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Revista Mal Estar e Subjetividade

Print version ISSN 1518-6148On-line version ISSN 2175-3644

Rev. Mal-Estar Subj. vol.5 no.2 Fortaleza Sept. 2005

 

ARTIGOS

 

O caso Ellen West de Binswanger: fenomenologia clínica de uma existência inautêntica*

 

 

Virgínia MoreiraI; Ana Vládia Holanda CruzII; Luciana Ballespi VasconcelosIII

IPós-Doutorado em Antropologia Médica (Harvard Medical School), Professora Titular do Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade de Fortaleza — UNIFOR. End.: Av. Washington Soares, 1321 Fortaleza — CE, 60811-341, Brasil. e-mail: virginiamoreira@unifor.br
IIAluna do Curso de Graduação em Psicologia da UNIFOR. End.: Rua Rafael Tobias, 357, Fortaleza — CE, 60833-680, Brasil. e-mail: anavladiahc@yahoo.com.br
IIIAluna do Curso de Graduação em Psicologia da UNIFOR. End.: Rua Dep. Moreira da Rocha, 655, Apto. 101, Fortaleza — CE, 60160-060, Brasil .e-mail: luvascon@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo a discussão de um caso clínico clássico da Fenomenologia - o de Ellen West - aqui descrito e analisado segundo os pressupostos básicos da teoria de Ludwig Binswanger aplicada à psicopatologia. Analisam-se os conceitos de Umwelt, Mitwelt e Eigenwelt, bem como de corporeidade e temporalidade enquanto constitutivos de uma existência inautêntica. Finalmente, busca-se compreender tais conceitos no contexto do estudo de caso de Ellen West.

Palavras-chave: Binswanger, Ellen West, temporalidade, corporeidade, existência inautêntica.


ABSTRACT

This article aims to discuss a classic clinical case of Phenomenology — Ellen West's — which is here described and analyzed using Binswanger's theoretical principles applied to psychopathology. The concepts of Umwelt, Mitwelt and Eigenwelt are analyzed, as well as corporality and temporality as constitutive of an inauthentic existence. Finally, it seeks to understand these concepts in the context of Elle West's case.

Keywords: Binswanger, Ellen West, temporality, corporality, inauthentic existence.


 

 

Binswanger (1881-1966) foi um dos pioneiros na aplicação da Fenomenologia à psiquiatria, tornando-se analista existêncial e rompendo com as proposições metapsicológicas de Freud, de quem era seguidor. Para Binswanger, as teorias freudianas não davam importância suficiente à relação intersubjetiva entre o médico e o paciente e reduziriam o Ser a um sistema — o aparelho psíquico - que encerraria o homem em categorias biológicas e psicológicas, posição contrária à análise existêncial que está mais preocupada em descobrir a visão de mundo dos pacientes, conhecer seu mundo vivido e sua relação singular com o tempo e o espaço, tendo como objetivo a reconstrução do mundo interno da experiência. Sendo influenciado pela filosofia de Husserl e, principalmente, de Heidegger, Binswanger realizou amplos estudos em psicopatologia, dentre as quais se destacam suas análises sobre esquizofrenia e melancolia. Nas palavras de Binswanger (1972), a tarefa da Psiquiatria seria a de "trasladar ao amplo marco da estrutura da existência humana, o ser-no-mundo, cujo a priori foi descoberto de maneira genial e estritamente sistemática por Heidegger em sua analítica da existência" (p. 17).

A influência marcante de Heidegger sobre a clínica de Binswanger consistiu em sua concepção existêncial do ser no mundo, definida pelo termo Dasein (ser-no-mundo). Heidegger definiu o homem como "ser-no-mundo" e sua existência como "relação com o outro". O homem seria essencialmente Dasein: um ser-aqui, um ser na existência. Na apropriação que Binswanger faz do pensamento heideggeriano para aplicá-lo à sua Daseinanalyse no campo da psicopatologia, o emprego do método fenomenológico visa apreender as condições particulares de existência de um indivíduo singular: o fundamento ontológico e existêncial da psicoterapia nesta estrutura do "ser-homem-enquanto-ser-no-mundo", o ser com e pelo outro.

Este artigo tem como objetivo discutir o caso Ellen West, de Binswanger (1977), relacionando alguns dos principais conceitos da análise existêncial e da psicopatologia. Apresentaremos, inicialmente, alguns esclarecimentos sobre a Análise Existêncial de Binswanger e seu conceito de existência inautêntica, passando, em seguida, ao caso propriamente dito e sua análise.

 

A análise existêncial

A análise existêncial foi inicialmente criada para ser um método de pesquisa; apenas secundariamente ela teria se organizado como proposta de tratamento. Com esta abordagem, Binswanger está preocupado em descobrir a visão de mundo de seus pacientes, o mundo vivido de cada um. Considera importante, na clínica que envolve principalmente a relação intersubjetiva entre o médico e o paciente, observar como o paciente vivencia o Umwelt (mundo físico e biológico, meio ambiente), o Mitwelt (mundo social, suas relações com os outros indivíduos, com a família e com a comunidade) e o Eigenwelt (mundo pessoal, o "eu", incluindo o corpo). Binswanger (1972, 1977, 2001) se interessa, particularmente, em compreender como o sujeito vivencia o tempo e o espaço, pois toda a possibilidade de compreensão do existir humano dependerá da temporalidade, enquanto continuação histórica e enquanto finitude. Neste sentido, afirma que "o que chamamos de psicoterapia, não é, no fundo, outra coisa que conseguir que o enfermo possa "ver" como está organizada a estrutura total da existência humana, o ser-no-mundo, e em que ponto desta estrutura se extraviou" (Binswanger 1972, p. 29).

Binswanger (2001) define o objetivo maior da psicoterapia como o de "liberar o ser do isolamento cego do idios cosmos de tal maneira que ele possa ser capaz de participar do koinos cosmos da comunidade" (p.153) Ou seja, trata-se de ampliar a simples vida em seu corpo, seus sonhos, suas inclinações privadas, seu orgulho e aspirações individuais, para elevá-lo e liberá-lo para que possa participar do koinos cosmos, o que consistiria na vida autêntica ou da comunidade. Portanto, para Binswanger, a questão fundamental da psicopatologia é a do Ser e das relações do fenômeno psicopatológico com a existência daquele que o padece. Dessa forma, a análise existêncial abriria à Psiquiatria a possibilidade de um olhar sobre a totalidade da existência do homem. A intenção é a de reconciliação do homem consigo mesmo e, portanto, com o mundo; ela é a metamorfose da hostilidade em relação a si mesmo em uma relação amigável consigo mesmo e com o mundo.

A psicoterapia de base analítico-existêncial aponta cinco diretrizes básicas (Pereira 2001, pp. 140-141):

• Explorar a história de vida do paciente, visando compreendê-la como flexões da estrutura total do "ser-no-mundo";

• Provocar uma verdadeira reviravolta existêncial, por intermédio de um "aprender pela existência" na situação terapêutica;

• O terapeuta deve propiciar que o paciente veja nele um parceiro no ser-aí, pois terapeuta e paciente devem relacionar-se numa recíproca dependência, explicando-se um ao outro, tendo como base desta relação a cooperação e a confiança mútua;

• A experiência onírica tem uma dimensão central na psicoterapia, visto que comporta a mesma estrutura existêncial da vida de vigília do sonhador, tratando-se de uma das apresentações do Dasein;

• Não pode prescindir de outros métodos, mas tem sua especificidade, abrindo ao homem a compreensão da estrutura de seu Dasein humano.

Estes são pontos importantes e inovadores para a área médica e psiquiátrica que, no final do século IXX e início do século XX, período em que viveu Binsnwanger, se preocupava em "garantir uma distância científica" entre médico e paciente, que acabava tornando este em praticamente um 'objeto inanimado'.

Outro tema importante para a análise do caso de Ellen West está relacionado ao conceito de corporeidade. Segundo Binswanger (2001), devemos nos manter tão longe quanto possível de uma apreensão objetivante (fisiológica) e permanecer na esfera do vivido corporal, buscando compreender como o sujeito vivencia seu corpo, como o sente. Para tanto, devemos necessariamente superar a dualidade entre interno e externo. Estados de ânimo, tais como estar sufocado ou arejado, aberto ou fechado, sentir-se em queda ou elevação, refletem estados de ânimo, mas refletem também formas de experiência da espacialidade ou de estruturação da experiência espacial. Não se trata de experiências puramente subjetivas, tampouco puramente objetivas; não se dão dentro do sujeito como também não ocorrem fora, no mundo, Não existe a dualidade entre interno e externo. (Coelho Junior, 2001; Moreira, 2001a e b; Moreira & Sloan, 2002). O espaço, para Binswanger, precisa ser entendido como espaço vivido, na mesma linha de compreensão retomada por Merleau- Ponty (1945), na interseção entre homem e mundo. Da mesma forma se dá a experiência com o tempo, que deixa de ser um tempo cronológico para se tornar tempo "vivido" ou sentido, o que definiria a temporalidade (Minkowski, 1966/1999 e 2000).

Tais experiências definem o modo de existir no mundo como existência autêntica ou inautêntica. O conceito de existência autêntica estaria relacionado com o de abertura para o Koinos Cosmos. Já a existência inautêntica é um estado de decadência e desamparo: uma subjetividade degradada que comanda a consciência individual, levando o homem de acordo com o que dizem ser certo ou errado, obedecendo a ordens e proibições sem indagar suas origens ou motivações. O ser-aí inautêntico mergulha numa espécie de anonimato que anula a singularidade de sua existência; ele perde-se no meio dos outros Daseins buscando a justificativa de seus atos num sujeito exterior. Veremos, mais adiante, como Ellen West, muitas vezes, perdeu-se em uma existência inautêntica, atuando no mundo apenas para responder às expectativas e investimentos de seus pais, incapaz de livrar-se dos hábitos e opiniões que lhe eram impostos, sentindo-se atormentada por medos e ansiedades e tornando-se alheia a si mesma.

 

O caso de Ellen West

Ellen West sempre foi considerada um tanto estranha por sua família, que tinha algumas particularidades importantes para a compreensão do caso clínico: seu pai era judeu um homem com muito autocontrole, rígido e formal, que padecia de insônia e ataques de terror durante o sono, acompanhados de censuras e reprovações contra si mesmo. Sua mãe, também judia, era considerada amável, delicada, sugestionável e nervosa. Ellen tinha dois irmãos: o mais velho era equilibrado e alegre, já o mais novo teve uma adolescência complicada e foi internado em um hospital psiquiátrico, aos dezessete anos, por motivo de transtorno mental com idéias suicidas. A avó materna era forte e alegre; o único dado citado sobre o avô materno é que este morrera ainda jovem. Sobre a família paterna sabemos que o avô era autoritário e severo, a avó era amável, mas padecia de manias depressivas (passava dias sem mover-se e sem falar). Dos cinco tios paternos, dois haviam se suicidado, um seguia uma rígida doutrina de privação e dois tinham arteriosclerose demencial e faleceram disto.

Ellen pouco se lembrava dos seus primeiros dez anos. Sabe-se que comia muito pouco e cedo, aos nove meses, recusou-se a tomar leite. Se a forçavam a tomar o leite ou outros alimentos que não gostava, apresentava uma tremenda resistência que ela própria caracterizaria mais tarde não como um caso de "repugnância", mas sim de "renúncia". Seus pais a definiam como uma criança "teimosa e violenta". Aparentemente, era justamente através de sua teimosia que Ellen conseguia se relacionar com o mundo.

Sempre tinha que ser a primeira em tudo: nos estudos, na equitação, no trabalho. Nos tempos de adolescente, seu lema era: "Ou tudo ou nada", já demonstrando um extremismo que perduraria por toda sua vida. Foi muito influenciada, nesta época, por um livro escrito por Niels Lyhne.

Aos dezessete anos suas poesias tomam um rumo curioso. Em um dos seus poemas, intitulado "Beija-me até a morte", ela fala de um rei, que surge das águas do oceano para tomá-la em seus braços e beijá-la até sua morte. Desde então, Ellen considera-se encarregada de alguma missão especial e se ocupa intensamente dos problemas sociais, sentindo o contraste entre sua posição social e a das massas. Passa a investir muito em seu trabalho, considerando-o como uma garantia de solidez e felicidade. Entretanto, ela é bastante instável neste assunto, passando por muitas crises durante as quais se considera "inútil" e "incapaz".

Aos vinte anos, faz uma viagem à Sicília. Lá conhece um estudante com quem começa a namorar, mas este relacionamento dura pouco, pois Ellen rompe o namoro a pedido dos pais. Neste tempo, ela come bastante e ganha muito peso, tornando-se alvo de gozações por parte de suas amigas, ao que ela responde com grandes ataques à comida. Começa então a se atormentar com a idéia de que está obesa, odiando a si mesma e passando a considerar a morte a única saída possível para resolver seus problemas. Faz dietas rigorosas e exagera nos exercícios físicos, perdendo peso rapidamente. Devido a isso, recebe uma recomendação médica de repouso e dieta.

Durante um curto período de tempo, se recupera apoiando-se no trabalho e sai de sua depressão, mas sempre carrega consigo um sentimento de terror. Volta-se aos trabalhos sociais, apesar de no íntimo considerar um trabalho inútil.

Ellen tem uma boa melhora aos vinte e quatro anos: faz excursões com amigas, demonstra sensualidade em suas poesias, começa a namorar um colega e está entusiasmada com a vida de estudante; continua, porém, fazendo dietas, embora, desta vez, com o consentimento de seu médico. Acontece, no entanto, de ela ter que fazer uma viagem forçada, terminando o relacionamento que mantinha com o estudante; Ellen tem, então, uma nova crise depressiva e adoece, passando seis semanas de cama e acabando por ganhar peso rapidamente. Quando volta para casa, está pesando setenta e oito quilos e trava nova batalha contra seu peso, fazendo dietas, exercícios exagerados e tomando laxantes. Nesta época, começa a se interessar por um primo, mas por muito tempo vacila entre ele e o estudante.

Aos vinte e oito anos, casa-se com o primo na esperança de que este matrimônio lhe ajudaria a superar sua idéia fixa em relação ao seu peso. Sofre com um aborto e com um diagnóstico errôneo de que o motivo deste teria sido uma má alimentação. Ellen enfrenta o dilema de desejar um filho e ao mesmo tempo não querer engordar. Quando um segundo médico afirma que sua esterilidade não tem vínculo com as dietas, Ellen toma grandes doses de laxantes e vomita todas as noites, perdendo peso sistematicamente; porém muitas vezes volta a comer com um apetite voraz, para logo depois se punir severamente.

Aos trinta e cinco anos, já consome entre sessenta e setenta comprimidos de laxantes vegetais durante o dia, vomita durante a noite e tem diarréia o resto do tempo. Seu peso é então de quarenta e um quilos, estando extremamente magra e doente, sentindo tonturas e com debilidade cardíaca. Neste momento, decide procurar ajuda psiquiátrica.

Depois de tentativas frustradas de suicídio, é internada no sanatório de Kreuzlingen, onde se acomoda na companhia de seu marido, assistida por médicos supervisionados por Binswanger.

Através de uma dieta preestabelecida e medicamentos, pouco a pouco se recupera fisicamente, mas segue sentindo uma sensação opressiva de temor. Como está ganhando peso no hospital, vê-se confrontada com a idéia de que está obesa e faz novas tentativas de suicídio, ao que os médicos respondem com uma supervisão mais rígida, submetendo-a uma vigilância permanente. Mesmo assim, Ellen consegue burlar a vigilância dos médicos, tomando laxantes às escondidas. Ainda no sanatório, conhece uma mulher com quem se identifica e se aproxima um pouco dela, e mantendo um relacionamento mais íntimo.

Estando muito infeliz e não respondendo adequadamente ao tratamento, Ellen voltar para casa com seu marido. Ao tomar tal decisão, ela se sente mais segura e recuperada. Ao sair do sanatório Bellevue em Kreuzlingen, seu peso era aproximadamente igual ao de quando entrou: 47 quilos. Na viagem de volta, mostra-se muito animada, mas, nos dias seguintes, volta a sentir com muito mais força seus sintomas, considerando-se incapaz de controlá-los.

No terceiro dia após ter saído do sanatório, Ellen come no café da manhã manteiga e açúcar e no almoço come tanto (pela primeira vez em 13 anos) que se "sente satisfeita". No café da tarde, toma creme de chocolate e come ovos de páscoa, faz um passeio animado com seu marido e com um humor muito jovial conversa sobre literatura, poesia e filosofia. Toda sua doença parece ter se dissipado. Escreve algumas cartas, a última das quais para sua amiga mais recente, do sanatório. À noite toma uma dose mortal de veneno e na manhã seguinte está morta, "aparentando como nunca havia estado na vida: tranqüila, feliz e pacífica" (Binswanger, 1977, p.322).

 

Análise do caso segundo os conceitos de Binswanger

Inicialmente faz-se necessário esclarecer que, para uma apreensão do caso clínico em sua complexidade, devemos contextualizar sua história, procurando entender o modo particular de Ellen West se relacionar com o mundo.

A rejeição do leite foi o primeiro fato que representa e inaugura um comportamento de ruptura com o mundo e de resistência àquelas pessoas que tentavam opor-se a sua idiossincrasia. A construção do Eigenwelt, (seu mundo pessoal, que inclui o seu corpo), se desenvolve em uma aberta oposição ao Mitwelt, (seu mundo social em relação com a família). Provavelmente por este motivo, Ellen padecia de uma pressão interna que não compreendia, sentindo-se vazia. Todos os seus atos eram uma resposta às imposições de seu meio e particularmente de seus pais. Estes sempre se referiam à filha como provocativa, teimosa, ambiciosa e violenta, o que faz com que Ellen rompa o laço de confiança com o Mitwelt (aqui representado especialmente pela sua família), estreitando o âmbito de suas possibilidades existênciais e reduzindo-o a setores limitados de sua possível conduta ("tudo ou nada").

Ellen não se abre ao mundo; em vez de dominar a situação, ela é dominada e sua existência perde autonomia: os outros exercem uma supremacia negativa com respeito à suas decisões, e Ellen fecha-se num eu dependente, inautêntico e escravo, embora procure demonstrar auto-suficiência.

Em certo período de sua vida, Ellen se identifica muito com um escritor chamado Niels Lyhne, passando a compreender o mundo como opressivo e sendo influenciada pela idéia de que o sujeito precisa de força e independência para viver plenamente e transformar o mundo. É nesta época que fomenta uma oposição a seu pai, o que fortalece seu individualismo, ou uma dificuldade ainda maior com o Mitwelt. Começa a compor poesias e escrever em seu diário, refletindo sobre sua situação e fixando objetivos, num esforço de autoconhecimento. A rebeldia se transforma em ambição por melhorias sociais e revolução e, apoiando-se nisso se move, então, um pouco, em sua existência. Como nos conceitos do livro de Niels Lyhne de "existência elevada às alturas" e "melhores momentos", também tenta elevar sua existência ao reino do superlativo — o que também requer "forças e independência" superlativas.

A existência de Ellen não está plantada firmemente, com os "pés no chão", para usar suas próprias palavras: suas ações estão comprometidas por "vôos aéreos" (semelhante aos conceitos do livro de seu autor predileto) e por "rastejos sob a terra" (como costumava escrever em suas poesias). Seu movimento existêncial corresponde a estes três "mundos": andar na terra (atuação prática), voar pelos ares (ideais, desejos alados) e rastejar embaixo da terra (opressão); sua existência é reduzida a um número cada vez menor de possibilidades, o que a paralisa a ponto de se ver anulada pelo "mundo embaixo da terra".

Suas poesias retratam o contraste entre o "mundo aéreo" (em que se imagina voando em um impulso incontrolável de liberdade) e o "mundo estreito". Sucede-se, então, uma sistemática limitação de seus "planos aéreos": embora trabalhe muito para manter seus "pés no chão", não vê resultados duradouros e, em vez de aprender com seus fracassos, se deixa abater cada vez mais, convertendo o mundo em um deserto de infinita desolação.

O que dizer então de seu desejo de ser "leve e delicada" como suas amigas? O corpo representava para Ellen a identidade de sua condição no mundo, uma tensão extrema relativa ao seu peso. Devemos lembrar que a corporeidade é apenas uma forma particular da existência humana, que em certas circunstâncias permanece como o único campo de expressão, como no caso de Ellen, que não conseguia verbalizar nenhuma oposição aos pais. Simultaneamente à aparição deste desejo, também se fortifica a contradição entre mundo fechado, cinza, frio; e mundo vasto, móvel, radiante — mundo etéreo, que não é aplicável (desejo de coisas grandiosas). Cada vez mais se consolidam suas angústias, seu corpo toma cada vez mais parte do mundo etéreo. Um exemplo disto é seu esforço na prática da equitação, prática esta que requer um corpo leve e elástico.

Outra tentativa de harmonizar os mundos acontece quando se relaciona com o estudante; trata-se de uma tentativa frustrada ao terminar o relacionamento a pedido dos pais, ou seja, novamente ganha a imposição do Mitwelt, representado pela sua família. Devido a tais fracassos, sua vida encontra-se ameaçada pela incapacidade de concretizar seus desejos; logo predominam os sentimentos de ameaça, angústia, ansiedade e medo.

A condição de seu corpo representa o verdadeiro desafio contra a "eterilização": encerra sua possibilidade existêncial nas associações que faz entre magreza, como sendo o equivalente a ser jovem, atrativa, inteligente, e gordura, significando feiúra, envelhecimento e estupidez.

Na verdade, o medo de engordar constitui apenas um sintoma sobre o qual se manifesta sua enfermidade, mas a biografia de Ellen West gira circularmente em um presente fechado ao porvir, presente enrijecido pelo passado e, por isso mesmo, vazio. Podemos ilustrar isto através da própria descrição que faz de si, referindo-se ao seu interior e ao seu corpo como estando intimamente entrelaçados, de tal maneira que formariam uma unidade e constituiriam, conjuntamente, seu eu: "ilógico, nervoso e individual". Sua angústia é essencialmente a angústia de ser-no-mundo, mundo este que para ela é ameaçador. Por isso acovarda-se, e sua apatia substitui o trabalho. Ellen deseja um salvador que possa libertá-la de sua existência — a morte: "se não posso conservar-me jovem e magra, então melhor nada", diz ela. Sente-se convertida em uma marionete (passividade e inércia é o que está caracterizando a existência de Ellen), ela que queria fazer algo grandioso. Já não pode repor-se através da auto-análise, do trabalho ou da equitação, mas sim mediante a comida. Surge o dilema entre o impulso de comer e o horror a engordar, que representam o choque entre os mundos (o Eingenwelt e o Mitwelt).

O namoro com o estudante representa seu último, mais sério e mais prolongado esforço para harmonizar o mundo etéreo com o terreno. Por isso passa por um longo período de vacilação entre o estudante e o primo, que representam, simultaneamente, o mundo etéreo e o mundo terreno, dominado pelas regras do Mitwelt.

A restrição imposta pela esfera corporal do Eigenwelt alcança uma importância tão predominante, que transforma toda sua existência em terror, ódio e desespero, pois se depara com o muro intransponível de corpo visto como gordo, realizando truques e estratagemas contra a obesidade, uma ação tanto esgotadora quanto estéril. Por não conseguir transpor tal muro, suicida-se para acabar com a sensação de vazio, que lhe dominava, principalmente depois de comer. A ânsia desesperada por comida, a fome bestial e o horror a engordar formam uma rede tão fechada que sua existência não pode sair de suas malhas: é escrava do mundo "pesado", só pode acalmar sua inquietude comendo, com o único resultado de duplicar a cada garfada sua infelicidade — o círculo está fechado; sua vida se transforma num inferno sem saída. Ellen, que se acreditava tão independente da opinião dos demais, estava agora completamente dependente do pensamento dos outros sobre sua aparência — uma demonstração de seu confinamento ao Mitwelt. Queria, então, morrer "como a ave que rompe sua garganta em um grito de supremo gozo", como ela mesma escreve em sua poesia: romper a garganta e não poder mais comer. A idéia da morte havia sombreado toda sua vida: "Lutando pela vida busco a morte e, buscando a morte, encontro a vida", diz ela.

Segundo Binswanger (1977), a existência, no caso de Ellen, estava "madura para morrer", ou seja, a morte era um coroamento necessário do sentido vital desta existência em que imperava a supremacia do passado (vida que não é vivida). A existência havia se encerrado em um presente oco, totalmente desconectado do futuro. A vista da morte premeditada só poderia ser encarada com alegria, quando a morte fosse vista como fruto maduro da existência; por isso Ellen planejou uma verdadeira festa de despedida da vida. A morte foi a única saída encontrada por ela para o conflito principal de sua existência, encerrada entre ser ela mesma e não ser, se submetendo aos desejos do Mitwelt. O suicídio e com ele a aniquilação, o nada, adquire um sentido desesperadoramente positivo: morte como amiga, trazendo em sua comitiva a liberdade.

Uma possibilidade de analisar este caso clínico é, portanto, justamente através da compreensão da vida de Ellen West como uma vida totalmente inautêntica. Ellen nunca conseguiu ser ela mesma, constituindo-se na interseção do seu Eigenwelt, Mitwelt e Umwelt. Como bem coloca Binswanger (1977), Ellen foi escrava do seu Mitwelt, sempre atendendo ao que sua família supostamente esperaria dela.

 

Conclusão

O caso de Ellen West, apresentado por Binswanger, dá lugar a inúmeros questionamentos, inclusive de ordem moral, dado que ela se suicida. Do ponto de vista teórico, segundo Binswanger, sua morte tem um lugar necessário em sua existência. Mas, além desta perspectiva, este caso clínico dá lugar a outras perspectivas de análise, mostrando a historicidade e transculturalidade dos distintos quadros psicopatológicos. Se Ellen West fosse atendida atualmente, e não na primeira metade do século XX, como teria sido diagnosticada? Será que não teríamos aí mais um caso de desordem alimentar - anorexia nervosa, tão comum em nossos dias? Em que medida uma possível mudança do diagnóstico contribuiria para a compreensão de seu sofrimento? O quanto este caso exemplifica, em termos de diagnóstico, uma superposição ou entrelaçamento dos quadros clínicos de desordem alimentar e de depressão, a ponto de levar ao suicídio? Faria diferença, para o psicoterapeuta, o diagnóstico? Estes questionamentos lembram a necessidade, sempre, de que o psicoterapeuta se utilize do diagnóstico, entendendo-o apenas como uma lente, e que, por isso mesmo, é móvel e provisória.

Independente do diagnóstico, que nada mais é que uma possível lente, o caso de Ellen West, de Binswanger, tornou-se um clássico da Psicopatologia Fenomenológica pela riqueza de detalhes da descrição da experiência vivida, bem como da análise realizada por Binswanger, no âmbito clínico, utilizando-se dos conceitos de Eigenwelt, Umwelt e Mitwelt. A compreensão do movimento existêncial de Ellen, em termos do seu mundo vivido, ilustra, com muita clareza, a importância da harmonia no entrelaçamento do Eigenwelt, Umwelt e Mitwelt, que viabilize uma existência sadia, autêntica. A impossibilidade de que sua existência se desse na interseção do Eigenwelt, Umwelt e Mitwelt, pela preponderância do Mitwelt, gerou uma existência inautêntica de tamanho sofrimento, que a levou a decidir pela não existência.

 

Referências

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Recebido em 09 de maio de 2005
Aceito em 23 de maio de 2005
Revisado em 20 de junho de 2005

 

 

* Este artigo se originou do trabalho final das alunas Ana Vládia Holanda Cruz e Luciana Vasconcelos na disciplina de Psicopatologia Fenomenológica, ministrada pela Profa. Dra. Virgínia Moreira no Curso de Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza — UNIFOR.

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