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Cógito
Print version ISSN 1519-9479
Cogito vol.2 Salvador 2000
PSICANÁLISE E CRIAÇÃO
O sujeito e a sarjeta:
Cadeia significante e história em quadrinhos*
Miriam Elza Gorender**
Círculo Psicanalítico da Bahia
RESUMO
A autora procura, neste trabalho, chegar a uma definição mais precisa das histórias em quadrinhos (HQ), partindo não apenas das definições existentes anteriormente, mas também dos conceitos psicanalíticos e lingüísticos de vazio, cadeia significante, sujeito do inconsciente, e do exame de algumas das relações das HQ com a linguagem, particularmente com a escrita, tendo em vista a possibilidade de estudo de HQ pela Psicanálise.
Unitermos:História em quadrinhos, vazio, sujeito, sujeito do inconsciente, cadeia significante.
Poucos são os trabalhos psicanalíticos que até agora se voltaram para as histórias em quadrinhos (HQ). E, mesmo assim, o pouco que já foi feito volta-se em geral para o conteúdo das HQ, não para sua estrutura. Afinal de contas, o que é uma HQ para que se queira analisá-la? Quais as relações de um meio no qual aparentemente predomina o visual com um método de pesquisa que tem na linguagem seu campo privilegiado? Pergunta que à primeira vista parece fácil, mas que certamente não o é. Senão, vejamos:
Alguns estudiosos da HQ, e aqui não falo de psicanalistas, definem a HQ a partir do que consideram seu elemento mais característico: o balão Por exemplo, Bibe-Luyten dá como principal característica das HQ precisamente o balão, ou seja, o texto contido por uma linha de contorno variado, e que aponta em sua extremidade para o personagem que exprime o pensamento ou a fala. Este teria começado a ser utilizado na virada do século, com o personagem Yellow Kid, criado por Richard Outcault para aumentar a vendagem em meio a uma verdadeira guerra de grandes jornais por maiores tiragens. Esta definição considera essencialmente as HQ como forma particular de junção de imagens e linguagem escrita.
Contradizendo a autora, além do fato de que as HQ podem prescindir de palavras (e de fato prescindem, como o demonstram algumas obras, experimentais ou antigas, como os trabalhos de William Hogarth, ou mesmo, por exemplo, as imagens religiosas da Paixão de Cristo), o uso do balão (ou filactério, devido aos pergaminhos com preces que os judeus usam em ocasiões cerimoniais enrolados nos braços) é bem mais antigo que a invenção da imprensa. Em panfletos medievais, por exemplo, pode-se ver “fitas” com frases que apontam para os personagens, com função semelhante aos balões. Mas o importante a considerar é que o balão ou filactério não é, de forma alguma, uma exigência estrutural da HQ. Da mesma forma, não o é a simples justaposição de palavras e imagens pictóricas, pelo simples motivo de que as palavras não são um atributo necessário (no sentido lógico do termo) aos quadrinhos. Ou seja, estes podem existir sem palavras.
Outros, como Moacy Cirne, situam as HQ como fenômeno da cultura de massa, conseqüência do advento daimprensa, e principalmente dos jornais de grande tiragem, inicialmente nos Estados Unidos, e depois na Europa e em outros locais. Para estes autores, obras como a tapeçaria de Bayeux, com mais de 70 metros, e que descreve a conquista da Inglaterra pelos normandos a partir do ano 1066 d.C., situa-se numa espécie de pré-história nebulosa.
Umberto Eco examina alguns aspectos estruturais das HQ, particularmente sua correspondência com o código da linguagem. Por exemplo, demonstra a existência, nos quadrinhos, do equivalente a: um vocabulário (ou ao menos o que chama de repertório simbólico), uma semântica (onde entram o balão e as onomatopéias - significantes com função sonora), uma gramática do enquadramento, uma sintaxe que se relaciona às leis de montagem (que diferem da montagem feita no cinema) e de todos os elementos da narrativa, do enredo à declaração ideológica. Mas parece considerar a existência em si destes elementos lingüísticos como suficiente para estabelecer as HQ como linguagem.
Para uma definição mais rigorosa das HQ, vale a pena examinar os conceitos estabelecidos por dois americanos, ambos autores de quadrinhos: Will Eisner e Scott McCloud. Os dois estão aqui juntos porque, na verdade, o trabalho de McCloud, apesar de ir bem mais longe, foi fortemente influenciado e partiu das premissas estabelecidas por Eisner. Vejamos o que dizem, e até onde se pode chegar com eles.
Eisner define as HQ como ‘arte seqüencial’, termo que “pegou” nos EUA, como se fosse auto-explicativo. Mas McCloud, parte desta definição e a refina. Num processo que me parece muito interessante, propõe, para começar, que o termo ‘visual’ seja incluído na definição, para logo depois lembrar que a animação cinematográfica também se encaixaria numa definição deste tipo. O desenho animado é, afinal de contas, apenas arte visual em seqüência. A diferença básica entre o desenho animado e a HQ está no uso do tempo e do espaço. O desenho animado é seqüencial no tempo mas não é espacialmente justaposto como são as HQ. Assim, cada quadro sucessivo de um filme é projetado exatamente num mesmo espaço, enquanto cada quadro de HQ deve ocupar um espaço diferente. Desta forma, o espaço nos quadrinhos equivale ao tempo no filme. No entanto, antes de ser projetado, pode-se dizer que um filme é apenas uma HQ em ritmo muito lento.
Tenta a seguir “arte visual seqüencial justaposta”. Ainda não serve, porque a palavra arte implica aí um julgamento de valor. Além disto, sendo as HQ um meio, este pode ou não dar expressão à arte. Descarta também a definição “imagens estáticas justapostas em seqüência deliberada”. Isto porque esta definição poderia prestar-se a confusões no que concerne ao texto escrito, o qual pode (embora não necessariamente) estar incluso numa HQ. Afinal, letras são apenas imagens estáticas, justapostas em seqüência deliberada para formar a linguagem escrita. Chega porfim à seguinte definição: “imagens pictóricas ou de outros tipos justapostas em seqüência deliberada, com a intenção de transmitir informação e/ou produzir uma resposta estética no espectador.”
A partir da sua definição, McCloud examina o histórico do uso das HQ. Ora, até há algum tempo atrás, e segundo vários autores, utilizando justamente definições que diferem da acima vista, as HQ seriam um fenômeno específico do século XX.
Mas se for considerada a última definição, a história das HQ é bem mais antiga do que Bayeux. Por exemplo, uma seqüência de pinturas egípcias que deve ser lida em ziguezague, de baixo para cima, começando da esquerda, figurando desde a colheita de trigo e sua estocagem até o recolhimento dos impostos sobre a colheita pelo faraó Menna e o castigo infligido aos sonegadores.
De todos os modos, a imprensa provocou uma mudança radical, não na criação das HQ mas na sua popularização e na definição de estereótipos que, apesar de parecerem definir a forma dos quadrinhos por sua quase onipresença, não constituem, na realidade, sua verdadeira essência.
Numa tentativa de melhor especificar a definição que propõe, procura descobrir seus limites. Assim, para ele, painéis isolados, contendo texto e imagens, fora de qualquer seqüência, e que freqüentemente são classificados como HQ, não o seriam. Permanece neste ponto a pergunta: por que é tão fácil e comum o enquadramento destes painéis (muitas vezes denominados cartoons, ou numa versão para o português, cartuns) como HQ? Talvez este trabalho possa dar um início de uma resposta. Para chegar ao ponto, é preciso ficar ainda um pouco mais com McCloud.
Este, em outro capítulo, lança mão de um conceito proveniente, ao que parece da teoria da Gestalt, e que chama de closure (em português, fechamento). Define o fenômeno como a possibilidade de observar as partes mas perceber o todo, e relaciona-o ao jogo que os norte-americanos chamam de peek-a-boo, jogo infantil onde um indivíduo, em geral a mãe, alternadamente se esconde e se revela à criança pequena, gritando, justamente, peek-a-boo ao reaparecer. Citando,
As infants, we’re unable to commit that act of faith. If we can’t see it, hear it, smell it, taste it or touch it, it isn’t there! The game of “peek-a-boo” plays on this idea. Gradually, we all learn that even though the sight of mommy comes and goes, mommy remains. (p.62) 1
Este fenômeno ocorre nos mais variados setores da vida diária, e o cinema depende dele. É esta capacidade que permite ao olho perceber imagens isoladas, projetadas ao ritmo de vinte e quatro por segundo, como uma imagem contínua em movimento. A televisão também depende disto, ao fazer um único ponto de luz percorrer a tela com incrível rapidez, delineando em seu trajeto as formas nela vistas.
McCloud fala das HQ como “...a medium of communication and expression which usesclosure like no other, a medium where the audience is a willing and conscious collaborator and closure is the agent of change, time and motion.” (p. 65).2
Com base no conceito de fechamento, McCloud chama a atenção para o espaço em branco entre os quadrinhos. Este espaço, em inglês, é denominado the gutter, ou a sarjeta. Sobre a sarjeta:
...and despite its unceremonious title, the gutter plays host to much of the magic and mystery that are at the very heart of comics! Here in the limbo of the gutter, human imagination takes two separate images and transforms them into a single idea. Nothing is seen between the two panels, but experience tells you that something must be there! ... If visual iconography is the vocabulary of comics, closure is its grammar. (p. 66-67)3
A diferença em relação ao cinema e à televisão é que nestas o fechamento é contínuo, na sua maior parte involuntário e virtualmente imperceptível. Mas não nos quadrinhos: “Every act committed to paper by the comics artist is aided and abetted by a silent accomplice. An equal partner in crime known as the reader” (p. 68)4
É verdade que, antes dele, Fresnault-Deruelle já havia chamado a atenção para a sarjeta: “...le descontinu fonde lúnivers de la bande dessinée...et se matérialise par les blancs entre les rectangles.” (Fresnault-Deruelle, p. 50)5 Tomando como ponto de partida os mangás (quadrinhos japoneses), chama a atenção para o fato de que no Japão, mais do que em qualquer outro lugar, a HQ é uma arte de intervalos, que associa à longa tradição oriental de valorização do vazio e do silêncio.
O espaço em branco da sarjeta é imaginado por McCloud como um vazio onde o leitor é lançado, como um trapezista, para ser pego pelo quadro seguinte.
Mas pensando em termos psicanalíticos, penso que se pode ir um pouco mais longe. Começo pensando na similaridade da brincadeira do peek-a-boo (jogo bastante universal de esconde-esconde, na verdade, e já examinado, por exemplo, por Arminda Aberastury) com o jogo do fort-da. Jogo que, como sabemos, introduz um início de castração e uma passagem ao registro do simbólico no real da falta e do gozo, no Mais Além do Princípio do Prazer. A falta, aqui, figura como o que permanece ao fundo da cadeia associativa, da linguagem. E é precisamente a falta, o vazio, que vai estabelecer a HQ como meio de expressão estruturado como linguagem.
Sendo por sua própria definição, “imagens justapostas em seqüência deliberada”, um meio que envolve intervalos, fraturas, vazios enfim, estes vazios surgem como essenciais à própria definição. Tão essenciais, certamente, como o silêncio entre cada palavra falada ou escrita. Aí se revela a extrema felicidade do termo “sarjeta”. É, efetivamente, na sarjeta, mais entre os quadrinhos do que dentro dos mesmos (com todo o seu celebrado apelo visual), que o imaginário poderá deixar cair todos os seus restos. O que é chamado fechamento nada mais é do que esterecobrimento cotidiano da falta, a mesma falta na qual se recai entre duas palavras. O fato de a definição de HQ utilizada incluir os termos “seqüência deliberada” permite supor uma cadeia significante que só pode partir de um sujeito, e que só pode dirigir-se a um sujeito. E sendo o vazio o lugar do sujeito, o lugar privilegiado do sujeito nas HQ é a sarjeta.
Que existe mesmo quando não se mostra, nos quadrinhos separados por linhas negras ou sem separação distinta. Por exemplo, por comparação, quando se escreve uma frase sem qualquer separação entre as palavras, as fraturas são reconstituídas na leitura.
E mais, as imagens pictóricas nas HQ não estão nos quadrinhos como o equivalente de uma fotografia, ou de uma paisagem natural, mas tem um efeito significante, efeito que permite a presença em cada um de seus elementos do engano e do mal-entendido. Este efeito é assegurado justamente pela sua inserção em uma cadeia, e pela sua inscrição em uma rede significante. Esta rede significante das HQ, embora mais fluida e menos organizada, ao menos aparentemente, que a linguagem verbal, é o que permite falar de um léxico, gramática, sintaxe dos quadrinhos, etc. É o que permite a inclusão de cartuns de um só painel no universo das HQ, pois assim como uma palavra nunca está isolada, só podendo existir dentro da rede da linguagem, um cartum só pode ser compreendido como parte e elo de uma cadeia significante. E é isso também o que permite a aplicação da Psicanálise às HQ, com a utilização da Lingüística afetada pela Psicanálise para tal fim.
BIBLIOGRAFIA
BIBE-LUYTEN, Sonia. O Que é História em Quadrinhos. - Coleção Primeiros Passos nº144. São Paulo, Brasiliense, 1993 [ Links ]
CIRNE, Moacy. Bum! A Explosão Criativa dos Quadrinhos. Petrópolis: Vozes,1970. [ Links ]
___________ Para Ler os Quadrinhos. Petrópolis: Vozes.1972. [ Links ]
___________ Uma Introdução Política aos Quadrinhos. Rio de Janeiro: Angra-Achiamé, 1982. [ Links ]
ECO, Umberto. Viagem na Irrealidade Cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1990. [ Links ]
_____________ Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva,1993. [ Links ]
EISNER, Will. Comics & sequential art. Tamarac, Florida: Poor house, 1996. [ Links ]
___________ Graphic storytelling. Tamarac, Florida: Poor house, 1996. [ Links ]
FRESNAULT-DERUELLE, Pierre. 1972. La bande dessinée. França: Hachette [ Links ]
FREUD, Sigmund. Obras Completas. Standart Edition. Rio de Janeiro: Imago.1980. [ Links ]
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GADET, Françoise. Saussure une science de la langue. Paris: Presses Universitaires de France 1987. [ Links ]
LACAN, Jacques. “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”(1957) in: Escritos. São Paulo, Perspectiva,1989. [ Links ]
______________“Función y campo de la palabra e del lenguage en psicoanálisis” (1956) in: Escritos. México, Siglo Veintiuno,1978. [ Links ]
MCCLOUD, Scott. . Understanding comics. New York: Harper Perennial,1994. [ Links ]
Notas
* Apresentado na X Jornada do CPB, “Psicanálise e Criação” - Novembro/98
** Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia, Professora Auxiliar de Neuropsiquiatria da UFBa, doutoranda em Psicanálise pela UFRJ.
1 Quando crianças, somos incapazes de realizar este ato de fé. Se não podemos ver, ouvir, cheirar, provar ou tocar, então não está lá. A brincadeira de peek-a-boo joga com esta idéia. Gradualmente, todos aprendemos que mesmo que a visão da mamãe vá e venha, a mamãe permanece.
2 ...um meio de comunicação e expressão que usa o fechamento como nenhum outro, um meio onde a audiência é um colaborador voluntário e consciente e o fechamento é o agente de mudança, tempo e movimento.
3 ...e a despeito de seu título sem-cerimônia, a sarjeta é responsável por muito da mágica e do mistério que estão no próprio coração das HQ. Aqui no limbo da sarjeta, a imaginação humana toma duas imagens separadas e as transforma numa única idéia. Nada é visto entre os dois painéis, mas a experiência lhe diz que algo deve estar lá! ... Se a iconografia visual é o vocabulário das HQ, o fechamento é sua gramática
4 Todo ato colocado no papel pelo artista de quadrinhos é auxiliado e sustentado por um cúmplice silencioso. Um sócio em partes iguais no crime conhecido como o leitor.
5 ..o descontínuo funda o universo das HQ....e se materializa nos vazios entre os painéis.