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Stylus (Rio de Janeiro)

Print version ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.29 Rio de Janeiro Nov. 2014

 

ENSAIOS

 

"Joyce, o Sinthoma" – uma leitura

 

"Joyce, the Sinthoma" – a reading

 

 

Glaucia Nagem*

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano
Fórum São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora propõe uma reflexão sobre a contribuição da obra de James Joyce à construção teórico-clínica de Jacques Lacan a partir da análise de seu texto "Joyce, o Sinthoma". O foco deste texto está sobre a relação entre o modo criativo literário de Joyce e as articulações de Lacan ao abordar seu conceito de la-língua.

Palavras-chave: James Joyce, Literatura, La-língua.


ABSTRACT

The author proposes a reflection on the contribution of James Joyce's work to Jacques Lacan's theoretical and clinical construction departing from the analysis of his text entitled "Joyce, the Sinthoma". The main focus of the article is on the relationship between Joyce's literary creative mode and Lacan's enunciations while approaching his concept of la-langue.

Keywords: James Joyce, Literature, La-langue.


 

 

"Os escritores criativos são aliados muitos valiosos, cujo testemunho deve ser
levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas
entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar."

FREUD, 1906[1907]

 

Qual o uso que a psicanálise faz da arte? Esta pergunta permeia a leitura do texto Joyce, o Sinthoma. E nessa esteira podemos questionar: qual a importância de Joyce para Lacan no momento do Seminário 23?

Uma via simples e aparentemente fácil seria analisar sua obra como se fosse um paciente – colocá-la no divã e acreditar que ali está a verdade do sujeito-artista. Outra via aparentemente tão fácil quanto seria colocar o autor no divã e tentar analisar sua biografia como se esta fosse o paciente. O que fez Lacan nesse momento? Ele não analisou a biografia, tampouco a obra. O que interessou a Lacan foi o tratamento dado por Joyce a seu texto, a seu escrito. Há algo de ilegível no que está escrito; há lapso no que se lê. Vejamos o que Lacan (1972-73) antecipa em seu Seminário 20:

(...) vocês podem ler Joyce, por exemplo. Então vocês verão como isso começou a se produzir. Vocês verão que a linguagem se aperfeiçoa e sabe brincar, sabe brincar com a escrita. Joyce, eu admito que ele não seja legível (...)

Mas o que é Joyce, o que é? É exatamente o que eu lhes disse há pouco: é o significante que vem se infiltrar no significado. Joyce é um longo texto escrito – leiam Finnegans Wake – cujo sentido é proveniente disso: pelo fato de que os significantes se encaixam, se compõem, se vocês quiserem (...) penetram uns nos outros. É com isso que se produz algo que, como significado, pode parecer enigmático, mas é realmente o que há de mais próximo daquilo que nós, analistas, graças ao discurso analítico, sabemos ler. É o que há de mais próximo ao lapso. E é a título de lapso que isso significa alguma coisa, ou seja, que isso pode ser lido de uma infinidade de modos diferentes. Mas é justamente isso que isso se lê mal, ou se lê ao contrário, ou não se lê, mas essa dimensão do "se ler" não será suficiente para mostrar que estamos no registro do discurso analítico? E que aquilo de que se trata, no discurso analítico, é que é sempre ao que se enuncia como significante que vocês dão uma outra leitura, que não o que ele significa? (p. 104).

Joyce aponta para a articulação de uma questão que Lacan coloca desde o início de sua obra, qual seja, a dimensão do escrito. Escrito, escrita, letra – são pontos que costuram toda a obra de Lacan, e Joyce indica uma direção que o interessa. Se o sujeito é o que um significante representa para outro significante, vemos que Joyce catapulta esses significantes e põe em questão isso que está entre um e outro significante. Afinal, o que seria a possibilidade de um significante que não remetesse a outro significante, mas a um vazio? Que em um significante muitos outros se aglutinassem, se encaixassem, se penetrassem uns pelos outros?

"(...) river run, past Eve and Adam's, from swerve of shore to bend of bay, brings us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs" (JOYCE apud CAMPOS, 2001, p. 40). E a tradução de Haroldo de Campos (2001) nos auxilia a acompanhar em português: "(...) rio corrente, depois de Eva e Adão, do desvio da praia à dobra da baía, devolve-nos por um commodius vicus de recirculação de volta a Howth Castle e cercanias" (p. 41).

Leia em voz alta. Peça a alguém para ler e apenas escute a sonoridade do texto. Uma frase apenas poderia ser escutada por muito tempo. Finnegans Wake já nos provoca desde seu título: nome, fim e começo, acordar... Mas cada palavra usada se presta a esse exercício. Paremos na queda: "The fall w(bababadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohoorde nenthurnuk!)" (JOYCE apud CAMPOS, 2001, p. 40).

Alguns teóricos indicam que essa palavra imensa faz parte de uma pesquisa de Joyce dos muitos nomes e sonoridades de trovão. E como se trata de pura sonoridade, o tradutor manteve tal como escrito por Joyce. Sim, pesquisa – Joyce não retirava essas palavras de seu repertório apenas. Além de criá-las, ele as recolhia e as recebia dos amigos. Um árduo "work in progress". Mas não se trata de um trabalho apenas dele. Cada um que se dispõe a ler seu texto, nem que seja alguns trechos, é convocado a trabalhar, pensar, construir e reconstruir os sons em palavras, as palavras em sons.

Bernardina Pinheiros (2010) ressalta, na introdução de sua tradução de Ulisses, a importância da sonoridade na obra joyciana. Vemos com ela que, desde O retrato do artista quando jovem, essa sonoridade já estava em jogo:

Se, como Joyce dissera em Um retrato, que "havia diferentes tipos de dor para todos os diferentes tipos de som", também em Ulisses ele imprimirá ritmos próprios e distintos aos monólogos dos três personagens principais do romance, apropriados às suas respectivas personalidades (p. 12).

Vemos aqui um dos elementos essenciais: o som, emitido pela fala, musicalidade da voz. Joyce trabalha desde muito cedo essa questão em sua obra. Lembremos que não só ele, mas muitos outros autores se aventuraram por essas veredas. Lewis Carroll, em seu poema Jabberwocky1 – Jaguadarte escreve em sua primeira estrofe:

Era briluz. As lesmolisas touvas
Roudavam e relviam nos gramilvos
Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos
(CARROLL apud CAMPOS, 2001, p. 145)

Isso que vemos em autores como Joyce e Carroll é uma marca de estilo, de trabalho literário. E neste ponto precisamos atentar que não foi isso o que apontou para Lacan o que é da ordem da estrutura. Se seguirmos pelo caminho de que foi aí que Lacan se apoiou, concluiremos que cada um desses autores que se dedicaram a destruir a estrutura prevista da língua poderia ser enquadrado em determinada estrutura ou em alguma tipologia patológica.

Mas a voz não é apenas um som. Ela vem de um sujeito. E uma pergunta se impõe: quem fala? Esta questão se coloca para Lacan desde muito cedo. Já em seu Seminário 3 ele perguntava:

O que é a fala? (...) Falar é, antes de mais nada, falar a outros (...) O sujeito recebe sua mensagem do outro sob uma forma invertida (...) Desde que o sujeito fala, há o outro com A maiúsculo (...) Qual será essa parte, no sujeito, que fala? É o inconsciente (...) Esse inconsciente é algo que fala no sujeito. Além do sujeito, e mesmo quando o sujeito não o sabe, e diz sobre isso mais do que crê (LACAN, 1955-56/2007, pp. 47, 52).

Vemos aqui que, desde muito cedo, a fala é o que Lacan nos aponta como o mote para o inconsciente. O inconsciente estruturado como linguagem tem como um veículo o falar, ou seja, a articulação significante. Isso Lacan retira de Freud, e desde os anos 1950, insiste que os analistas atentem para esse fato. Em seus casos, Freud indica a importância de se escutar o que está sendo dito e como está sendo dito. Mesmo que o paciente fale outra língua, como no caso do Homem dos Lobos, Freud ressalta a importância de ouvir o dizer por trás do dito. Vejamos o que ele nos diz em O Ego e o Id: "A palavra é, pois, essencialmente o resto das palavras ouvidas"2 (1923/1981, p. 2.706). E ele conclui que é com esse material que o trabalho analítico opera.

João Adolfo Hansen (2009), no prefácio de O inominável, afirma:

É preciso regredir ao pressuposto do ato de fala e dizer o que se diz sem nunca dizer um sentido, mas estabelecendo orientações que fazem conexões ativas e provisórias. Por que falar? Uma causa plausível: porque é preciso eliminar radicalmente as significações e o sentido das palavras herdadas. Para que falar? Uma função real: para constituir a existência de algo fora da linguagem como o impensável inominável que impede, justamente, que a voz e o leitor delirem possuídos por ela (p. 25).

E é exatamente a palavra que Joyce vai triturar em sua obra, tirando dela o que se ouve mais do que aquilo que se lê, ou até mesmo tirando dela o que se lê em uma dimensão de puro equívoco. Por isso mesmo faço a proposta de que se ouça o texto joyciano. Ele se serve dos sons, as palavras soam com ressonâncias variadas que são mais importantes em seu texto do que o próprio sentido.

Em Lacan, um joyciano, Jacques Albert (2011) conta que Lacan "(...) foi a Londres mergulhar alguns dias na língua do Império, aquela em que Joyce tinha colocado tanto zelo amoroso a roer, de uma maneira que Lacan fez semblante de imitar em Joyce, o Sinthoma"3 (p. 44).

Assim, acompanhar o texto Joyce, o Sinthoma, é um percurso de costura entre o que a teoria nos apresenta e o que Joyce nos ensina; é ler Lacan joyciando sua construção teórica.

Essa leitura joyciana marca a transmissão de Lacan, que passa a utilizar de sua língua materna para transmitir em seus seminários. Lembremos do LOM, uma das criações de Lacan-joyciado. O que é isso? O homem, mas em sua máxima redução. Não o homem no simbólico, mas o que do homem toca o real. "LOM, LOM de base, LOM cahun corps et nan-na Kun (...) Il a (même son corps) du fait qu'il appartient en même temps à trois... appelons ça, ordres" (LACAN, 1975/2003, p. 565). Que em português foi traduzido como: "UOM, UOM de base, UOM ki temum corpo e só-só Teium (...) Ele tem (inclusive seu corpo) por pertencer ao mesmo tempo a três – chamemo-las de ordens".

Vemos aqui como Lacan desloca nesse texto o que era, a princípio, prioridade do Simbólico para o que é do Real em jogo na linguagem, como escreve Soler (2010): "'Corpo falante', isso desloca o campo da linguagem do Simbólico para o Real, pois o corpo do qual se trata não é o do estádio do espelho, o corpo da imagem, da forma. É o corpo substância que 'se goza' e se situa no espaço da vida" (p. 11).

Ao lermos esse texto, vemos que Lacan, a partir de seus avanços teóricos sobre a la-língua, escreve e transmite em seus seminários utilizando-se "propositalmente" de sua la-língua materna. Isso faz com que a leitura do texto siga a mesma lógica da leitura dos textos joycianos, qual seja, seguir o que o som indica mais do que uma simples significação.

O trecho de Joyce, o sinthoma citado, oferece um belo exemplo desse fato. Quando vemos a tradução, lemos: "UOM, UOM de base, UOM kitemum corpo e só-só Teium". Em francês, porém, lemos: "LOM, LOM de base, LOM cahun corps et nan-na Kun". A respeito desse pequeno trecho, Jacques Albert ainda pontua que por trás do dito há um dizer que o som nos indica. Cahun é o sobrenome de Claude Cahun, artista plástica que, assim como Joyce e o próprio Lacan, frequentava a livraria Shakespeare and Company. Comenta Albert (2011):

Ele tinha encontrado ali uma artista que tinha um gozo enigmático, rompendo tanto com seu nome – Lucie Schwob, que não era tão significativo assim quanto Cahun, onde "Caim" podia se ouvir – quanto com seu corpo colocado em jogo em muitos autorretratos, colagens, montagens, performances e outros cenários, e notadamente sua identidade sexual, cujo neutro era para ela palavra de ordem: Cahun era bem o caso. O caso do Um, já?4 (p. 46).

Essa sonoridade se perde na tradução, ficando apenas a questão do um. Mas conhecer o trabalho de Claude Cahun e um pouco de sua história dá uma volta a mais na questão do um e da diferença sexual.

Não há como esgotar o que oferece o texto Joyce, o Sinthoma como articulação teórica. Assim como o texto de Joyce, ele é para ser lido e relido, lido em voz alta, em português, em francês, pois se abre a cada leitura sem perder seu rigor.

 

Referências

ALBERT, Jacques. Lacan, um Joyceano. In: Nouvelle revue de psychanalyse – Lacan au miroir des sorcières – La cause freudienne. Ed. n. 79. França: Navarin Éditeur, 2011.

CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de. Panorama do Finnegans Wake, 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva, 2001.         [ Links ]

FREUD, S. (1906[1907]). El Delirio y los sueños em la "Gradiva" de W. Jensen. In: Obras Completas, Tomo II. Tradução direta do alemão por Luis Lopez-Ballesteros Y de Torres. Madri: Biblioteca Nueva, 1981.         [ Links ]

FREUD, S. (1923). El "Yo" y el "Ello". In: Obras Completas, Tomo III. Tradução direta do alemão por Luis Lopez-Ballesteros Y de Torres. Madri: Biblioteca Nueva, 1981.         [ Links ]

HANSEN, João Adolfo. Eu nos faltará. In: O inominável [Samuel Beckett, tradução de Ana Helena Souza]. São Paulo: Globo, 2009.         [ Links ]

LACAN, J. (1955-56). O Seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.         [ Links ]

LACAN, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: Encore (1972-1973). Tradução comparada e comentada em notas e anexos. Edição não comercial da Escola Letra Freudiana, s.d.         [ Links ]

LACAN, J. (1975). Joyce, o Sinthoma. In: Outros Escritos — Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp. 560-566.

PINHEIROS, Bernardina. Introdução a Ulisses [James Joyce, tradução de Bernardina Silveira Pinheiros]. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.         [ Links ]

SOLER, Colette. O corpo falante. In: Caderno de Stylus. Rio de Janeiro: Internacional dos Fóruns – Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil, 2010.

 

 

Endereço para correspondência
Glaucia Nagem
Rua Wanderley 700, Perdizes – São Paulo. CEP 05011-001
E-mail: glaucia.nagem@uol.com.br

Recebido: 04/02/2014
Aprovado: 03/07/2014

 

 

* Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL), Fórum São Paulo
1 Original: "Twasbrlling, and the slithytoves; Did gyre and gimble in the wabe; All mimsy were the borogoves; Ans the momeraths out grabe" (p. 44).
2 No original: "La palabra es, pues, esencialmente el resto mnémco de La palabra oída".
3 No original; "il alla se plonger jours à Londres dans la langue de l'Empire, celle que Joyce avait mis tant de zèle amouroux à ronger, d'une manière que Lacan fit mine d'imiter dans 'Joyce le Syntôme'".
4 No original: "Il avait rencontré là une artiste à la jouissance énigmatique, en rupture avec son nom – 'Lucie Schwob' n'était pas aussi parlant que Cahun, où 'Caïn' pouvait s'entendre – autant qu'avec son corps mis en scène, notamment de son identité sexuelle dont le neutre était pour elle le fin mot: Cahun était bien uncas. Le cas du Un, déjà?"

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