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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.27 Rio de Janeiro Oct. 2013

 

TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS

 

O passe de Picasso – o passe em 1988 e hoje

 

Picasso's pass – the pass in 1988 and today

 

 

Gláucia Nagem de Souza*

Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano Fórum SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo trata, a partir das questões levantadas pelos Lefort no texto "Les Demoiseles d'Avignon ou o passe de Picasso", da estrutura do Passe proposto por Lacan e praticado ainda hoje em nossa Escola. É possível um passe sem passador? O que se espera de um passe? Quais as implicações e os implicados nesse dispositivo? Estas foram as questões que nortearam a construção deste artigo em diálogo com alguns autores que também trataram do assunto.

Palavras-chave: Passe, Passador, Escola.


ABSTRACT

Based on the issues raised by the Leforts in "Les Demoiseles d'Avignon or Picasso's pass", the paper addresses the Pass' structure as proposed by Lacan, and still active in our School. Is it possible to have a pass without a passer? What to expect from a pass? What situations and people involved in this device? Those are the issues that guided the writing of this paper, which communicates with other authors that have been addressing the subject as well.

Keywords: Pass, Passer, School.


 

 

Em 8 de agosto de 1988, Rosine e Robert Lefort apresentaram na então Biblioteca Freudiana este texto: Les Demoiselles d'Avignon ou o passe de Picasso. O que eles trouxeram foi uma análise do quadro que dava nome à conferência, localizando nele um possível passe de Picasso. Localizaram no quadro o fantasma fundamental de Picasso, a ligação do sexo e da morte e o encontro com o objeto perdido. Os Lefort analisaram e relacionaram esses conceitos da psicanálise analogamente a elementos apontados por eles no quadro.

O ponto inicial que podemos questionar na análise dos Lefort não toca na seriedade teórica dos autores em suas articulações, mas mostra que uma analogia entre psicanálise e arte pode reduzir o que cada uma dessas áreas tem a dizer. Assim, os elementos recortados do quadro como elementos de um passe já se mostram de modo problemático. Os Lefort se utilizaram da analogia em sua leitura. Sustentamos, porém, neste trabalho que as duas áreas não são idênticas. A cada uma cabe um modo singular de atravessar a fantasia e ultrapassar o encontro com o real. Melhor seria pensarmos na relação da arte com a psicanálise como homóloga, ou seja, elas guardam semelhança em sua origem e estrutura, mas não podem ser reduzidas nas mesmas funções.

Dois pontos suscitaram questões para orientar este trabalho: são os elementos recortados pelos Lefort o que se procura no Passe? Seriam ainda elementos localizáveis em um quadro?

Josep Monseny (2008) afirma que "Lacan [...] espera ainda assim do Passe que possa alcançar um modo de garantia mais de acordo com a experiência analítica" (p. 15). Assim, logo de saída podemos perguntar se esses elementos que os Lefort "encontraram" nessa obra de Picasso são assim extensíveis fora da experiência da análise. É bem verdade que, em determinado momento, eles marcam uma fala de Picasso em que o artista diz: "Compreendi porque eu era pintor [...] as Demoiselles d'Avignon tiveram que acontecer aquele dia, mas não, em absoluto, por causa das formas, mas sim porque era minha primeira tela de exorcismo"; ao que os Lefort comentam: "Com esse termo que evoca o pretenso pensamento primitivo, não estaríamos aí no campo mesmo da análise, digam o que o que disserem disso? Dizemos, com efeito, em outros termos, o nosso: trata-se do encontro – que constitui justamente o passe – com o objeto perdido" (LEFORT e LEFORT, 1988, p. 14).

Compreender que era pintor poderia ser algo esperado em um Passe? Aparentemente, o que o desenvolvimento feito pelos Lefort poderia localizar é o Passe como pintor em Picasso, apesar de ele já ter, no tempo desse quadro, uma longa carreira percorrida. Mesmo assim, não é desde o início que um artista se considera artista; passa um tempo, um acúmulo de obras e de exposições para que um artista se considere como tal. Mas é preciso localizar que essa passagem de Picasso não pode ser correlata a um Passe de acordo com o que Lacan propõe.

O Passe proposto por Lacan não é um dispositivo para averiguar passagens na vida de um sujeito. Muitas passagens, viradas e mesmo mudanças ocorrem na vida das pessoas sem que necessariamente isso seja equivalente a uma análise. A arte é um meio que muito se aproxima da psicanálise, principalmente no que toca à questão do ofício. Quando tratei da formação do analista e do artista no texto publicado na revista Zero 1, disse que "a arte tenta dar provas do humano, fracasso após fracasso. Mas a psicanálise não é apenas um fazer algo em torno, fazer um giro, mas proporcionar um corte. O corte, este instrumento que, como numa banda de Möebius, não destrói, mas faz surgir outra superfície para além do humano, um sujeito" (SOUZA, 2010, p. 188). Tem uma volta a mais que não se pode esperar do artista, posto a relação entre arte e psicanálise não ser homóloga.

Ana Vicentini Azevedo diz: "Como podemos conjugar os campos da psicanálise e das artes visuais? [...] a aproximação entre a psicanálise e as artes não é um dado, ou uma relação de continuidade ou de afinidade tout court, mas é, antes de tudo, uma construção"(2006, p.14 ). O que os Lefort desenvolveram tem seu valor para apontar uma virada na posição de Picasso como artista, mas não como prova de que ali houvesse um Passe. O Passe diz respeito estritamente ao dispositivo instituído por Lacan para recolher esse passo do surgimento (ou talvez seja melhor o termo instauração) do discurso analítico como posição operatória. Um passo em que a posição do sujeito muda, como diz Soler (2011):

Quanto às condições do ato, elas interessam precisamente à análise do analisante, e a questão é saber se, para além do terapêutico, ela produziu o sujeito transformado que ele esperava no final. Este analisado, Lacan o definiu justamente por uma mudança na relação com o Sujeito Suposto Saber, quer dizer, mudança também na relação com o real, o saber real do inconsciente, este "saber sem sujeito" que trabalha sozinho (p. 6).

Assim, há a expectativa de averiguar essa mudança na relação do sujeito suposto saber, na relação com o real. E ainda averiguar que "a satisfação do fim vale como conclusão. Ao desligar o sujeito da verdade mentirosa, ela confirma a separação do fim, separação em relação ao Outro por meio do real do sintoma" (Ibid., p. 6).

Há, assim, uma espera no testemunho de escutar uma mudança de posição do sujeito no que diz respeito ao discurso do analista e sua relação com o real e a satisfação do final, como apontou Soler no último encontro de Escola. Nele, também disse que a satisfação é o que indica a intenção na medida de fazer a análise terminar, de um analista possível, aquele que pode acompanhar as turbulências do fim porque ele experimentou uma saída possível. Mas há ainda o entusiasmo em sua urgência de que a psicanálise continue sua marcha, indicando, assim, a extensão.1 O Passe está, dessa maneira, em um lugar privilegiado em nossa Escola na medida em que ele aponta não apenas para o testemunho de uma mudança de posição, mas também para os efeitos que isso exerce sobre a intenção e a extensão da Escola.

Voltemos ainda um pouco ao texto dos Lefort. Na última parte do texto, eles nomeiam Picasso passante sem passador, e articulam como foi solitário esse tempo de passe para Picasso, que nem mesmo seus pares suportaram o lugar de passadores de suas Demoiselles. E que "seu desejo é resolvido, que sustentou em sua operação o psicanalisando que ele foi durante dez meses" (LEFORT e LEFORT, op. cit., p. 18). Mais uma vez, podemos entender que o principal nesse texto é a tentativa de fazer uma analogia da experiência de Picasso na elaboração dessa obra com uma elaboração analítica. Pode ser que, para um pintor, isso só se resolva a partir da exposição posterior e do reconhecimento de seu trabalho. Mas para nós, analistas, em uma Escola que tem o Passe como dispositivo, é possível pensar um passe sem passador?

Não. Impossível. O passador, como discutimos amplamente nos últimos anos nos Espaços Escola de diversos fóruns, é uma das pedras angulares do Passe. Claro que com ele está o cartel do Passe, como o próprio Lacan afirmou: "É preciso um passador para escutar isso" (LACAN, 1974, apud ROJAS e FINGERMANN, 2011, p. 80). Sem ele não há como fazer o dispositivo operar. Mas como pensar esse personagem tão principal do dispositivo em relação à nossa Escola? Já se discutiu sobre a pertinência ou não do passador à Escola, e temos visto que se sustenta que isso não é uma prerrogativa. Mas é possível pensar passadores que não queiram saber nada da Escola? Qual a relação esperada dos passadores com a Escola?

Tendo em vista que os passadores são analisandos indicados por um AME quando estes estão em momento de passe, não é sem consequências o tipo de relação dos passadores com a Escola. Bastaria estar em um momento de passe na análise para ser designado passador para o dispositivo? Penso que a responsabilidade de designar um passador é maior do que perceber o momento de passe de um analisando. É preciso que esse analisando esteja também orientado pela Escola, mesmo que não faça parte dela. Mas espera-se que os passadores não estejam contra a Escola.

A posição desse personagem do dispositivo não é apenas de um recontador de história. Ele é, sim, um atravessado(r) de Hystoricização. No momento do passe, espera-se que os passadores não compareçam com suas histórias, mas que eles se deixem atravessar pelo que escutam e atravessem o cartel do passe com o seu dizer. E para serem atravessados e atravessarem é preciso disponibilidade d'Escola. Disponibilidade d'Escola não é ser um membro da Escola, mas estar d'escolado, tocado d'Escola. Assim, é inconcebível um Passe sem passador.

Monseny (op. cit, p. 15.) diz ainda da dupla efetividade do passe, qual seja, a de restituir ao analista sua finalidade, mais além de uma reprodução identificatória com os sábios, a de esburacar a estrutura da Escola para dar mais oportunidades à efetuação da estrutura psicanalítica no psicanalista. No passe se pode recolher um nome para além das identificações, um nome que se construiu em análise e que ressoa a posição do passante em seu ato. Temos visto o quanto o passe movimenta a Escola; não fosse o passe, não estaríamos nos reunindo para discutir sobre o que funda nossa Escola nos Encontros de Escola – como em dezembro último, quando colocamos em discussão cada parte do dispositivo, ou seja, não só os passadores, como também os AMEs em suas designações e os cartéis do passe. Essa é uma das funções mais impressionantes do Passe em uma Escola de Psicanálise: a de não deixar cair na plenitude da Suficiência e Beatitudes, menos ainda evitar que nos prendamos aos sapatinhos apertados.

A aposta de nossa Escola no Passe é, em si, um ato. E cada um de nós está desafiado, a partir desse ato, a viver a vida passando o passe, não só o nosso como sustentando o dispositivo, apesar de todas as questões que ele suscita. Afinal, "o testemunho do passe [...] é o testemunho do real. Não há Analista da Escola sem esse testemunho" (BOUSSEYROUX, 2011, pp. 29-30). E me arvoro a dizer que não há Escola sem o dispositivo do Passe.

Concluo dizendo que o Passe não é uma construção intelectual, mas um dispositivo para abrir a possibilidade de fazer avançar a teoria, e não apenas verificá-la, e ainda, que se trata de um dispositivo d'Escola.

 

Referências

AZEVEDO, A. V. de. Ruídos da imagem: questões de linguagem, palavra e visualidade. In: Sobre Arte e Psicanálise. São Paulo: Editora Escuta, 2006, p.14.         [ Links ]

BOUSSEYROUX, N. Satisfazer os casos de urgência. Wunsch 11: Boletim Internacional da EPFCL, pp. 29-30, outubro de2011. Disponível em: <www.champlacanien.net>. Acesso em 23 de julho de 2013.         [ Links ]

LEFORT, R. e LEFORT, R. Les Demoiselles d'Avignon ou o passe de Picasso. Capítulos de Psicanálise. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, n. 2, dezembro de 1988.         [ Links ]

MONSENY, J. "O Passe, ponto de referência do analisante", Wunsch 7: Boletim Internacional da EPFCL, pp. 14-18, janeiro de 2008. Disponível em: <www.champlacanien.net>. Acesso em 23 de julho de 2013.         [ Links ]

ROJAS, R. e FINGERMANN, D. Thesaurus sobre o passador. Wunsch 11: Boletim Internacional da EPFCL, pp. 72-81, outubro de 2011. Disponível em: <www. champlacanien.net>. Acesso em 23 de julho de 2013.         [ Links ]

SOLER, C. O Tempo Longo. Wunsch 11: Boletim Internacional da EPFCL, pp. 3-8, outubro de 2011. Disponível em: <www.champlacanien.net>. Acesso em 23 de julho de 2013.         [ Links ]

SOUZA, G. N. de. O que a Formação do Analista pode nos ensinar. Livro Zero: revista de psicanálise. Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo, n. 1, pp. 185-189, 2010.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: glaucia.nagen@uol.com.br

Recebido: 29/01/2013
Aprovado: 15/03/2013

 

 

* Glaucia Nagem de Souza, psicanalista, membro da IF-EPFCL Fórum SP; artista plástica, responsável pelo ateliê 702 e monitora no ateliê de gravura do Museu Lasar Segall.
1 Anotações da autora, feitas no Encontro de Escola realizado em Paris em dezembro de 2011.