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Estilos da Clinica

Print version ISSN 1415-7128On-line version ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.26 no.1 São Paulo Jan./Apr. 2021

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v26i1p185-188 

10.11606/issn.1981-1624.v26i1 p185-188

RESENHA

 

O protagonismo das narrativas sobre o educar nas práticas inclusivas

 

 

Mônica Maria Farid RahmeI

IProfessora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.E-mail: monicarahme@ufmg.br

 

 

Práticas inclusivas II: desafios para o aprendizado do aluno sujeito. Pesaro, M. E., Kupfer, M. C., & Davini, J. (Orgs.) São Paulo, SP: Escuta, 2020, 352p.

Que longo percurso percorremos para nomear uma criança, jovem ou adulto com entraves estruturais (EE) na sua constituição psíquica como aluno-sujeito, como nos propõem as autoras e autores do livro Práticas inclusivas II: desafios para o aprendizado do aluno sujeito, organizado por Maria Eugênia Pesaro, Maria Cristina Kupfer e Juliana Davini. Quantas formulações, debates, disputas, problematizações foram necessárias para que esses sujeitos se tornassem visíveis na cena social experimentada na cidade e na escola, e para que se desconstruíssem pilares que sustentavam o seu enclausuramento institucional. Um deles, certamente, em torno do aprender, e outros relacionados ao reconhecimento de suas histórias, seus interesses e suas diferentes formas de ser e de estar no mundo.

O livro Práticas inclusivas II aporta uma importante contribuição do campo da Psicanálise para a discussão relativa à escolarização de crianças e jovens que vivenciam particularidades na sua constituição subjetiva. O livro resulta do projeto Escolas Protagonistas, desenvolvido com dez escolas regulares da cidade de São Paulo. Participaram desse trabalho as escolas Vera Cruz, Santa Cruz, Gracinha, Anglo21, Saint Nicholas, Equipe, Lourenço Castanho, Escola da Vila, Projeto Vida e Escola Primeira. O projeto envolveu diretores, coordenadores, orientadores, professores e psicólogos dessas instituições, que participaram de um conjunto de atividades formativas. Além do trabalho específico com as Escolas Protagonistas, a publicação sistematiza elementos relevantes do percurso de trabalho desenvolvido pelo Lugar de Vida, desde 1990, dentre os quais a construção de pontes com a escola regular visando a efetivação do processo de inclusão escolar das crianças e jovens com EE. A inclusão escolar, juntamente ao tratamento institucional e educacional, constituem-se como eixos de sustentação da Educação Terapêutica.

Ao longo de três décadas de existência, o Lugar de Vida se tornou um dos espaços de referência no tratamento e acompanhamento de crianças e jovens com EE no Brasil, formando gerações de profissionais que atuam na clínica, em instituições e no contexto escolar. Nesse sentido, a escuta de professoras e professores, o delineamento de orientações sobre o acompanhamento escolar e outras formas de intervenção são contribuições que a equipe do Lugar de Vida tem sistematizado e compartilhado com a sociedade por meio da realização de pesquisas acadêmicas, da publicação de artigos e livros por meio da formulação de instrumentos de pesquisa e de acompanhamento de orientação psicanalítica.

O livro Práticas inclusivas II se divide em seis eixos temáticos que focalizam as linhas norteadoras de uma aprendizagem terapêutica: a relação entre os pares para o ensino e a aprendizagem do aluno com EE, as parcerias da escola com pais e especialistas, as transformações pelas quais deve passar a escola para acolher o aluno sujeito, os professores como sujeitos e agentes de sua formação e a (re)construção curricular no trabalho com alunos com EE.

Embora se trate de uma coletânea na qual várias autoras e autores se encontram implicados, os textos apresentam uma lógica didática na abordagem dos temas e uma articulação entre si, de modo que a publicação ganha unidade sem perder a diversidade de olhares e as particularidades próprias das áreas disciplinares envolvidas. Uma orientação ética de respeito às diferenças inerentes à condição humana e um posicionamento de não recuo diante da criança e do jovem com EE demarcam a posição esperada do psicanalista e daqueles que se inspiram nesse referencial, no sentido de não recuar diante da pluralidade de manifestações que podem advir de um sujeito.

Além de registrar formulações teóricas essenciais, como a concepção psicanalítica acerca da constituição do sujeito e o entendimento sobre os EE a partir desse campo teórico, em uma linguagem clara e consistente, o livro Práticas inclusivas II expressa elementos orientadores da forma como o Lugar de Vida constrói sua interlocução com as escolas e demais parceiros de trabalho. Nesse sentido, constitui-se como um material adequado tanto para profissionais que já atuam no campo da psicanálise, quanto para profissionais, familiares, estudantes de graduação e de pós-graduação que se interessam pelo tema sem, no entanto, conhecer a particularidade da abordagem psicanalítica. Destaco, ainda, as problematizações que a publicação permite estabelecer em relação à dimensão psicopatológica e ao posicionamento do discurso médico em relação aos outros discursos e espaços de trabalho, como a escola. Tal como destacado na obra, nada é mais desejável do que uma professora e um professor bem posicionados, como uma alternativa à perspectiva do professor bem intencionado, que subestima o aluno-sujeito, repetindo laudos e atributos negativos tradicionalmente direcionados a esse público.

No trabalho com sujeitos com EE, a implicação da escola com o ensinar, a valorização do olhar dos educadores, o reconhecimento da importância do diagnóstico educacional produzido pelos profissionais da educação, marcam um posicionamento que condiz com a concepção do Lugar de Vida no sentido de afirmar a relevância do saber e do envolvimento dos professores na lida cotidiana com as crianças e jovens. Nesse sentido, as professoras e professores são atores fundamentais na definição dos rumos do percurso de escolarização e seus saberes não devem ser secundários ao saber dos especialistas. Tal postura, que subverte uma lógica tradicionalmente instituída na relação dos profissionais da área médica e paramédica com os profissionais da educação, é frontalmente desconstruída na publicação.

Se a noção psicanalítica de constituição do sujeito pode ser considerada uma referência central para os desdobramentos teóricos compartilhados no livro, é importante salientar que a publicação se orienta pela perspectiva de uma aprendizagem terapêutica. Essa forma de conceber a aprendizagem está diretamente entrelaçada à concepção psicanalítica dos EE e de como a escola e, mais especificamente, a aprendizagem, podem funcionar como elemento propiciador do laço social.

A sustentação desse posicionamento se materializa no movimento do Lugar de Vida de partilhar com as escolas protagonistas a especificidade do seu modus operandi, na perspectiva de construir práticas educativas mais sensíveis para o acolhimento institucional do sujeito. E é nesse ponto que somos agraciados com os textos escritos pelos profissionais que atuam nas escolas ou em parceria com elas, e que nos apresentam construções possíveis de docência, gestão escolar e práticas interdisciplinares.

Nos capítulos escritos pelas escolas protagonistas são compartilhados conosco elementos de suas histórias e dos seus processos de construção em torno do educar, considerando, para tanto, os desafios experimentados na atualidade. O trabalho com crianças com EE desafia a escola como instituição que tem uma proposta pedagógica, modos de lidar com os estudantes e com as famílias, que organiza seu tempo e espaço seguindo uma lógica de trabalho e de engajamento com seus referenciais curriculares, avaliativos e de registro dos percursos. Na publicação, as escolas nos contam que os estudantes com entraves na sua constituição subjetiva já não se encontram mais apenas nas turmas de Educação Infantil ou no início do Ensino Fundamental, mas progridem em sua escolarização, atualizando avanços e impasses nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Assinalam que seus percursos educativos não são vivenciados à margem dos percursos dos demais colegas, mas de modo conjunto. Por meio de excertos e relatos do cotidiano dos estudantes nesses espaços, as autoras e os autores abordam as diferentes dimensões que compõem a realidade das escolas, as formas de estruturação dos espaços coletivos, a relação entre colegas, os temas emergentes e as inúmeras intervenções produzidas no sentido de reconhecer o estudante com EE como um aluno da turma, da escola, capaz de participar da cena coletiva sem que, para tanto, precise se enquadrar em uma estrutura curricular enrijecida ou a normas inflexíveis. Tais movimentos indicam transformações adotadas na estrutura escolar para acolher o aluno-sujeito que em muito podem inspirar outras experiências institucionais.

Um outro aspecto que merece destaque na publicação é o quanto as experiências educacionais compartilhadas funcionam como um testemunho frente ao reconhecimento do estudante com EE como sujeito, o que marca um outro momento da sua história na escola. Se considerarmos que durante muitas décadas do século XX, esses sujeitos tinham sua vivência institucional centralizada em clínicas ou, no máximo, em clínicas-escola, que realizavam uma função educativa não escolar, e que agora as professoras e professores nos contam de estudantes que experimentam atributos do que é ser um aluno, podemos suspeitar que, com todos os desafios colocados, houve uma ocupação desse outro lugar – a escola – no qual se pode aprender, brincar e inventar.

O livro Práticas inclusivas II sistematiza uma série de vivências escolares nas quais a localização de interesses pontuais de alunos com EE são transformados em projetos da turma, favorecendo o estabelecimento de laços entre colegas e com o conhecimento escolar. Relata momentos nos quais os estudantes com EE deixam de ocupar a posição daquele que é estranho ao grupo, para serem admirados pela turma como pessoas que se destacam pelo conhecimento de certos temas, perfazendo narrativas que contribuem para remover atributos negativos não poucas vezes caracterizados como estigma (Goffman, 1982). Nesses capítulos não são poucas as indicações de atividades didáticas partilhadas pelas equipes das escolas que, por sua natureza e organização, podem contribuir para o processo de escolarização de crianças com EE que frequentam outras instituições educativas. A aposta dos professores no laço estabelecido com os estudantes com EE podem, nesse sentido, ampliar repertórios e fazer emergir novas formas de inserção no contexto escolar.

Por fim, destaco duas temáticas relevantes no processo de escolarização das crianças com EE e que são elaboradas de modo bastante cuidadoso na publicação. Trata-de da discussão sobre o acompanhamento escolar e sobre a função do semelhante que, de maneira distinta, alertam-nos para o quanto devemos nos atentar para o modo peculiar como as crianças e jovens com entraves na constituição subjetiva se posicionam diante do outro e se inserem na cena educativa.

 

Referência

Goffman, E. (1988) Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª. Ed. RJ: Guanabara.         [ Links ]

 

 

Recebido em fevereiro de 2021 – Aceito em março de 2021.

 

 

Revisão gramatical: Cristina Vieira de Souza
E-mail: crisreda@gmail.com

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