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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.24 Rio de Janeiro June 2012

 

PRELÚDIO E CONFERÊNCIA

 

Desmitificar a interpretação

 

Demystifying the interpretation

 

 

Marc Strauss*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano- França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor pretende, com este artigo, desmitificar a interpretação, convocada pelo uso que se faz de Édipo, acentuando as semelhanças e diferenças para Freud e Lacan quanto à definição do sintoma como manifestação da verdade e finalidade de uma análise. Para fundamentar a sua proposta, ele trabalha o conceito de interpretação equívoca de Lacan interrogando se o seu uso é suficiente para mostrar uma análise orientada para o real e também interroga de quem é a decisão do fim da multiplicidade de sentido. Conclui o seu artigo, justificando com um exemplo clínico, que utilização do equívoco pode levar a mais-de-sentido – resposta à primeira indagação –, e que, enquanto a análise não está terminada, enquanto a função do sujeito suposto saber é mobilizável, pode-se dizer que uma formação do inconsciente tem sempre ainda um sentido – sua posição diante da segunda questão.

Palavras-chave: Interpretação, verdade, sujeito suposto saber, final de análise.


ABSTRACT

In this article, the author seeks to demystify the interpretation, triggered by the use made of the Oedipus, highlighting the similarities and the differences to Freud and Lacan regarding the definition of the symptom as a manifestation of the truth and the objective of an analysis. In order to support the proposal, the author discusses Lacan's concept of equivocation, questioning whether its use is enough to show an analysis oriented to the real, and also questions who decides about the end of the multiplicity of meaning. The author concludes the article by justifying with a clinical example, that the use of misunderstanding can lead to ‘more meaning' – answer to the first question – and that, when an analysis is not over yet, while the function of the subject supposed to know is still mobilized, it can be said that a manifestation of the unconscious still carries a meaning – the author's position related to the second question.

Keywords: Interpretation, truth, subject supposed to know, end of analysis.


 

 

A injunção de desmitificar a interpretação responde ao fato de que ela, a interpretação, é convocada pelo uso que fazemos do Édipo, sobre o qual incide a minha questão nesse prelúdio.1

Com efeito, a interpretação edipiana é o pedestal, pelo menos histórico, da reflexão psicanalítica. Contudo, sabemos, pelo menos por ter lido o argumento desta jornada, que Lacan criticou, inclusive condenou, essa referência como o que deve decidir a interpretação psicanalítica.

Escolhi este termo – interpretação – e depois fiquei com uma dúvida: ele existe ou o inventei com base no desmistificar? Depois de verificar, eu me assegurei de que ele existe. Mas, uma surpresinha, é um termo muito recente em nossa língua, porque foi apresentado pela primeira vez no jornal Le Monde em 15 de maio de 1966 e atestado no Quillet, suplemento de 1971. Cinco anos, portanto, para passar do nascimento à morte, eu não saberia afirmar, mas seja como for, à consagração no dicionário. Eu não sou, infelizmente, arrebatado pela linguística para saber qual é a duração média do trajeto de uma palavra. Assim, como eu tinha ido aos dicionários, naturalmente fui ver também o termo desmistificar, implícito no desmitificar. Aí, a surpresa foi muito maior, pois este termo é bem mais antigo que o outro; ele é atestado em 1948 no Robert e no Larousse, com desmistificador e desmistificadora. Infelizmente, o TLF não dá o lugar nem o momento do aparecimento da palavra, a menos que não tenha sido impressa antes e que não tenha sido usada senão oralmente até então. Não sei também se esse tipo de situação existe, a primeira escrita de uma palavra diretamente no dicionário, mas por que não...

Evidentemente, a definição dos dois termos difere sensivelmente ainda que ambos visem desfazer, de preferência, a criar. Desse modo, "livrar (um personagem, uma entidade abstrata) de seus aspectos míticos que velam a realidade subjacente", definição, é óbvio, de desmitificar, não apela ao mesmo campo semântico que o outro, desmistificar: "Se incide sobre uma coisa, trata-se de despojá-la de seu caráter misterioso ou enganosamente embelezante, mostrando-a tal como é realmente; e se incide sobre uma pessoa, trata-se de desenganá-la mostrando a realidade tal qual, arrebatá-la de sua credulidade causada por um engodo coletivo".

Tanto desmitificar tem, portanto, a dimensão objetiva de uma fria operação científica, como desmistificar comporta em si uma dimensão de mistério certamente, porém enganoso, mentiroso, enfim, condenável.

E com essa referência à mentira, somos imediatamente reconduzidos ao nosso campo, a psicanálise, e desde o Esboço, de Freud. Sabemos que nesse texto do Esboço, para explicitar a significação inconsciente do sintoma, dito de outra maneira, sua dimensão sexual e infantil, Freud fala acerca desta mulher que não pode entrar sozinha em uma loja, da "Proton Pseudos", primeira mentira.

Reencontramos esta problemática da mentira explicitamente desenvolvida em um pequeno artigo de Freud. Duas mentiras contadas por crianças, de 1913, artigo que recomendo vivamente para dar a medida do que é ordenar o material de um caso clínico. Os dois pequenos mentirosos dos quais ele fala cometeram sua falta em razão justamente de uma ligação inconsciente muito forte com o pai, edipiana, portanto.

Sabemos também que Lacan fez muito caso da mentira. Obviamente, ele começou por valorizar a palavra da verdade, ressaltando que mesmo a mentira não era sem referência a ela; e ele quis mostrar como a mentira da conduta dos pais tem um efeito devastador na criança. Porém, concluiu colocando-a de certa maneira no mesmo plano com sua expressão "verdade mentirosa", no Prefácio à edição inglesa do Seminário 11 (1976, p.569), que comentamos com obstinação, sob a condução de Colette Soler, quatro anos atrás. Para um texto de duas páginas, podemos reconhecer a performance. E não acabou, vocês verão daqui a pouco!

Se a verdade é mentira, verdade e mentira então são idênticas? E se torna a mentira, a verdadeira mentira, a do bom mentiroso? Eis aí uma pergunta que apenas gostaria de colocar, pois nosso assunto é outro.

Dissemos que Lacan se empenhou em combater certo uso do Édipo, tão vão em sua dimensão sistemática quanto em sua utilidade prática. Porém, antes de chegar à desmitificação do Édipo por Lacan, não é inútil, me parece, observar que ele, no início, o mitificou. Ou, para ser mais exato, ele procurou fazer dessa tragédia um mito autêntico, autêntico no sentido da definição que disso deu aquele que ligou seu nome ao estudo dos mitos, Claude Lévi-Strauss. Era o objetivo de Lacan em 1953, como se pode ler em sua intervenção no Colégio de Filosofia, a convite de Jean Wahl. Uma intervenção da qual não temos o escrito de Lacan, mas apenas transcrições, uma delas publicada em Ornicar? nos 17/18, com o título de O mito individual do neurótico.2 Um título de fato incompleto, porque descobri, graças à internet, que foi anunciado com o título de Mito individual do neurótico,ou Poesia e verdade na neurose. Não deploramos este desaparecimento "ornicariano" da poesia e da verdade, e constatamos, de preferência, no texto de Lacan, que ele critica, explicitamente, não Freud, mas todo o esquema do Édipo.

Citá-lo-ei depois de ter lembrado que ele se apoia em dois casos: O homem dos ratos e Goethe, para mostrar que a estrutura fantasiosa que determina a realidade da relação ao objeto possui não três, mas quatro elementos e, assim, tem a estrutura de um mito. A citação é a seguinte:

O sistema quaternário, tão fundamental nos impasses, insolubilidades da situação vital das neuroses, é de uma estrutura bastante diferente da que é dada tradicionalmente – o desejo incestuoso da mãe, a interdição do pai, seus efeitos de barragem, e, em torno disso, a proliferação mais ou menos luxuriante dos sintomas. Creio que esta diferença deveria nos levar a discutir a antropologia geral que emerge da doutrina analítica tal qual ela é ensinada até o presente. Em uma palavra, todo o esquema do Édipo deve ser criticado (p. 304).

Ele prossegue dizendo que não tem tempo de fazê-lo, mas não pode deixar de tentar introduzir o quarto elemento de que se trata. E depois de nos ter mostrado o impossível recobrimento do pai simbólico em toda a sua plenitude com o pai da realidade, sempre de alguma maneira carente, nos diz qual é este quarto termo: a morte. Citação, ainda, do fim do texto:

É a morte imaginária e imaginada que se introduz na dialética do drama edipiano, e é dela que se trata na formação do sintoma do neurótico – e talvez, até certo ponto, em algo que ultrapassa muito a formação do neurótico, ou seja, a atitude existencial característica do homem moderno. (ibid.)

Desse modo, a assunção do ser para a morte, teoria de Lacan do fim da análise nessa época, implícita nesse texto, porém explícita alhures, é a solução dos impasses neuróticos aos quais conduz o Édipo patógeno; a expressão é dele.

A finalidade de uma análise se exprime, portanto, diferentemente conforme nos referimos ao romance freudiano ou ao mito lacaniano. Com Freud, podemos dizer que o sujeito deve, graças à análise, suspender o recalcamento e assim se desfazer das fixações edipianas infantis, com o objetivo do que chamarei "atualizar sua vida". Para Lacan, o sujeito deve-se assumir, reconhecendo-se neste lugar, quarto da morte, para poder se livrar dos efeitos patógenos das identificações narcísicas, impossíveis de conciliar com as que lhe fornece sua constelação familiar e, desse modo, também atualizar sua vida. Passo, por falta de tempo, à descrição que ele faz de um sujeito isento de neurose.

Dito isso, a crítica de Lacan incide, ao que me parece, menos sobre Freud, embora ela exista também, do que sobre o uso do complexo de Édipo na interpretação de seus contemporâneos – e sobre o ensino da psicanálise que teve curso nos anos 50. Com efeito, reconhecemos em Freud que a impossibilidade já tem nele uma função absolutamente determinante: é exatamente porque a satisfação edipiana é faltante, não realizada, que ela tem a importância que Freud lhe dá na constituição e na forma do desejo. Deste ponto de vista, Lacan coloca o mito e o romance no mesmo plano, o de "dar forma a uma impossibilidade", porém substitui a impossibilidade factual pela impossibilidade de estrutura, fórmula de Televisão em 1974, já presente no texto de 1953: 

O elemento da dívida está colocado em dois planos ao mesmo tempo – precisamente no plano do símbolo e no da realidade da constelação familiar tal como constituída pelo sujeito, da fantasia portanto – e é exatamente na impossibilidade de reunir os dois planos que se estabelece todo o drama do neurótico. (ibid.)

Indico também pela leitura do que se segue, que o não-neurótico não é aquele que chegou a juntar os dois planos, mas aquele que, graças à assunção do ser para a morte, teria feito ato desta impossibilidade.

Desse modo, Édipo triangular ou quaternário, a definição do sintoma se aproxima nos dois, sendo a manifestação de uma verdade que se trata de decifrar para trazer à tona: verdade inconsciente de um laço reprimido para Freud, verdade de um impossível que se manifesta na depreciação do saber para Lacan.

Depois de ter acentuado as semelhanças, acentuemos agora uma diferença: a interpretação do excessivo apego infantil posta em destaque é uma explicação do sintoma suposta ser em si terapêutica, o dito sintoma se dissolvendo à luz do dia como o vampiro que ele é. Sabemos que a virada dos anos 20 foi provocada por um sério questionamento pelos pacientes sobre a eficácia desta interpretação pela iluminação que tinha perdido todo o efeito de surpresa.

E antes de chegar – porque esperamos todos, suponho –, à interpretação equívoca de Lacan, que deve jogar contra o sentido, recebida como tardia em seu ensino, vamos nos interrogar sobre o que pode ser o funcionamento pela operação analítica da morte nas figuras identificatórias da constelação familiar do sujeito. Não há lá, me parece, muito lugar para o sentido, e duvido que explicar a um sujeito que ele é, fundamental e estruturalmente, um sujeito para a morte, provoque grande efeito, mesmo consciente. Como então introduzi-la senão pela palavra (mot)... psiu (motus): o silêncio. Onde, sem forçar, já podemos reconhecer uma prática oposta à tagarelice, ainda que explicativa, e mesmo se um lugar para a fala plena ainda é reservado como possível. Dito de outra maneira, a morte, que representa aqui a castração, não é um mito.

Da mesma maneira que no percurso de Lacan não podemos manter a oposição sumária entre o sentido e o equívoco, igualmente me parece que não podemos, no outro extremo, reportar inteiramente a interpretação equívoca ao acento posto por Lacan sobre alíngua, em uma palavra, e sobre o inconsciente real. Parece-me que a apresentação do equívoco precede as elaborações sobre o inconsciente real e não as supõe necessariamente. Assim, para me fazer compreender, o cachorro que faz miau e o gato que faz au-au no texto A instância da letra (1957/1998) já é um equívoco, como o destaque que ele coloca em todas as cadeias significantes às quais a palavra árvore se pode prestar.

Com efeito, um equívoco é como uma piada. Para interrompê-lo em um momento de sideração, ele não para definitivamente a cadeia do sentido, ele a reorienta, a reordena em outro campo semântico. Para a piada, Freud nos mostrou como esse novo campo prova ser, por acréscimo, rico em satisfações tendenciosas que se tornam de súbito livremente acessíveis. Tendência supõe pulsão, donde podemos facilmente deduzir que o campo ou os campos semânticos abertos por um equívoco introduzido na cadeia do sentido fornecem o acesso ao emaranhado das pulsões e ao giro central do objeto.

Dito de outra maneira, a questão é a seguinte: o uso do equívoco é ou não suficiente para mostrar uma análise orientada para o real? E minha resposta é não. A utilização do equívoco pode levar a mais-de-sentido, inclusive a uma multiplicidade de mais-de-sentido. E esses mais-de-sentido podem convergir para um pleno de sentido, um sentido do sentido, um sentido último que se denomina fantasia. E com o destaque da fantasia, o sujeito, sempre elusivo por um lado, seu ser de objeto privilegiado por outro, não estamos ainda no inconsciente real, nem na moterialidade.

Dou um exemplo que não ilustrará senão o que acabo de dizer. Trata-se de uma paciente que sonha com o ator Georges Brasseur. Ele está aí, em um contexto familiar bastante vago para que nada se distinga, e, para dizer tudo, sua presença ganha toda densidade a partir de seu nome próprio pronunciado pela paciente no sonho. Ela associa: todo mundo diz que ele parece com seu pai; ele é filho de um pai célebre e provavelmente sentiu o peso disso sobre si; igualmente como com seu pai, sente o peso desta sombra tutelar. Há também a cerveja tomando seu nome próprio como um nome comum. Há, enfim, a mãe, sua relação com atores e outros homens célebres e sedutores, admitindo-se que não sejam sinônimos absolutos. Mas, enfim, este sonho continua a obsedá-la com tanta presença quanto o ator no próprio sonho. Ela continua, portanto, a pensar nisso durante e entre as sessões, até o momento em que a luz explode nela sem que ela tenha visto isto vindo: "bras-soeur". A irmã (soeur) e os braços da irmã ("bras de la soeur"). Um sentimento de evidência se impôs a ela, ela sabe, é a chave de seu sonho. Nela, se precipita uma série de lembranças e considerações acerca dessa irmã sobre a qual ela, com frequência e não sem algum mal-estar, surpreendida no divã, não tinha nada a dizer. Animada com sua descoberta, portanto, ela me relata e com efeito fala com abundância dessa irmã, suas opiniões lhe abrindo, para sua surpresa, perspectivas infinitamente mais vastas que antes, sobre sua relação com seus objetos de amor. E seu sonho, assim como a presença permanente do nome do ator, desapareceram de suas preocupações sem que ela notasse.

Vemos sentido novo graças ao equívoco, porém, ainda assim, sentido. Que este equívoco seja trazido pela própria paciente, que sabe sobre si tanto quanto os pacientes de Freud sobre o Édipo, não muda nada, porque a surpresa reside nas perspectivas que ela abre, mais do que em seu proferimento.

De equívoco em equívoco, portanto, até o pleno de sentido. Um pleno de sentido suposto como a parte mais alta de um edifício ser o último, coloca um término à sua deriva infinita. Um termo, insisto, à sua deriva, mas não ao próprio sentido. E para preencher seja o que for, por mais pleno que ele seja, ele não exprime do sentido sua causa. Ele não faz mais que tentar preenchê-la, sem levantar o véu, véu que faz anteparo à projeção da cena na qual se representa este sentido, como desejo falicamente ordenado.

Atrás do que esse véu esconde, há certamente um vazio, uma falta de representação, porém não há nada. Não chegamos ao ponto em que se trata, para Lacan, de levar em conta outros gozos além do fálico, que se referem ao significante apreendido na cadeia, isto é, no sentido, na história, na hystorização, tal como ele neologizou. Há um gozo próprio à língua, fora de sua apreensão na cadeia, fora do sentido e, portanto, fora do mito, que é então alíngua, em uma só palavra.

É ao tocá-la que se sabe que se está no inconsciente, e que não há mais nada a dizer dela, pois ela não tem mais nenhuma espécie de sentido. Aqueles que conhecem o Prefácio à edição inglesa do Seminário XI (op. cit.), todos agora, suponho, compreenderão que mantenho minha promessa do começo, ao solicitar novamente, porque terão reconhecido sua primeira frase: "Quando o esp de um laps... já não tem mais nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente. O que se sabe, consigo" (p.567). Esse não é, portanto, um último sentido, ao contrário, é um puro não-sentido último, porque os sentidos estão esgotados.

Uma vez mais, podemos solicitar nossa paciente: quando o enigma Brasseur se apresentou por intermédio do equívoco, perdeu seu valor de enigma, ela simplesmente não pensa mais nisso. Seu sonho reencontrou seu estatuto fundamental de formação do inconsciente e não pode permanecer em sua memória, como a mim, que falo aqui, a não ser como traço, resíduo.

Porém, isto é tão verdadeiro? E mesmo no caso do lapso, formação acidental e transitória da língua, é verdade que não tem nenhuma espécie de sentido?

Quem decide esta exaustão do sentido e a partir de quê?

Parece-me, salvo erro, pois não pretendo ter entendido e retido todos os comentários sobre esta primeira frase, que a dimensão assertiva que Lacan lhe dá, redobrada por seu enunciado "O que se sabe, consigo" (ibid.), nos obriga a nos interrogar sobre o que a asserção justamente permite. Portanto, recoloco a questão: quem decide a exaustão do sentido e sobre que critério ou argumento? Como se sabe disso? Qual é esse saber que se impõe a priori, antes que seja demonstrado, explicitado? Inclusive, é impossível explicitá-lo porque, como diz a frase imediatamente seguinte: "Basta que se preste atenção para que se saia dele". Como, com efeito, experimentar este saber em si, sem lhe prestar atenção, articulá-lo em cadeia de significantes para identificá-lo, nomeá-lo.

 Ainda nossa paciente: certamente, insisto sobre isso, sua atenção a seu sonho e a Brasseur desapareceu, porém é certo que este sonho não tem mais nenhuma espécie de sentido? Dito de outra maneira, eu não poderia, no caso de uma perplexidade da paciente diante de seus ditos, lhe despertar, deixando cair o tom e o ar que me conviria um: "Ah, Pierre Brasseur". Provavelmente, ela seria levada a reconsiderar este sonho e retomaria para si um valor enigmático. Isto nos mostra que o enigma, um saber reconhecido como tal em um signo, mas cujo sentido escapa, não funciona sem transferência, sem a suposição que uma verdade ainda está aí escondida, suposição que ela fará porque me suporá não tê-la feito sem razão de ser. E, certamente, ela encontrará ainda coisas a dizer, desse brasseur (braço da irmã), seja porque ela o evocou, sem o perseguir desde então, do braço ao nado que lhe evoca certamente sua mãe.

Dito de outra maneira, a transferência, a operacionalização do Outro como lugar da verdade e a suposição de um sentido suplementar a descobrir são estritamente homólogos.

Como, então, o sujeito pode saber que uma formação do inconsciente não tem mais nenhuma espécie de sentido, se a transferência está ainda no trabalho? Simplesmente, não pode. E a cronologia deve, então, ser situada, de preferência, em outro sentido: quando a suposição de saber, isto é, a espera do saber do Outro está exaurida o sujeito se sabe no inconsciente.

Daí a resposta a uma questão frequentemente colocada sobre a diferença entre as verdadeiras e as falsas saídas da transferência. Quanto às falsas, elas ocorrem simplesmente quando o analista, sejam quais forem as razões, não está habilitado pelo sujeito a responder como sujeito suposto saber, enquanto não está menos em função para o sujeito – que vai encontrar um outro que saiba ou não; quanto às verdadeiras, quando a própria função do sujeito suposto saber está apagada, exaurida, esvaziada.

Dito de outro modo, enquanto a análise não está terminada, enquanto a função do sujeito suposto saber é mobilizável, podemos dizer que uma formação do inconsciente tem sempre ainda um sentido. Não foi isso o que Freud quis dizer a propósito da interpretação de todo o sonho, que sua interpretação exaustiva equivaleria à própria análise considerada em sua totalidade? E, finalmente, essa observação não vale para toda formação do inconsciente, inclusive o lapso, análise completa de cada formação do inconsciente, não encontrando seu termo senão no saber não articulável do fim da suposição de saber?

Para concluir, portanto, um lembrete e uma questão.

O lembrete: a interpretação desmitificada não é apenas o recurso ao equívoco em oposição ao sentido, edipiano ou pulsional, é uma interpretação que visa ao mito do sujeito suposto saber.

A questão: se a atenção ao saber do inconsciente faz sair dele, isso quer dizer que não é possível falar sem colocar em jogo a verdade mentirosa, o mito; dito de outro modo, colocar em operação o Outro da verdade mentirosa e o objeto fantasioso quando se trata de falar a seus parceiros na vida. É diferente quando se presta atenção ao inconsciente, falando dele aos outros do que falando de psicanálise? Parece-me que esta questão está presente no texto de Lacan quando ele se interroga explicitamente sobre o motivo que leva alguém a ser analista, além do fato de ganhar dinheiro – e mais implicitamente sobre o que faz ele mesmo escrever sobre a psicanálise.

 

Tradução: Jairo Gerbase

Revisão: Andréa Hortélio Fernandes

 

Referências bibliográficas

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LACAN, J.  (1957). A instância da letra no inconsciente ou razão desde Freud. In: _______ Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 496-533.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Marc Strauss
E-mail: strauss.m@wanadoo.fr

 

 

Notas

* Psiquiatra. AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano- França. Ensinante do Collège Clinique de Paris.
1 Prelúdio para o XII Encontro da EFFCL/AFCL – Brasil que ocorreu em Salvador (BA), em novembro de 2011.
2 Publicada pela Jorge Zahar Editor, como O mito individual do neurótico ou Poesia e verdade na neurose, em 2008.