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Print version ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) vol.12 no.23 São Paulo Dec. 2008
ARTIGOS
A noção de para "além" no Seminário 5 de Lacan: a questão da articulação entre simbólico e real
The notion of "Beyond" in Lacan' s 5th Seminar: between the symbolic and the real
Valmir Sbano
Universidade Federal Fluminense
RESUMO
Por meio da retomada do tratamento dado por Lacan, em seu Seminário 5, à questão do chiste, trata-se de discutir a articulação do simbólico e do real. Este introduz uma dimensão de queda e redução, uma dimensão de finitização e satisfação: retorno, sob a forma do desejo, da dimensão minúscula e parcial da pulsão. Aquele, o simbólico, submete o sujeito a uma infinitização, a um deslocamento, a uma abertura, como o testemunha a estrutura de qualquer demanda. A realização desejante no chiste, como retorno do pulsional, mostra-nos, porém, que a abertura simbólica e desejante não encontra simplesmente termo, ao encontro de seu termo, mas antes ainda abertura. Esta leitura é apresentada ainda por meio de uma leitura do grafo do desejo.
Palavras-chave: Psicanálise; Chiste; Lacan; Simbólico; Grafo do desejo.
ABSTRACT
This essay discusses the articulation between the symbolic and the real around Lacan' s treatment of 'wit' in his 5th seminar. He introduces the dimensions of falling and that of reduction as well as those of finitude and satisfaction: thus returning, under the form of desire, to the minuscule and partial dimensions of the drive concept. The symbolic submit the subject to infinitude, to a displacement, to the opening, turning to be the witness of structure of every demand. However, the desiring accomplishment in wit, as a drive motion, shows us that the symbolic and desiring opening is not a definitive encounter, but it is in principle its opening. The present reading is also presented by consideration of Lacan' s Graph of Desire.
Keywords: Psychoanalysis; Wit; Lacan; Symbolic; Graph of desire.
Mesmo não comportando nenhuma satisfação particular imediata, o chiste consiste em acontecer no Outro alguma coisa que simboliza o que poderíamos chamar de condição necessária de qualquer satisfação. Ou seja, que vocês sejam ouvidos para além do que dizem (Lacan, 1999, p.156).
Sobre o cômico Lacan nos disse várias coisas; coisas muito densas e que exigiriam somente para elas um trabalho especial. Ele mesmo observou que esteve, neste seminário, muito longe de pretender esgotar a questão a respeito do cômico. Vou fazer referência a apenas duas ou três dessas afirmações de Lacan sobre o cômico.
Em certo ponto do seminário anterior, sobre a relação de "objeto", ele nos disse que o cômico é um riso a dois, enquanto o chiste é um riso a três (Lacan, 1995, p. 302-303). Rimos, na situação cômica, de uma certa queda. Há esse alguém ou esse algo que cai, e há aquele que ri. Um riso a dois. Quanto a essa queda, Lacan nos diz que ela também corresponde a certa separação da imagem (Lacan, 1999, p. 137). A imagem se separa de certo real e sai andando sozinha. É quando ele lembra da imagem do pato sem cabeça andando assim mesmo. Nós, então, até podemos já ver aí uma estrutura triádica, estrutura de três termos, pois há o real quedado ao chão, há a imagem que anda sozinha e há aquele que ri disso. Mas seja como for, Lacan nos diz que o cômico é um riso a dois, enquanto o chiste é um riso a três. Talvez porque na situação cômica esses três lugares não se escandem, não são pontos reconhecidos pelo endereçamento do sujeito que participa dela.
Freud já o tinha dito. Assim, Freud e Lacan se dedicaram muito mais ao riso provocado pelo chiste do que ao riso arrancado na situação cômica. Tanto Freud quanto Lacan viram no chiste as maiores relações com o inconsciente. Mas neste seminário, Lacan nos disse coisas muito novas sobre este riso provocado pelo chiste, sobre o dito mecanismo do chiste.
Primeiramente, Lacan nos lembrou que o chiste é um ato de enunciação, um ato de palavra. Isso, por si só, já o destaca do simples cômico: uma situação cômica pode ser produzida na fala, mas uma situação em que ninguém tome a palavra pode já ser cômica. Por exemplo, a queda de um transeunte. Assim como psicanaliticamente podemos falar de um privilégio da mentira sobre o fingimento pois podemos fingir apenas simulando uma imagem, enquanto para mentir precisamos dizer, sustentar um endereçamento da palavra , da mesma maneira, Lacan, tal como Freud, privilegiou o chiste sobre situação cômica. Daí também Lacan nos lembrar neste Seminário 5 que o chiste, afinal de contas, é uma demanda. Aliás, Lacan tanto acentuou o que o chiste tem em comum com a demanda como também o que ele tem de peculiar, relativamente às demais demandas.
O que o chiste tem em comum com as demandas? Como qualquer demanda, subverte o plano simples da expressão das necessidades, apenas por fazer passar as tais necessidades, as ditas necessidades, pelo plano da linguagem. O seminário põe e responde à questão: por que as crianças pedem a lua? (Lacan, 1999, p. 92). Elas pedem a lua porque é da essência da demanda, construída na linguagem, de pedir a lua. A introdução das necessidades na linguagem leva as necessidades ao infinito; impõe-nos, na verdade, uma necessidade de infinito. Assim, no chiste alguma coisa mirada no infinito, em um mais além de toda necessidade, está sendo visada, simplesmente porque o chiste é uma demanda.
Desde antes de Freud já se sabia que no chiste há algo de tendencioso, algo que procura sua satisfação. Trata-se da satisfação da tendência agressiva. Aliás, antes e depois de Freud, os autores não cansaram de apontar o elemento agressivo no riso. Quando Lacan aponta que por ser uma demanda o chiste estende-se a um mais além, a um infinito, ele está mostrando que o chiste justamente é o riso que está implicado em outra coisa que a mera satisfação da tendência agressiva. A tendência agressiva é um elemento essencial ao chiste, aliás, ao cômico também, mas que por si só não explica o chiste. Pelo chiste conseguimos satisfazer nossa tendência agressiva sobre alguém de uma maneira social e civilizadamente aceita, dizia Freud. Mas Freud já apontava para o aspecto metapsicológico, as sinuosidades dos mecanismos metapsicológicos do chiste, que davam o colorido próprio a ele. Afinal, podemos perfeitamente, pela oratória e pela argumentação, conseguir que alguém ou um grupo valide socialmente nossa agressividade contra alguém, recorrendo, por exemplo, a valores morais, sem que tenhamos com isso um chiste. O que falta aí para haver chiste? É o que não é simples dizer, mas um sinal externo está muito claro: falta o riso, falta a surpresa do riso (Lacan, 1999, p. 97). Uma coisa é, por exemplo, aplicar um impeachment sobre um presidente com consenso social majoritário; mas outra coisa é provocar chistosamente o riso contra esse mau presidente ou até o que é possível também para o chiste contra um presidente que nem julguemos tão mau assim. É tão verdadeiro que o chiste inclui uma dimensão outra do que a mera satisfação de uma tendência, que ele é capaz, dentro de certos limites, de nos fazer rir contra o que não ousaríamos de outra maneira nos levantar. Um chiste pode nos fazer rir contra nossos próprios valores, mesmo que em seguida ao escape de riso nos censuremos íntima e pesadamente por tê-lo feito. Este exemplo é muito feliz em mostrar que no chiste uma dimensão outra, terceira, está presente.
Lacan nos indicou, então, que há uma dimensão de grande Outro que é visada pelo chiste, para além do pequeno outro objeto da tendência.
No chiste, uma tendência se formula com as palavras e com as significações do Outro, tal como se dá, aliás, com qualquer demanda. Mas o chiste tem uma peculiaridade em relação às demais demandas. No chiste o falante passa, por um segundo que seja, pela suspensão do sentido, pelo sem sentido, por alguma subversão do sentido em que se dava uma conversa. E Lacan nos fez ver aí algo maior do que a simples subversão do sentido de uma conversa. No chiste o falante, mesmo sem saber disso, passa pelo pouco de sentido próprio a todas as significações constituídas por esse Outro Outro de onde partem nossas próprias demandas (Lacan, 1999, p. 102). No chiste, o falante como que evoca o pouco de sentido de tudo o que ele pode encontrar no Outro, lugar da palavra, para articular a tendência pulsional, para articular aquilo que, em determinado ponto do seminário, Lacan chamou de o mais primário, o mais primitivo para o sujeito.
Mas o chiste não é apenas o equivalente desta denúncia. O chiste, aliás, não é de modo algum uma denúncia dos limites do lugar da palavra. O chiste também não é um elogio ou uma apologia do inefável ou do primitivo perdido. Pois o chiste, além de passar por e de apontar para este pouco de sentido de que padecem juntos, o Outro e o sujeito, o chiste, além disso, passando por isso, realiza um passo-de-sentido (Lacan, 1999, p. 103). E exatamente o que o testemunha é o riso, surpreendente, digamos assim, para o sujeito e para o Outro, o riso que o sujeito do chiste ao mesmo tempo, de um lado, impõe ao Outro (ouvintes do chiste), surpreendendo-o, e de outro lado, recebe graciosamente do Outro (idem), como um reconhecimento do passo dado. No riso do chiste temos um sujeito que fez graça com o pouco do Outro (lugar da articulação da tendência), e portanto, de seu próprio pouco, mas temos simultaneamente um sujeito que fez de seu pouco, e do pouco do Outro, uma graça, no sentido maior do termo: um dom, uma passagem, um passo. Um sujeito que fez, enfim, algo com o pouco de sentido próprio dessa nossa sujeição à linguagem; e por ter feito algo com isso e disso, ao mesmo tempo produziu e recebeu o reconhecimento em forma do prazer do riso.
Nós então poderíamos até dizer que este riso do Outro trazido pelo chiste é um certo tipo de felicidade no para além da palavra (Lacan, 1999, p. 156). Uma feliz articulação do simbólico e do real. Mas o importante será justamente caracterizar com precisão de que tipo de felicidade estamos falando.
Primeiramente é essencial perceber o que está implicado no fato de que esse reconhecimento dado pelo Outro seja dado sob a forma do riso. Ou seja, não é um reconhecimento em forma de significação ou sentido, pois justamente o que se reconhece aí são os limites da significação e do sentido. Este reconhecimento no Outro de um passo ou ato de um sujeito, é o reconhecimento de um pas-de-sens, passo de sentido, mas também um sem sentido: reconhecimento de um sem sentido. No ponto em que o sujeito toca com sua língua na insuficiência da linguagem, na insuficiência do Outro, o reconhecimento não poderia jamais ser dado por um Outro como mero lugar da articulação simbólica. Esse reconhecimento dá-se então como uma explosão desse Outro, explosão de riso, abertura e vibração de suas entranhas. É um Outro que deseja, um Outro que ri, aquele que aparece junto ao ato de enunciação chistoso do sujeito. É o Outro que ri por trás do Outro que serve de lugar earticulação na linguagem que vem dar o reconhecimento ao ato sem sentido do sujeito chistoso.
O chiste vai além do sentido e vai além das regras encontradas no Outro, como mero lugar de articulação das necessidades em palavra o primeiro Outro da constituição das demandas. O chiste faz passar, com ligeireza com aquela ligeireza das mãos do mágico, do ilusionista um passo pelo pouco de sentido dessas regras da linguagem encontradas no Outro. O chiste aponta o pouco de sentido deste Outro. E o chiste o faz de tal modo que obtém um reconhecimento, em forma de explosão de riso. De quem o chiste obtém o reconhecimento? Do Outro, é claro, de quem mais seria? Mas, digamos, de um outro Outro, ou melhor, de um certo ponto ou dimensão que não estava revelada ou presente de saída no Outro, lugar da palavra. O chiste obtém seu reconhecimento de um Outro que não responde mais com articulações na linguagem, mas de um Outro que tem prazer, que goza, que deseja. Aparece um Outro que se rasga que se rasga de rir. O reconhecimento ao chiste é dado ao sem sentido, pas de sens, do chiste e dado por um Outro ele mesmo sem sentido, um Outro que é puro acontecimento de desejo, o riso do Outro.
A questão que nos ocupa aqui é o para-além que comparece na estrutura do desejo, e no ensino de Lacan, a natureza do que se dá nesse para-além. O que nos parece importante é este comparecimento do para-além no chiste e sua forma de comparecimento. É um comparecimento em forma de Outro que acontece, acontece de ele rir, e não de Outro que significa nossas demandas. Um Outro que comparece em forma de Outro desejante. Depois de o Outro rir de nosso chiste, a gente bem que poderia emendar uma observação do tipo: "ah, você bem que gosta... hein?". O Outro que comparece reconhecendo o pas-de-sens do sujeito é um Outro que gosta. Não esqueçamos, há sempre também uma tendência pulsional sendo satisfeita no chiste. Há sempre por força e obra do chiste o desvelamento de algo próprio à tendência, próprio ao mais primitivo que não pode ser assimilado aos significantes da demanda, não pode ser integrado à articulação significante. Ou melhor, precisão importante, algo que só pôde vir-a-ser, só passou a ex-sistir, em um para além da ação significante; e algo não reintegrável à articulação significante.
Então, se podemos dizer que o chiste como demanda levou-nos para além de uma simples permissão social de satisfação de nossa tendência, se ele fez, como demanda, uma inflexão e subversão da tendência pelos significantes da linguagem, podemos dizer também que ele levou para um mais além esta própria satisfação da tendência; ele a fez acontecer como desejo do Outro, como riso do Outro, riso recaído sobre os próprios limites do Outro, entendido como mero lugar de articulação simbólica. Com o riso do Outro no chiste aparece um desejo que se realiza como acontecimento real, riso, no além da mera articulação simbólica das demandas. Descobrimos assim que "a pessoa", entre aspas, tal como dizia Freud, "a pessoa" que é objeto da tendência agressiva do chiste é o próprio grande Outro, como lugar de articulação das demandas. Pois o chiste, em última instância, aponta sempre que algo pode passar pelas brechas da linguagem, algo que essencialmente é heterogêneo à linguagem, ainda que absolutamente inexistente sem ou antes dela. O chiste, em última instância, aponta que o Outro, como mero lugar de palavra, não porta ou comporta a verdade do Outro como desejante, como acontecimento de desejo (Lacan, 1999, p. 156). E esse riso, provocado pelo chiste, é uma espécie de retorno da tendência, se tendência pulsional houvesse antes do significante, pois é satisfação no além da articulação simbólica. Se fizemos desse riso um correspondente do comparecimento do desejo do Outro, devemos então lembrar o que nos diz Lacan neste seminário sobre o desejo e sua posição relativamente à demanda e à necessidade: o desejo é o resíduo da operação da demanda sobre a necessidade (Lacan, 1999, p. 100).
Mas proponho uma parada nesse desenvolvimento para lembrarmos de um outro riso, não mais o riso do Outro no chiste, mas o primeiro riso do sujeito.
Lacan recorre a uma observação de Spitz (Lacan, 1999, p. 342), autor de inestimável valor para o exame da questão em Psicanálise. O primeiro riso do bebê é aquele que pode ser provocado, a certos meses de vida, por uma simples máscara de papelão. Do rosto humano, familiar ou não, esta máscara deve reter apenas a simetria dos olhos, o nariz, a forma aproximada, um pouco de movimento, similar às máscaras gregas do teatro. O bebê sorri perante esta pura presença simbólica de um Outro. Nenhuma expressão de sentimento, nenhum sorriso, nenhum traço característico daquela família, nada dessa ordem é aí indispensável, basta a máscara simbólica de um outro para que da criança arranquemos um reconhecimento bem genuíno de prazer humano. Mais do que isso, Lacan nos diz que a criança aí reconhece o para além inerente a toda presença. A criança reconhece um outro sujeito por trás da máscara. E é nessa linha que Lacan dirá que no extremo oposto dessa máscara edesse reconhecimento dado pela criança ao para-além, o pólo que se impõe é o pólo da identificação (1999, p. 344). No para além da máscara e de seu riso reconhecedor aparece a identificação. A identificação, não as lágrimas, é o oposto do riso. Mas trata-se de um pólo oposto que mantém uma tensão constitutiva com a máscara e o para-além que traz o riso. Então, por trás da máscara que provoca o primeiro riso da criança, Lacan vê se desenhar uma cara-de-pedra, um ponto de parada desse riso. Lacan dirá, então, aproveitando o trabalho de Spitz, que o que espera esse lançamento ao para além a que se lança o riso perante a presença simbólica da máscara o que espera esta entrega do primeiro sorriso oferecida pela criança à presença simbólica do outro, o que a espera é uma cara de pedra, cara séria, que lhe dá um termo de identificação. A máscara, afinal, promete um sujeito por trás da máscara, diz Lacan, e ele lembra que a criança romperia em choro se uma segunda máscara aparecesse por trás da primeira (1999, p.136). O riso perante a máscara nos mostra que o sujeito infantil reconhece seus pequenos outros circundantes não apenas como meros assistentes de suas necessidades, mas como outros que lhe dão acesso a um para-além das necessidades. Reconhece esses pequenos outros como presença do grande Outro.
Na seqüência deste seminário, em dois momentos ainda, vemos mais ou menos Lacan tratar ainda e sempre da mesma questão: no para além a que é lançado o sujeito por seu concernimento simbólico, o que ele pode encontrar? Ou melhor, o que ele encontra, necessariamente? Quando Lacan fala do riso da criança, desse lançamento infantil da criança em reconhecer o para-além da presença, ele nos diz que a criança encontrará uma cara de pedra. Quando Lacan fala do chiste, no endereçamento ao para-além nele contido, ele nos diz que o sujeito encontra o riso do Outro, como um retorno da satisfação da tendência em forma de desejo do Outro. Quando Lacan nos fala do mais além contido na demanda de amor na demanda de amor como aquele aspecto de fundo em toda demanda, no que ela se dirige ao ser do Outro, à própria existência do Outro, algo de muito além do que o Outro simplesmente como lugar da articulação significante , então ele nos diz que encontramos a fantasia, o Schlag da fantasia (1999, p.252), ou o falo (p. 165, 240). E quando Lacan nos fala ao que tende uma análise, ele nos fala de uma frase uma frase que em tudo o que diz o sujeito, ele a tenta dizer, sem conseguir dizê-la (p. 486). Lacan nos diz: trata-se, em uma análise, de ajudá-lo a dizê-la. Em todos esses momentos do seminário podemos ver sempre a mesma questão: em que vai se esbarrar, como vai se realizar este para-além contido em toda demanda? Essa infinitização do para além vai se esbarrar de novo com uma finitude, ainda que finitude de outro nível.
Vimos, a propósito do chiste, que o sujeito encontra o riso do Outro, encontra um Outro que ri do sem sentido, como um acontecimento de satisfação pulsional, depois de todo o trabalho de subversão operado pelo simbólico da demanda sobre o que teria sido uma tendência primitiva. O Outro que ri no chiste é um Outro que é cúmplice dessa nossa maneira de fazer passar uma satisfação pelas brechas das insuficiências da linguagem, pelas brechas do sentido constituído pelos termos do Outro, termos da linguagem. Ele é cúmplice dessa nossa pequena traquinagem com a linguagem. Ele nos mostra que aí está o desejo, nessa traquinagem, nossa e dele.
Se foi a própria linguagem que nos prometeu um mais além, o que encontramos nesse mais além não é linguagem, é um acontecimento real de satisfação não reintegrável na linguagem ainda que não propriamente anterior a ela, e impossível sem ela. Lembremos, não podemos recontar o mesmo chiste com os mesmos efeitos; ele não pode virar código comum e ainda funcionar como chiste; ele é, se quisermos, um momento de felicidade (Lacan, 1999, p. 156); mas felicidade que não vira código, não vira regra de linguagem, não vira regra de felicidade. E que ele, esse momento de felicidade, não vire regra de linguagem, isso é lei, a própria lei do desejo.
Então, a felicidade de que falávamos pouco acima começa a tomar alguns de seus traços principais: ela, primeiramente, é do sujeito na própria medida em que é do Outro; ela é conquistada pelo sujeito, junto ao Outro, na mesma medida em que é recebida pelo Outro, concedida pelo Outro; ela é, digamos, traquina, como o riso do chiste, feita de traquinagem com a linguagem; ela não é duradoura, porque é acontecimento: ela não vira código ou regra de felicidade; ela tem alguma coisa a ver com as brechas oferecidas pela linguagem, e então, ela é, de certo modo, transgressiva em relação a essas regras, ao mesmo tempo em que as têm como necessários parâmetros e portais de passagem, pois é por essas brechas que passa a feliz realização do chiste; ela, esta feliz realização do chiste, como um momento da própria felicidade possível do falante, é obtida junto ao Outro, ou seja, em um certo ponto de alteridade; mas esse Outro justamente reduzido a acontecimento de sem sentido, marcado por sua barra.
Todas as outras formas que vimos Lacan apontar como o que pode realizar este para-além do horizonte simbólico da demanda portam esses traços muito característicos.
Assim, por exemplo, a cara de pedra, termo sisudo, termo de parada, que realiza surpreendentemente esse sujeito que a criança reconhecia prometido por trás da máscara. Confrontada com a cara de pedra, a criança pára de rir, e como o papa, como papai, ela fica séria (Lacan, 1999, p. 344). O sujeito que ela entrevia prometido por trás da máscara, por identificação dela com a cara de pedra, vem a ser ela mesma, mas feita outra, já que agora ela está séria.
Assim também a fantasia, esse imaginário com função significante, esse bate-se numa criança", esse Schlag do gozo masoquista de cada sujeito eis o que o sujeito poderá encontrar nesse além, nesse horizonte da articulação significante, onde o sujeito buscava, onde o sujeito sentia que ia comparecer... o ser do Outro, a existência do Outro (Lacan, 1999, p. 418).
Na verdade, não foi isso que aconteceu com Freud no momento em que ele buscava a própria existência do inconsciente? Freud não buscava o real do inconsciente, o ser do inconsciente, naquela análise do Homem dos Lobos? E o que ele encontrou, então, não foi simplesmente uma fantasia? Quando Freud encontrou alguém a quem ele podia demandar a lua do inconsciente, o real último do inconsciente que ele procurou a vida inteira, quando Freud encontrou o Homem dos Lobos, sujeito demasiado dócil a sua sede de investigação (pois era talvez um psicótico), quando Freud podia aspirar encontrar o âmago do inconsciente infantil em carne e osso, ele encontrou bastante carne, sim, o coito modus ferans, mas como mera fantasia.
Resta a pequena frase a que nos pode levar o próprio caminho de uma análise. No lugar do quê Lacan diz que vem esta frase? Ou melhor, no lugar do quê Lacan diz que ela pode vir?
Até então, pensava Lacan, os analistas prometiam um acesso a um novo padrão de comportamento; acesso a um comportamento normal, uma plena maturidade genital, o acesso a uma oblatividade que resolveria ou daria condições ao sujeito de resolver com equilíbrio e integração suficientes o mais difícil em sua vida, a relação entre os sexos, a relação sexual.
No lugar disso, Lacan nos diz que o máximo que o analista pode fazer, quando ele o pode, é ajudar o sujeito a formular aquela frase que lateja, impronunciada, sob seu sintoma. Então, vejamos: após tanta procura, tanto trabalho, tanto sofrimento, antes e durante uma análise, após tudo isso, uma frase. Uma frase! E pior ainda, que natureza teria esta frase? Em que forma ou sintaxe ela viria? Pergunta pela sintaxe, pois já nem podemos esperar grande coisa de sua semântica; não podemos esperar dela uma significação respondente às interrogações do sujeito, nem mesmo uma significação respondente a sua interrogação essencial. Esta frase, não podemos nem mesmo esperar dela a estrutura de um daqueles períodos longos, com várias orações subordinadas intercaladas, como aqueles períodos de Proust, que constituem por si só um longo parágrafo. Um frase bem pequena, é o que podemos esperar dela. No para além de todo o trabalho analítico... uma frase, uma pequena frase. Não uma nova personalidade, como nos prometiam, ou melhor, nos exigiam, segundo Lacan, os pós-freudianos. Não. Uma frase. E na verdade, aquela frase de sempre, latente em toda sintomatologia, só que agora nova, pois enunciada pela própria boca do sujeito.
Temos, então, em cada uma dessas pontuações, alguma coisa de finito, ou estanque, ou pequeno", se podemos dizer assim. Encontramos sempre alguma coisa que se inclina para a condição do objetal. Por trás da máscara que me promete uma presença subjetiva, encontro a cara de pedra, parada estanque para o meu primeiro riso, termo de identificação. Lá onde a demanda visava a própria existência do Outro, o ser do Outro, para além da simples significação de demanda de satisfação de necessidade, temos o desejo e seu corolário, a fantasia. No horizonte do trabalho analítico, constituído todo ele por uma ativação tal da demanda que ela toma o caminho de demandas regressivas, que certamente não implicam uma mímica infantil ou fetal sob o divã, mas que implicam um desrecalcamento, certamente custoso, dos significantes orais, anais, infantis enfim no horizonte desse trabalho analítico uma frase.
Enfim, depois do incondicional da demanda, abertura ao infinito, temos a condição absoluta, finitização no ponto de um certo impossível.
Mas, então, o que é feito do para além, trazido pelo significante; trazido, enfim, expressamente por este seminário, mais do que por qualquer outro?
Ora, a psicanálise tem esse paradoxo: nenhum discurso como ela pôde demonstrar, evidenciar de tal modo os estreitos limites do porvir humano, da condição humana. Nenhum discurso como ela pôde exibir tão às claras a pequena coisa que dá peso, gravitação, aos impulsos de transcendência, às sedes de infinito que o homem dá provas de portar, tanto em seus grandes projetos históricos, quanto em sua mais cotidiana comédia amorosa. Não somente as crianças: escutando bem, constatamos que todos nós pedimos a lua. Mesmo aqueles que inibem o pedido, querem a lua. Mas a psicanálise nos vem mostrar que o próprio desejo humano faz comparecer ao homem, no lugar dessa lua, algo de bem menos substancial e transcendente do que ela. O próprio desejo traz com ele estacas e trilhas, não muito variadas, pelo menos não infinitas. Mas, do mesmo modo, a psicanálise não é um discurso reducionista; sobretudo não é um discurso reducionista de discurso. Como falamos, analistas! Como falava Freud! Como falava Lacan! E, sobretudo, como convidamos a falar! Este é o grande paradoxo da psicanálise.
E este paradoxo está presente na própria estrutura do dito grafo do desejo.
O grafo faz um segundo andar, todo feito de algoritmos simbólicos, se suspender ainda para além do termo absoluto, e minúsculo, do desejo (d). O desejo, termo minúsculo, acessa ele próprio aos termos maiúsculos da confrontação do sujeito com a demanda, $#D, e ainda, ao significante da falta do Outro ou seja, não a constatação silenciosa da falta do Outro simplesmente; não apenas a insuficência do lugar do Outro como plena articulação significante; mas a falta do Outro retomada ou representada, Representanz, por um significante. O segundo andar do grafo é, então, todo feito de um convite ao dizer, e como toda palavra é demanda, convite à demanda. É verdade, também, que depois de toda essa enunciação do segundo andar do grafo, se seguimos seu movimento que retorna ao nível de onde se partiu, se retornamos às bases do primeiro andar toda essa enunciação se confrontará de novo com algo de impossível e finito, a degradação absoluta da fantasia ($#a).
Mas o grafo ainda nos leva a um pouco além dela, e termina digo: terminaria, pois não se trata de um circuito cinemático em uma superfície estática, não se trata da descrição de um percurso em um mapa termina" em I(A).
Esse algoritmo e sua posição no grafo têm seus mistérios.
Não nos parece que I(A) seja simplesmente o equivalente algébrico do freudiano ideal do eu. Note-se, por exemplo, que ele não é escrito I(a). Certamente ele é o equivalente lacaniano do conceito freudiano, mas Lacan tentou mostrar, tanto na escrita deste algoritmo quanto na conceituação e lugar que ele deu a ideais e ao que está por trás do advento estrutural dos ideais (em particular neste seminário e em seus capítulos sobre o Édipo) Lacan tentou mostrar que, bem mais, há a função constitutiva do um no Outro. Dito de outro modo, Lacan tentou nos mostrar que "um é Outro". O um de que se trata, o um que há, não é o um que se encerra em si mesmo, mas é o um que é Outro. Se disséssemos que o um é o um, o que diríamos em seguida? Que o Outro é o Outro, que pão é pão, e queijo é queijo. Enfim, calaríamos. Calaríamos por força da identidade plena, letra a letra, de cada coisa com cada coisa. "Um é Outro", I(A), é o próprio algoritmo do paradoxo que a psicanálise nos vem indicar e iniciar. Pois esse termo finito e impossível que é o desejo não é um termo finito e impossível que desarticula, mas antes, no "espaço virtual" do grafo e da vida, é o termo finito e impossível que articula Um a Outro: termo a passagem, fim de prática a reinício de prática, limite a desejo, impossível a ação.
A extremidade do grafo do desejo, I(A), assim como o produto do discurso do analista, não se realiza como um objeto, um real que desarticula. E é por isso que Lacan veio, nesse seminário, invocar a questão do chiste para introduzir em seu ensino a estrutura do desejo.
O riso do Outro ao chiste é um acontecimento, um evento real. Não é uma significação, nem a adição infinita de mais um termo significante: mas também não é uma voz1.
Por que o riso não é uma voz, se ele também vem no limite da palavra? Afinal, ambos parecem cair, saltar, do órgão da palavra. Por que o riso não é uma voz? Porque a voz, como objeto a, é um sempre um real odioso que cai do órgão da palavra. Afinal, quem suporta ouvir a própria voz? As vozes psicóticas não são quase sempre vociferações? A presença do objeto a, a voz no caso, é sempre dilacerante, devastadora, presença da morte, anamorfose de caveira. Mas o riso no chiste, que traz consigo certamente a satisfação pulsional da tendência, o riso do chiste, que faz soçobrar grandes valores em irrisão, que não é, então, nunca propriamente inocente, também nunca é realmente acusador. Certamente não é feroz como o é a voz. O riso do chiste, com toda sua ponta de malícia e tendência, é significante, mantém aquela ambigüidade significante que nos faz após ele até mesmo perguntar: de que se riu afinal, quem riu afinal, de onde se riu afinal, até onde se riu afinal? Aliás, não é nada raro que depois de algumas pessoas rirem juntas de um chiste, elas, conversando a respeito, se darem conta que explicam o próprio riso de maneiras diferentes, ou até contraditórias, excludentes.
O riso não é palavra, mas é de qualquer modo comparecimento significante da alteridade do desejo até mesmo em seu termo de satisfação. E como comparecimento significante é relançamento de um novo para além. O Outro, no riso do chiste, mostra-se bem como um Outro que gosta. Ele gosta (eu gosto) mas do quê mesmo? Comparecimento satisfatório do desejo, então, mas ainda com uma marca de sua estrutural abertura.
Referências bibliográficas
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 1992. (Coleção Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. (Coleção Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. (Coleção Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. (Coleção Campo Freudiano no Brasil). [ Links ]
Endereço para correspondência
Av. Roberto Silveira, 307 24230-152 Icaraí Niterói/RJ
Tel: + 55 21 2610-9938
E-mail:valmirsbano@uol.com.br
Recebido em: 20/06/07
Versão revisada recebida em: 09/09/08
Aprovado em: 16/09/08
Valmir Sbano
Professor Adjunto(Departamento de Psicologia/UFF); Doutor em Teoria Psicanalítica (UFRJ); Mestre em Filosofia (PUC-RJ).
Nota
1 Os antigos já observavam que o homem é o único animal que ri; não puderam dizer, porém, que é único que tem voz.