relatam uma preocupação muito grande com os embriões que estão em criopreservação. Manifestam enorme dificuldade em olhar para os que estão ali com elas, e imaginam que poderiam estar lá no nitrogênio líquido. Há ainda a probabilidade de o “irmão gêmeo” ser implantado e nascer tempos depois. De alguma maneira, os que estão congelados também estão presentes na dinâmica e no imaginário familiar.

“E aí vai, faz a cirurgia, a colocação. Aí o pior não é a medicação, é a espera, saber se está ou não. E de quantos. Aí ela perguntou a mim quantos eu queria colocar, porque tem nove. (...) Aí eu optei por colocar só três (...) Sobrou, eu não vou fazer de novo, mas tem, o que é que vou fazer com esses outros? (...) Aí tem as explicações da médica, totalmente científicas: ‘não, não é embrião, é célula, só é embrião a partir do momento que coloca’. Mas fica sempre essa coisa, você aceita ou não aceita essa coisa. Porque, falando assim, parece uma coisa meio seca, né? Vou selecionar os de melhor qualidade, e aquele que está lá? Não poderia ser [filho] também? (...) E se eu não quiser ter mais, o que é que faz com esses que estão lá congelados? (...) Aí... são todas essas questões que são muito complicadas, que as pessoas pensam que não existem, né?” (Eliane).

A gestação é um período muito útil, um tempo suficiente para que possa ocorrer uma transformação imperiosa na mulher (Winnicott, 1956). Do mesmo tempo necessitam os pais e as pessoas que querem adotar. Geralmente as mães entram em uma fase de desenvolvimento de uma sensibilidade exacerbada – “quase uma doença” –, o que possibilita sua adaptação às necessidades do bebê, e da qual elas se recuperam nas semanas e meses subseqüentes. Tal fenômeno pode não ocorrer em muitas mulheres que engravidam.

A mãe também já foi um bebê e traz consigo as lembranças do cuidado de alguém para com ela; e essas tanto ajudam quanto atrapalham. A preocupação materna primária é o desenvolvimento, pelas mães, de uma capacidade para se identificar com seus bebês, e o protótipo de todo cuidado materno é o holding. Este não se reduz ao fato de a mãe segurar e manipular o bebê, mas dele cuidar, em unidade com ele – processo que proporciona ao bebê confiança e receptividade no e pelo mundo.

Algumas mulheres apresentam uma gravidez muito carregada de angústia e incômodos (Braga, 2005). Paralelamente, existe uma alegria incomensurável de estar finalmente grávida, depois de tudo. Uma sensação contínua e mesclada de medo, felicidade, desconforto e agonia. A gestação mantém o mesmo aspecto de velocidade da época dos tratamentos. Nada pode esperar, há uma infinidade de coisas e exames para fazer, não dando tempo para elaborações.

“Pra você ter uma idéia, quando elas nasceram, nasceram? Eu estava no dia assim..., porque eu tive pressão... a minha pressão subiu de um jeito que em uma semana eu troquei três vezes de remédio. Aí ela [a médica] juntou com uma equipe dela para definirem se iam nascer naquele dia, no dia seguinte. Estudar o caso, como é que estava, o meu açúcar que tava lá em cima, aquela coisa toda. E ela ligou de noite dizendo que no dia seguinte, às 7 horas da manhã eu estivesse no hospital para fazer cirurgia. (...) ‘Eu vou ligar para (nome da médica), eu não quero que ela tire os meus bebês agora. Eles vão ficar um pouquinho aqui dentro, eu não estou preparada, eu estou com medo’. Eu tava com medo, medo. Eu tinha medo de morrer literalmente” (Bernadete).

Curiosamente, elas terão o tempo para chorar depois que os bebês nascerem e estiverem precisando tanto da incubadora quanto delas. Ficarão, então, com tempo para pensar e sentir a gravidez e o fato de que materialmente já terão o filho (ou filhos) tão sonhado e desejado.

Um outro aspecto que observamos na gestação – por meio de manipulação externa de material reprodutivo, como nos casos in vitro, e que dificulta o relacionamento com o bebê dentro do útero e a vivência da criança imaginada – é a existência de dúvidas e fantasias em relação à autenticidade do material reprodutivo utilizado na fertilização. “Será que foi o meu óvulo, ou o sêmen do meu marido?”; “será que os embriões transferidos eram os meus?”. Vemos uma atualização da fantasia da “troca de crianças na maternidade”, uma versão atual e tecnológica desta.

“Mas é uma questão que tem de haver uma legislação em cima disso, até porque você tem de confiar muito no médico. Porque se eu fizesse e eu não confiasse na médica eu não ia poder pedir para ela guardar [os embriões excedentes congelados]. Porque, quem me garante que o que ela vai botar de volta é o meu? Quem me garante que o meu ela não vai vender? (...) Olha, tem muita coisa. Agora, é assim: existe uma preocupação muito grande, por exemplo, eu tenho plena confiança em minha médica, certo? Eu acho que você tem de ter isso, porque senão você chega lá, você é sedada, ela tira óvulos. Você não está lá dentro da sala para ver, você nem sabe que aquilo é óvulo. Se chegar com o material dizendo que é seu óvulo, como você sabe?” (Renata).

“Mas é aquela gravidez estressada, sabe? Com medo até de se mexer. (...) vez por outra tinha um sangramento, era aquele horror. Aí ia para o ultra-som. Foi bem estressada a gravidez; bem estressada, bem estressante. E eu ainda sonhava que, no dia que eu fiz... que implantou... transferiu os embriões, no mesmo dia um casal que ele era japonês. Pois eu sonhei a gravidez todinha que meu filho ia nascer japonês. Eles trocaram! [risos] Pronto, trocaram! Aí, na hora do parto eu fazia: ‘ai, meu Deus, se nascer japonês agora não dá mais não!’. Eu sonhava direto, ficava com medo, porque foi na mesma hora. Eu entrei numa sala de cirurgia, ela na outra. E a gente ficou justamente nos quartos na mesma hora, nos quartos da clínica. Aí eu falava: ‘C [marido], trocaram, trocaram! ’” (Beatriz).

Winnicott (s.d.) destaca que se a capacidade biológica da mulher (e do homem) para criar um bebê vivo e saudável pode chegar a 100%, em relação a sua capacidade psicológica só podemos chegar a aproximações. Nenhuma mãe é 100% capaz de produzir fantasisticamente um bebê vivo e total. E não é rara a surpresa diante do nascimento de uma criança que dizem ser sua e em quem ela ainda não acredita incondicionalmente.

Imaginem as mães e pais que passam por tortuosos tratamentos e inúmeras tentativas, permanentemente assistidos, em virtude de sua dificuldade para conceber espontaneamente. E também os que, mesmo depois de uma gravidez confirmada, atravessam uma ou mais experiências terríveis de aborto não provocado.

 

A subjetivação infantil

Quando os bebês nascem há uma dificuldade geral de se atribuir ao bebê qualquer coisa que se possa chamar de psicológico. Winnicott (1964) afirma que as mães geralmente vêem para além do que existe, da realidade material; e os cientistas não vêem nada além desta, a não ser que possa ser provado. No recém-nascido, fisiologia e psicologia constituem uma unidade, é a psique residindo no soma, e os bebês são humanos desde o começo. Para o bebê prematuro (o que acontece freqüentemente nos nascimentos de gestações múltiplas por fertilização assistida), a incubadora pode significar também condições psicológicas, ao lado do contato humano e do corpo da mãe.

À anatomia e à fisiologia do bebê soma-se a psicologia. A vida psicológica da criança não começa exatamente no momento em que ela nasce, pois há enormes diferenças psicológicas entre crianças prematuras e as nascidas no tempo esperado (Winnicott, 1945). O momento certo do nascimento é quando fisiologicamente chegou a hora de abandonar o útero, o que é antecipado na gravidez múltipla pelos fatores de risco de morte para a mãe e para os bebês. Dessa maneira, o nascimento é, ao mesmo tempo, continuidade de ser e intrusão ambiental.

Porém, muitas vezes o treinamento que os técnicos do processo de procriação recebem na maternidade quanto ao recém-nascido, por maior que seja sua importância para assegurar a integridade física do bebê (e sem dúvida é algo que esperamos deles e a eles agradecemos imensamente), de alguma maneira diminui parcialmente seu interesse pelos bebês como seres humanos – não apenas como vida humana, mas como pessoas, apesar de eles já o serem para seus pais e familiares.

A intrusão ambiental no processo de procriação assistida é um fato importante. Desde o início tudo é monitorizado e tem participação externa: na concepção e ao longo de toda a gravidez uma quantidade enorme de ultra-sonografias, além dos exames muito invasivos. Enfim, muito pouco é deixado ao encargo da mãe e do pai. Além disso, temos o fato de que nossa cultura valoriza e provoca demasiadamente uma forma de viver reativamente (à intrusão ambiental), em oposição a uma vida criativa.

Coloca-se em foco e reveste-se de importância e valor a questão da intrusão ambiental, pois ter filhos assim também é motivo de orgulho e status; é uma forma higiênica, atualmente bastante cultuada, de ser mãe e pai. A intrusão ambiental de vilã passou a ser exclusivamente benéfica, quase “um favor que se faz à natureza”, ao mesmo tempo divina, ingênua e atrasada, perfeita e imperfeita, sagaz e precária.

O bebê, em seu processo de integração, vivencia e vai incorporando e amalgamando experiências de acordo com as posições nas quais passou a pertencer ao mundo humano, tanto no tempo como no espaço (Winnicott, 1968). Há diferenças de maternagem, peculiaridades da angústia e da história de cada um, ou seja, aquilo que chamamos subjetividade, não apenas o fato de ser sujeito, mas tornar-se sujeito, um processo contínuo da existência. Isto não significa diferença de valor, melhor ou pior, normal ou patológica. Não se trata de valor, é diferença mesmo.

Como vai ser significado pela criança o fato de ter sido um bebê de proveta? De ter nascido de uma mãe de aluguel? De ter irmãos gêmeos (inclusive congelados)? Em seu ambiente, seus pais foram afetados pela dúvida, pela falta de confiança em sua capacidade de gerar, pelo dilema da infertilidade, tanto feminina quanto masculina. Para eles, durante certo tempo existiu a dolorosa constatação de que o amor, a sexualidade e o desejo eram insuficientes para procriar. Recorreram aos especialistas o tempo todo para dizerem o que fazer e como ser.

Isso tudo poderá imprimir uma diferença no que se refere à subjetivação das crianças. Somente o tempo e o trabalho na clínica infantil, na instituição e nas escolas podem nos dar pistas do que estas questões aqui apontadas podem ter trazido para as experiências infantis, e de como tudo isso será atualizado e significado no processo de subjetivação.

Tudo o que vimos apenas concerne ao problema de casais inférteis que recorrem a tratamentos para infertilidade. Também temos de considerar toda a parafernália de acontecimentos decorrentes do desenvolvimento tecnológico que excede a esse fato.

Hoje em dia já temos um rol bastante diverso e numeroso de experiências em todo mundo. Mães sexagenárias, septuagenárias, fertilizadas após a menopausa. Mães de aluguel brigando na Justiça com as mães genéticas pelos filhos. Informações genéticas misturadas, provenientes de vários gametas de pessoas diferentes para criar um embrião. Embriões criados sem a participação do gameta masculino; modelos beldades vendendo óvulos pela internet; embriões fertilizados a partir de gametas de pessoas mortas; mulher inseminada pelo sêmen do irmão; clonagem reprodutiva etc. Com relação a isso tudo, e mais ainda o que virá em maior escala, há muito em que se pensar.

Nos diversos tratamentos para engravidar é tácito que a cada frustração e fracasso, a cada gravidez que não vem ou a cada aborto que leva embora a gravidez tão sonhada é colocada uma nova opção, de maneira muito veloz. Nem sempre a mulher será levada a falar sobre seu desejo pelo filho, sobre sua dificuldade de gerar e de gestar, sobre suas relações primárias com suas próprias mães, sobre sua família, seu relacionamento com o marido, o desejo dele, e muitos outros fatores tão importantes quanto os bio-fisiológicos no que concerne à procriação humana.

“Mas é muita coisa. Você sente; você vê esse outro lado. As outras pessoas, que estão dentro do processo, nem param para pensar, pensam só na questão do dinheiro, pensam só... poxa, tanto remédio para tomar, coitadinha, mas não vêem as outras coisas que têm em volta do processo. Porque é muito mais complicado do que... é muito mais complicado do que se imagina (...) Porque tem várias fases, cada fase traz novas questões (...) Por isso eu acho que a sua profissão [psicólogo] devia ter... não deveria ser uma coisa de opção, mas deveria ser uma coisa devida, porque é uma questão de saúde mental mesmo. Porque tem gente que não está emocionalmente muito bem, acho que... ou essa coisa, ou acaba a relação, ou pira mesmo, não fica bem para a vida toda” (Eliane).

Se o modelo médico (associado à tecnologia arrojada e de ponta) critica o modelo psicogênico, em muito representado pela Psicanálise, no que se refere à responsabilização e culpabilização da mulher e do homem em suas dificuldades com a procriação, na verdade ele também não se coloca em uma posição que prioriza o cuidado, na acepção Winnicottiana. No modelo médico, a mãe e o pai também podem ser infantilizados, não porque são considerados em suas relações primárias e em sua dívida simbólica com seus antecessores, mas porque são excluídos do processo, não são nele implicados – apenas se submetem à intervenção. E a atividade dos genitores, muitas vezes, resume-se em torcer e rezar, além de “tentar evitar o stress” (sabe-se lá como), para não atrapalhar o procedimento.

No estudo dessas situações é necessário evitar a tentação, principalmente no campo da Psicologia Clínica, de nos situar como “ortopedistas” (Ceccarelli, 2002), no sentido de que se não for dessa ou daquela maneira de maternar, a doença não apenas é explicada, como também esperada. É preciso, também, não cair no engodo de recorrermos às origens dos bebês para explicar e caucionar os sintomas. Igualmente, em nossa escuta, não podemos cair no jogo do que “tudo o que se disser poderá ser usado contra quem disse”, ou o tão conhecido “se der cara, eu ganho, se der coroa, você perde”.

Afinal de contas, o profissional “psi” também faz parte do modelo acima, ao participar da equipe médica como aquele que vai, literalmente, segurar a mão da paciente no momento da aspiração dos óvulos ou da transferência de embriões para o útero. Ou para recebê-las no processo psicoterapêutico ou psicanalítico após um abortamento ou após anos de infrutíferas tentativas, o que nem sempre ocorre. Uma nova tentativa é agendada e a soma enorme que elas já gastam com a clínica médica freqüentemente as inibe de procurar a clínica psicológica ou psicanalítica.

Safra (2004) aponta que na clínica contemporânea infantil percebem-se os tipos de adoecimento de nosso tempo. A exemplo, temos crianças que não entram no mundo humano, pois são criadas pela técnica do cuidado e não pelo cuidado materno humano. Tudo é pensado, tudo é programado. A luz e a vitrine são insuportáveis; a visibilidade é total. As crianças não se sentem reais nem existentes. Temos crianças que são signos, emblemas sociais, logomarcas de seus genitores, e não crianças. Os bebês aqui são pessoas que se organizam apenas como máscaras sociais. E o vazio é enorme.

Temos também crianças que se desenvolvem como reação, repúdio ao social. Vêem o mundo como mentira, como hipocrisia e desejam avidamente um relacionamento com o outro mediado pela palavra que não mente. Temos pessoas altamente aderidas ao tecnológico, personalidades digitais, absolutamente virtuais. Parece que foram autogeradas, e nelas não se encontra traço humano de corporeidade cindida, de limite, de sexualidade.

A mutação cultural a que assistimos nas últimas décadas (Melman, 2003), impulsionada pelo desenvolvimento tecnológico e pela queda das grandes referências que sustentavam o mundo moderno (a Igreja, a política, as ideologias), coloca-nos o fenômeno das novas formas de parentalidade e filiação e as novas configurações familiares. Coloca-nos a diferença, a alteridade, o outro, e o desafio de imaginar, de pensar, de sentir e ser “como ele”.

Sintoma e sofrimento psíquico não são privilégio de uma forma de nascer, de ser gerado, de pertencer a um grupo familiar. Esse engano já tem realizado à exaustão suas incursões nas famílias por adoção. E esperamos que não se realize da mesma maneira nas famílias de procriação assistida. Subjetivação é um processo, é continuidade de ser, e as crianças geradas e nascidas por diferentes procedimentos, mesmo em casos de traumas reais, poderão ressignificar suas experiências continuamente e buscar novos nascimentos, livres de intrusão ambiental excessiva.

Do ponto de vista da clínica, o fundamental de tudo isso é escutar a diferença e nos deixarmos afetar pelo acontecimento. Que possamos nos permitir uma experiência de desconstrução de nossa visão tradicional de família, e possamos nos atualizar e refletir, do ponto de vista humano e ético, no tema das biotecnologias, para melhor articular nossas formas de escuta, compreensão e intervenção.

 

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Endereço para correspondência
Maria da Graça Reis Braga
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Recebido em 03/10/05
Versão revisada recebida em 09/02/06
Aprovado em13/02/06

 

 

Notas

I Mestre em Psicologia Clínica (Universidade Católica de Pernambuco/UNICAP); Membro do Laboratório e do Grupo de Pesquisa Interação Social e Familiar (UNICAP).
II Doutora em Psicologia (Universidade de Deusto, Bilbao/Espanha); Professora da Graduação em Psicologia e do Mestrado em Psicologia Clínica (Universidade Católica de Pernambuco/ UNICAP).
1 Os nomes aqui utilizados são fictícios, para preservar a identidade das participantes.