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Print version ISSN 1415-1138
Psyche (Sao Paulo) vol.12 no.23 São Paulo Dec. 2008
ARTIGOS
Situação do fenômeno religioso contemporâneo
The situation of religious phenomenon nowadays
Tiago Ribeiro Nunes
Universidade Federal de Goiás
Universidade de Brasília
RESUMO
O presente trabalho pretende analisar a situação do fenômeno religioso contemporâneo a partir das formulações psicanalíticas sobre esse tema. Nosso objetivo primordial ao longo deste artigo é estabelecer parâmetros para relacionar o “retorno ao sagrado” às crises permanentes que acometem a humanidade. Tal empreendimento nos permitirá verificar até que ponto o fortalecimento dos movimentos religiosos pode ser considerado como uma reação à queda dos referenciais que se realiza na contemporaneidade.
Palavras-chave: Psicanálise; Razão; Ciência; Religião; Contemporaneidade.
ABSTRACT
The present work discuss the situation of the actual religious phenomena from the standpoints of freudian and lacanian formulations. Our goal is to understand the "return to the sacred" in our present time where the humanity faces frequently depth and permanent crises. Such challenge will allow us to verify how the increase of the religious movements can be considered as a reaction against the breakdown of the references that happens nowadays.
Keywords: Psychoanalysis; Reason; Science; Religion; Nowadays.
Em si mesma, toda idéia é neutra ou deveria sê-lo; mas o
homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências;
impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a
forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está
consumada...
Assim nascem as ideologias, as doutrinas e as farsas sangrentas.
Idólatras por instinto, convertemos em incondicionados os
objetos de nossos sonhos e de nossos interesses. A história não
passa de um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de
templos elevados a pretextos, um aviltamento do espírito ante o
Improvável. Mesmo quando se afasta da religião, o homem
permanece submetido a ela; esgotando-se em forjar simulacros
de deuses, adota-os depois febrilmente: sua necessidade de
ficção, de mitologia, triunfa sobre a evidência e o ridículo. Sua
capacidade de adorar é responsável por todos os seus crimes: o
que ama indevidamente um deus obriga os outros a amá-lo, na
espera de exterminá-los se se recusam. Não há intolerância,
intransigência ideológica ou proselitismo que não revelem o
fundo bestial do entusiasmo. Que perca o homem sua faculdade
de indiferença: torna-se um assassino virtual; que transforme
sua idéia em deus: as conseqüências são incalculáveis. Só se
mata em nome de um deus ou de seus sucedâneos: os excessos
suscitados pela deusa Razão, pela idéia de nação, de classe ou
de raça são parentes dos da Inquisição ou da Reforma. As
épocas de fervor se distinguem pelas façanhas sanguinárias.
Santa Tereza só podia ser contemporânea dos autos-de-fé e
Lutero do massacre dos camponeses. Nas crises místicas, os
gemidos das vítimas são paralelos aos gemidos do êxtase...
Patíbulos, calabouços e masmorras só prosperam à sombra de
uma fé dessa necessidade de crer que infestou o espírito para
sempre. O diabo empalidece comparado a quem dispõe de uma
verdade, de sua verdade. Somos injustos com os Neros ou com
os Tibérios: eles não inventaram o conceito de herético: foram
apenas sonhadores degenerados que se divertiam com os
massacres. Os verdadeiros criminosos são os que estabelecem
uma ortodoxia no plano religioso ou político, que os distinguem
entre o fiel e o cismático (E.M. Cioran, 1995, p. 11-12).
Pensar o tempo presente implica sempre o risco do equívoco. É Freud (1927) quem nos adverte sobre o perigo de sermos iludidos pelo presente do qual participamos quando tentamos emitir algum juízo sobre ele. Apesar dessa advertência, ele assume o risco e se lança à investigação e à crítica da cultura de seu tempo: a atitude freudiana recusa categoricamente a omissão. Aos psicanalistas transmite-se a lição de que é preciso enfrentar os riscos e tomar posição frente a sua realidade social. A interpretação das qualidades distintivas fundamentais de um dado contexto histórico e social é, nesse sentido, fundamental para ampliar o alcance do ato analítico e indispensável para assegurar a vitalidade da psicanálise.
Dentre os fenômenos que participam da complexa cena contemporânea, o crescimento dos movimentos religiosos constitui um dos mais surpreendentes. Surpreende, entre outras coisas, que tal crescimento se realize exatamente em uma época tão marcada pelos artefatos tecnológicos e pela constante referência ao discurso científico como garantia de verdade. A novidade dessa ocorrência talvez esteja em um único ponto: a ampliação dos monoteísmos ocidentais manifesta-se no exato momento em que o saber científico começa a expor a humanidade a crises cada vez mais profundas e permanentes, em lugar de solucionar em definitivo os problemas constitutivos da condição humana.
Diante dos pontos acima expostos, o estudo aqui realizado concentrou-se em torno de três questões fundamentais: a) como a religião consegue resistir ao discurso científico fortalecido pela tradição racionalista; b) de que modo as permanentes crises que acometem a humanidade participam da proliferação desenfreada dos movimentos religiosos contemporâneos; c) qual a relação entre a escalada das religiões na atualidade e o espírito da contemporaneidade.
Freud e o sonho da razão
Para discutir o tema proposto, partiremos das considerações tecidas por Freud em seu artigo intitulado O futuro de uma ilusão, datado do outono de 1927. Essa escolha se justifica pelo fato de que Sigmund Freud (1856-1939), além de ser um dos pensadores mais importantes de todo o século XX, assim como outros grandes pensadores de sua época, empenhou-se grandemente em provar que a religião seria suplantada pelo saber científico. Herdeiro do espírito das luzes, ele ousou afirmar que a religião declinaria inevitavelmente: triunfo do saber científico sobre o misticismo religioso (Freud, 1927).
Em seu O futuro de uma ilusão, Freud (1927) apóia-se no contínuo processo de desenvolvimento da civilização para decretar o ocaso das religiões. Se desde os momentos mais primordiais de sua história o homem sentiu necessidade de recorrer ao sagrado, principalmente para tentar remediar seu desamparo frente à natureza e ao Destino, parece ser bastante concreta para ele (Freud) a possibilidade do gradativo enfraquecimento desse laço em face da solidificação dos saberes científicos. Assim, quanto mais adiantada em seu desenvolvimento, menos a civilização necessitaria dos recursos proporcionados pelas religiões: a ciência permite ao homem superar seu desamparo em relação às forças da natureza e às incertezas do Destino.
Nessa proposição destaca-se uma preocupação tipicamente moderna, pois é na modernidade que a idéia de superação contínua rumo a uma estrutura última, mais eficiente e perfeita, torna-se uma meta essencial. Visando, acima de tudo, o inesgotável processo de superação das estruturas menos completas por outras cada vez mais plenas, a modernidade caracteriza-se por suas constantes revoluções. Priorizando a ultrapassagem dos modelos considerados falhos ou menos eficientes, é próprio do espírito moderno buscar o desenvolvimento de padrões de máxima plenitude. Conforme nos diz Gianni Vatimo:
a modernidade pode caracterizar-se, de fato, por ser dominada pela idéia da história do pensamento como uma "iluminação" progressiva, que se desenvolve com base na apropriação e na reapropriação cada vez mais plena dos "fundamentos", que freqüentemente são pensados também como as "origens", de modo que as revoluções teóricas e práticas da história ocidental se apresentam e se legitimam na maioria das vezes como "recuperações", renascimentos, retornos (1996, p. VI).
Freud aposta na superação da ilusão religiosa como etapa natural do desenvolvimento da humanidade. A expectativa freudiana de que o contínuo processo de desenvolvimento humano finalmente despertaria a civilização para a evidência do caráter puramente ilusório das religiões, levando-a a abandonar seu vínculo ancestral com o sagrado para adotar a ciência como meio mais eficiente para lidar com a natureza e com seu Destino sempre incerto, pode servir de argumento para demonstrar o enraizamento da teoria freudiana no modo de ser característico do pensamento moderno. É o próprio Freud quem nos diz textualmente: "o afastamento da religião está fadado a ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento, e nos encontramos exatamente nessa junção, no meio dessa fase de desenvolvimento" (1927, p. 57). A opinião de Freud solidariza com a expectativa de que o progresso do pensamento e, por conseguinte, os avanços da ciência construiriam uma base sólida e suficientemente forte para assegurar o declínio definitivo da religião como uma das etapas de transição mais importantes de nossa civilização.
Para Freud (1927), está claro que, convocada para responder às questões fundamentais da existência humana, a religião nunca fez mais do que envolvê-las em uma aura de mistério. Além disso, do ponto de vista da organização social, as doutrinas religiosas nunca foram capazes de fazer com que o homem abandonasse definitivamente seus impulsos destrutivos em prol da plena aceitação dos preceitos morais propostos por elas. Sendo assim, as religiões parecem ter falhado duplamente: em primeiro lugar, por nunca haverem proporcionado alguma ajuda efetiva na elucidação e no entendimento mais completo do homem; em segundo lugar, por terem sido incapazes de estabelecer um modo de organização social totalmente moral, como prova incontestável de seu domínio sobre impulsos instintuais e as tendências destrutivas.
Freud (1927) pretende demonstrar que se há alguma coisa capaz de fazer homens melhores, se existe algo eficiente para amenizar o desamparo do homem frente à natureza e a seu destino incerto, esse algo definitivamente não é a religião, mas certamente a ciência. Evidentemente, supõe Freud (1927), o homem estará mais seguro para superar suas angústias e sua impotência se, abrindo mão do ineficiente misticismo religioso, decidir buscar refúgio na luminosidade que irradia do saber cientifico. De acordo com essa perspectiva, a ciência deveria aliviar o homem ao lhe permitir superar, ainda que parcialmente, seu desamparo.
É necessário destacar que a hipótese construída por Freud (1927) vai buscar no caráter experimental da ciência o argumento para afirmar que ela é mais eficiente para aparelhar o homem (em relação à natureza e às contingências de seu Destino) do que o faz a religião. O poder, atribuído à ciência de fornecer garantias para que o homem consiga superar seu desamparo natural é o que faz dela, de acordo com Freud, uma substituta ideal.
Desse debate resulta ainda uma outra questão que nos permitiremos deixar apenas apontada: negando qualquer dignidade à religião, e ao mesmo tempo empenhando-se em legitimar sua substituição pela ciência, Freud dá uma passo importante em direção à consumação da queda dos valores absolutos enunciada pela filosofia nietzschiana, sua predecessora. Entretanto, o passo seguinte dado por ele (Freud, 1927) pode levar o leitor, desconhecedor do restante de sua obra, a cometer um grave erro: supor que, para ele, trata-se apenas de substituir Deus pela ciência, mantendo intocada a dependência primordial de uma verdade última. Nesse sentido, a eleição da ciência, acompanhada do rebaixamento da religião, ganha ares de ato redentor cujo objetivo primordial seria o resgate do homem historicamente iludido pelos obscurantismos falaciosos das práticas religiosas.
A aposta de Freud no triunfo da ciência, decorrente da luta entre a luz da razão e as trevas do misticismo religioso, poderia desde que tomada isoladamente servir como demonstração de que ele, fiel aos preceitos do pensamento moderno, recusou a queda da referência absoluta pela expectativa de realização da superação de uma estrutura por outra ainda mais plena. O argumento em favor de um suposto caráter reacionário interno ao pensamento freudiano ganha ainda mais força se considerarmos que a possibilidade de realização efetiva de um vazio irreversível, assim como a ausência de uma referência fundamental, opõem-se ao projeto freudiano de revelar, por meio da técnica psicanalítica, uma verdade última: garantia de certa estabilidade e de alguma ordem ao mundo. No fundo, isso quer dizer que Freud acreditava na existência de um saber velado sobre o mundo e sobre o homem, que deveria ser decifrado por meio do procedimento analítico/científico.
Lacan (2005) nos informa que a ciência, assim como a posição do cientista, constituiu um tabu para Freud. Por esse motivo é possível supor a implicação do seu desejo na realização desse ideal: elevar a psicanálise ao status de ciência, e com isso garantir sua incorruptibilidade. Freud também parece ter se deixado iludir por seu desejo ao decretar o fim da religião. Apesar disso, oitenta anos depois da publicação do Futuro de uma ilusão, estão cada vez mais na pauta do dia: a escalada contínua dos fundamentalismos juntamente com a proliferação desenfreada de seitas e doutrinas religiosas. Ao contrário do que previu Freud, o discurso encampado pela ciência não promoveu a extinção dos laços entre a humanidade e o sagrado, mas parece ter fornecido razões ainda mais fortes para garantir a permanência das religiões. Ambos os seguimentos passaram a coexistir, e por vezes, conforme veremos mais adiante, essa coexistência pressupõe inclusive certa complementaridade.
Um outro Freud
Ao longo da obra freudiana encontraremos vários pontos que fundamentam uma postura completamente diversa daquela anteriormente enunciada em relação à ciência. Desde muito cedo foi necessário que Freud rompesse com os preceitos norteadores do programa científico de seu tempo. As formulações de uma energética, impossível de ser explicada física ou quimicamente, ou a atenção dispensada por ele aos sintomas histéricos (sem nenhuma explicação orgânica) contrariam radicalmente os preceitos científicos praticados em sua época (Freud, 1895). Mais apropriado do que afirmar a crença de Freud no triunfo final da razão seja observar que sua opção pela via científica deveu-se basicamente à necessidade de legitimar sua prática. Servindo-se da ciência, Freud somente o fez para poder ultrapassá-la. Disso resulta que a psicanálise não tenha sido tragada por ela, mas tenha dela se distanciado gradualmente ao longo do tempo.
Em oposição ao otimismo característico do espírito das luzes estão as constatações freudianas contidas em seu Além do princípio do prazer (1920) e em Análise terminável e interminável (1937a). Despedindo-se definitivamente do otimismo que celebrava a plenitude da razão, Freud chega ao extremo de questionar até mesmo a validade da própria psicanálise. As evidências de sua clínica, juntamente com suas reflexões teóricas, demonstram que não há nada capaz redimir ou salvar o homem de sua condição.
O que mais se pode esperar da razão após a constatação de que toda pulsão é pulsão de morte (Freud, 1920)? Como é possível manter-se otimista e crente na plenitude do saber produzido por ela depois de descobrir que "os horrores de que somos feitos são tanto mais perenes quanto são, para nós, irresistíveis" (Coli, 1996, p. 312)? A constatação do caráter meramente artificial, e por conseguinte ilusório, da razão faz desmoronar os fundamentos do projeto iluminista. As virtudes da razão esbarram na descoberta da prevalência dos impulsos destrutivos sobre os impulsos vitais, morais e civilizatórios. As ressonâncias dessa conclusão ecoam em seu Construções em análise (1937b): demonstração de que a verdade última resultante do completo esclarecimento do inconsciente pela prática analítica é, rigorosamente falando, impossível. Nesses termos, o fim de uma análise não passa de uma ficção necessária. Após a descoberta da prevalência da pulsão de morte, a teoria freudiana afirma a violência de uma realidade irreversivelmente irracional (Coli, 1996).
Sabemos que a descoberta da psicanálise, foi motivada pelo desejo de lançar luz sobre a verdade dos fatos inconscientes que determinam as ações humanas. Por esse motivo, apesar de o inconsciente ser o construto teórico mais importante da psicanálise, e por definição localizar-se fora do campo de abrangência da razão/consciência, a técnica desenvolvida para atuar sobre ele toma-o como um saber que deve ser revelado pelo trabalho analítico. Todavia, para além da dimensão do saber inconsciente situa-se o inominável da pulsão. Isso porque, por maior que seja a luminosidade da razão, sua luz "nunca é triunfante, mas possui um caráter agônico, uma existência dificultosamente obtida diante do escuro" (Coli, 1996, p. 310). Nas últimas formulações freudianas não há mais qualquer claridade, nem luz de espécie alguma: "El sueño de la razón produce monstros" (Coli, 1996, p. 310 grifos do autor).
Em decorrência do caráter precário e provisório da razão, a condição humana, submetida ao tempo destruidor, à doença e às atrocidades levadas a cabo pelas duas grandes guerras do século XX, se sobrepõe violentamente ao ideal artificial da racionalidade. Os avanços da ciência, cujas propostas iniciais incluíam a ampliação contínua do domínio humano sobre a natureza e a compreensão dos fenômenos naturais/sociais, tornaram cada vez mais insustentável e frágil a continuidade da própria existência.
A vertiginosa cena contemporânea
Na contemporaneidade, a razão dá mostras incontestáveis de seu cansaço. À beira de um colapso definitivo, o panorama construído na atualidade nos informa que o ideal da racionalidade perdeu lugar para o caos: subversão total da dimensão da ordem. O tempo presente é um tempo permanentemente atormentado pela crise. Nosso século, dominado pela velocidade vertiginosa das transformações técnicas e tecnológicas nos confirma que o desamparo do homem não desapareceu, mas se revelou ainda mais irremediável do que sequer ousamos imaginar algum dia.
O avanço do campo de abrangência das técnicas científicas parece ser diretamente proporcional à emergência do sentimento cada vez mais intenso de angústia por demonstrar seguidamente que há sempre algo imprevisível que insiste em escapar ao esforço racional de explicação e de previsão. Além da presença freqüente do imponderável, existem as incontroláveis ameaças biológicas, a nunca completamente superada ameaça de destruição nuclear, o temor frente às incalculáveis conseqüências das intervenções humanas na natureza, a barbárie das duas grandes guerras e das guerrilhas que dominam nos grandes centros urbanos demonstram, de modo contundente, quão tênue é o fio que sustenta a humanidade. Valéry declara com perplexidade o mútuo pertencimento entre o horror e as virtudes da razão operacionalizada nos saberes científicos: "sem dúvida, foi preciso muita ciência para matar tantos homens, dissipar tantos bens, aniquilar tantas cidades em tão pouco tempo" (apud Novaes, 1996, p. 9). Diante da cena contemporânea, o sentimento de angústia se torna absolutamente inevitável. Em lugar de amenizar seu estado de permanente incerteza fornecendo ao homem um caminho seguro para trilhar, a ciência denuncia de modo fulminante a impotência da civilização frente ao imprevisível que teima em envolvê-la e se multiplicar a sua volta.
Na medida em que a ciência (convocada a fim de amenizar, ainda que parcialmente, a angústia humana) expõe o caráter limítrofe de uma realidade incontrolável, é possível ver no recrudescimento do sentimento religioso e no fervoroso apelo à religião do qual somos testemunhas, uma tentativa desesperada de estabilizar e organizar a loucura que domina o dia-a-dia da atualidade. Nesse sentido, o retorno ao sagrado se realiza como esforço de devolver à humanidade uma ordem, ainda que artificial.
Hoje, a freqüente emergência de movimentos religiosos, assim como o empenho aplicado ao fortalecimento das instituições que sobrevivem da veiculação do sagrado nos demonstram até que ponto o território dos fundamentalismos sectários tem se difundido. A zona limítrofe à qual a história da civilização nos trouxe causa tanta perplexidade que a retomada do culto ao Eterno ilustra a tentativa de suportar o choque de uma realidade irremediavelmente fragmentada. A proliferação das manifestações religiosas na atualidade testemunha a súplica desesperada para que os estilhaços dessa realidade sejam reunidos, ainda que de modo bastante precário, a fim de restabelecer sua unidade imaginária.
Por essa razão, Lacan (2005) dirá que a religião está destinada a triunfar em nossa época: a religião triunfará sobre a ciência e também sobre a psicanálise porque a existência de Deus comporta a ilusão das garantias. A divina Providência desmente a contingência. A presença vigorosa da religião na contemporaneidade pode ser vista, portanto, como um esforço a mais na tentativa de fazer existir uma unidade impossível, o que passa necessariamente pela negação da realidade em seu estado de pura dispersão. Por esse motivo, a religião fervilha e se prolifera de modo desenfreado, costurando as peças soltas que compõem nossa realidade como recusa ao caráter fragmentário de uma sociedade cada vez mais acossada pelo real de sua condição. Ao contrário do que supunha Freud em seu Futuro de uma ilusão (1927), a religião triunfará inclusive sobre a psicanálise, que por sua vez terá de arranjar-se para sobreviver a ela (Lacan, 2005).
O espírito das luzes silenciou o universo aterrorizando Pascal, e por extensão, todo o restante da humanidade. Desde então, tem-se feito todo o possível para amenizar o mal-estar que acomete a civilização e que resulta da generalização desagregadora do silêncio na atualidade. Esse movimento de reação parece ser uma das principais características da religiosidade contemporânea. É na garantia de estabilidade fornecida pelo Divino que a humanidade angustiada busca se refugiar. Tal estabilidade, entretanto, não passa de uma reação: negação do imprevisto e da contingência cujo produto é a ilusão de uma realidade estável e organizada. Em uma época sem identidade, o engajamento nos movimentos religiosos produz uma identidade reacionária e disposta a todo tipo de combate para garantir a ilusão de homogeneidade entre seus fiéis.
Se o silêncio que aterrorizava Pascal permanece propagando seus efeitos na sociedade contemporânea, parece haver evidências suficientes para afirmar que ele passou a ser experimentado de uma forma irreparável: o pânico. Diante da presença maciça e desagregadora da pulsão, irrompe a vertigem. Acometido pelo pânico, o homem contemporâneo entende que é preciso construir estratégias que lhe proporcionem o alívio de seu mal-estar. Por esse motivo, a defesa contra o processo de dissolução que ameaça o sentimento de organicidade de modo cada vez mais irreversível passa a constituir um dos programas mais fundamentais e caros à contemporaneidade. Isso faz de nossa época um terreno bastante propício para o fortalecimento das atitudes reacionárias que negam a realidade em sua condição fragmentada em busca do alívio proporcionado pela ilusão da estabilidade. Para remediar suportar o choque de uma realidade que é pura contingência, o homem se vê persuadido a aderir àqueles discursos cujo principal intuito parece ser: restaurar ao mundo sua estabilidade pelo exorcismo da dispersão, pela anulação da provisoriedade e da precariedade. Desse modo, é na tentativa de reagir contra a insuportável perda de sua organicidade que a humanidade confecciona para si ficções que a defendam do real.
Supor a existência de uma ordem, instaurada e regida pelo Onipotente e Onisciente Criador permite a construção de uma ilusão que parece ser indispensável ao nosso tempo. Por este motivo, é possível que o avanço desenfreado dos fundamentalismos religiosos seja mais uma dentre as manifestações sintomáticas características de nossa época. O apelo ao sagrado em nosso tempo parece estar norteado pela solidez das inabaláveis verdades produzidas sob a forma das revelações: é a verdade estável e absoluta produzida pela revelação religiosa que fundamenta a ilusão de segurança no interior dessa dissolução generalizada. Somente um discurso arraigado na verdade pode refugiar a humanidade desolada fornecendo-lhe a salvaguarda de uma Providência que regula toda a ordem universal. Nesse ponto parece residir o principal trunfo das práticas religiosas em relação a suas opositoras: a condição de produzir uma consistência imaginária que devolve o conjunto à realidade dissolvida. A unidade imaginária, entretanto, não passa de uma reação cuja função primordial é negar a violência de uma realidade incontrolável.
O monoteísmo e o gozo
Até o presente momento argumentamos que os artifícios religiosos têm servido de suporte à humanidade atormentada pela crise: recorrendo à ilusão do Um ela se defende de sua condição fragmentária. Esforçamo-nos ao longo desse estudo em demonstrar que essa é uma das características mais fundamentais do fenômeno religioso contemporâneo. Todavia, é necessário salientar ainda o fato de que na cena religiosa que vemos construir-se na atualidade sobressaem-se os imperativos característicos da sociedade de consumo. Em harmonia com a dinâmica mercadológica realiza-se um tal processo de dispersão de denominações, que em consideração a suas singularidades, somos obrigados a falar não mais em monoteísmo, mas em monoteísmos. Fabricam-se livremente variadas versões do sagrado, assim como variados códigos morais. Em tais códigos, um elemento é particularmente interessante: o abrandamento gradativo das proibições. Menos do que interditar, nos monoteísmos que vemos abundar atualmente há um crescente apelo ao gozo: imperativo absoluto que norteia a relação dos indivíduos com o sagrado e com seus pares sociais. A obediência aos preceitos morais prescritos em cada um deles permanece como orientação de conduta para os fiéis, mas mais importante do que tais preceitos é a relação direta com o gozo próprio da sociedade de consumo. Desfrutar dos bens materiais e ser bem sucedido financeiramente não são apenas objetivos que podem ou não ser atingidos. O gozo tornou-se um imperativo a partir do qual é possível, inclusive, por meio de uma matemática simples, inferir o nível de comunhão com o sagrado: quanto mais acesso aos artefatos de consumo, mais evidências o indivíduo e seus pares possuem acerca de sua integridade espiritual. Não se trata mais de impedir vigorosamente os excessos de satisfação terrena em prol da plenitude celestial a ser desfrutada no porvir: todo indivíduo possui não apenas o direito, mas o dever de desfrutar plenamente das satisfações terrenas, assim como das celestiais.
Apesar do nítido contraste entre as características dos monoteísmos ocidentais acima apontadas e a origem do monoteísmo hebreu teorizada por Freud (1939), é bem provável que resida justamente nesse contraponto a possibilidade de entendermos um pouco mais sobre o fenômeno religioso contemporâneo. Em seu Moisés e o monoteísmo, Freud (1939) reafirma sua tese sobre o assassinato do pai primitivo, pronunciada originalmente em seu Totem e tabu (Freud, 1913), aplicando-a a Moisés: o assassinato de Moisés pelo povo hebreu repetiria assim o assassinato do pai primitivo, chefe da horda primeva. Segundo ele nos informa (Freud, 1939), é a interdição ao gozo arbitrariamente imposta por Moisés a seu povo, sob a forma da proibição contra a produção e a adoração de imagens de deuses, que funda o monoteísmo. Aliada a esse fator, na gênese do monoteísmo encontra-se a injunção à adoração de um deus que não pode ser visto, imaginado, ou sequer ter seu nome pronunciado (Freud, 1939). Apesar de contribuir diretamente para um significativo avanço da intelectualidade, a principal conseqüência desse ato de exclusão do gozo, energicamente imposto por Moisés aos hebreus, foi seu próprio assassinato: Moisés teve de ser morto para que a lei do monoteísmo, a proibição do gozo pleno, pudesse então vigorar como dissimulação da verdade histórica de sua morte (Freud, 1939).
Acreditamos residir nesse ponto uma outra característica fundamental do fenômeno religioso contemporâneo: sua relação direta com o gozo. Na contemporaneidade, a proliferação do sagrado não se realiza apenas como reação à perda de consistência do Outro. Não se trata unicamente de um apelo ao Um como salvaguarda em relação a uma realidade comprovadamente fragmentária. A proliferação desenfreada dos segmentos religiosos na contemporaneidade, assim como sua incrível capacidade de atração e sedução não são ocorrências meramente fortuitas, mas realizam-se exatamente enquanto assistimos ao ocaso do Nome-do-Pai. Se é a Lei-do-Pai que fixa a proibição do gozo limitando-o, então, na medida em que essa instância simbólica privilegiada declina na atualidade, revive-se a paixão pelo gozo pleno que ela interditava. A atitude reacionária, o apelo ao Um, carrega consigo um imperativo de gozo que os parasita. Aliadas, as duas vertentes paradoxalmente não se anulam, mas amplificam ainda mais o poder desse fenômeno cujo impacto em nossa sociedade apenas pressentimos.
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Endereço para correspondência
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Recebido em: 28/05/2007
Versão revisada recebida em: 18/08/08
Aprovado em: 25/08/08
Tiago Ribeiro Nunes
Psicanalista; Professor (Universidade Federal de Goiás/CAC); Mestre em Letras e Lingüística (Universidade Federal de Goiás); Doutorando em Psicologia Clínica e Cultura (UnB).