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Stylus (Rio de Janeiro)
Print version ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.29 Rio de Janeiro Nov. 2014
TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS
A verdade ou o testemunho
Truth or testimony
Cibele Barbará*
Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo
RESUMO
Este artigo tem como objetivo examinar, a partir do livro A Escrita ou a Vida, de Jorge Semprun, algumas relações entre os testemunhos literários e os testemunhos dados nos dispositivos psicanalíticos: a experiência da análise e a do passe. Também pretende percorrer algumas noções de verdade e testemunho a partir do conceito de semblante, apresentado especialmente por Lacan em O Seminário, Livro 18: De um discurso que não fosse semblante.
Palavras-chave: Testemunho, Verdade, Semblante.
ABSTRACT
This article is intended to examine, from the book Literature or Life by Jorge Semprun, relations between the literary testimony and the testimony given in psychoanalytic devices: the experience of analysis (psychoanalysis) and the procedure of the Pass. It is also an aim to look at some notions of truth and testimony from the concept of Semblant, especially presented by Lacan in The Seminar Book XVIII: On a Discourse that might not be a Semblance.
Keywords: Testimony, Truth, Semblant.
Após sua libertação do campo de concentração em 1945, no retorno a Paris, Jorge Semprun e um grupo de libertos discutem sobre o possível repatriamento e como irão contar algo da experiência daquilo que viveram. Contar as coisas como são? Contar a verdade? Como contar algo inimaginável? Quem vai querer escutar?
É conhecida a preocupação entre os sobreviventes, tanto do genocídio ocorrido na Segunda Guerra como em outras experiências de horror, de que não haverá quem queira escutá-los, ou pior, quem acreditará no que contarão. Para Semprun, haverá uma quantidade enorme de testemunhos, das mais variadas formas e que, provavelmente, existirão documentos e outros tipos de materiais que servirão para análises de historiadores e outros especialistas. Tudo poderá ter algum status de verdade, diz ele, muita coisa poderá ser transmitida, mas não o essencial da experiência.
Extraio do seu belíssimo livro A Escrita ou a Vida, testemunho da sua experiência no campo de concentração, dois trechos em que o autor fala dessa impossibilidade e a partir deles, teço algumas questões:
Onde tudo estará dito, anotado... Onde tudo será verdade... salvo que faltará a verdade essencial, a qual nenhuma reconstrução histórica jamais poderá alcançar, por mais perfeita e onicompreensiva que seja... [...] O outro tipo de compreensão, a verdade essencial da experiência não é transmissível... Ou melhor, só o é pela escrita literária... (SEMPRUN, 1995, p. 126).
Como contar uma verdade pouco crível, como suscitar a imaginação do inimaginável, a não ser elaborando, trabalhando a realidade, pondo-a em perspectiva? Com um pouco de artificio, portanto! (SEMPRUN, 1995, pp. 125-126).
Para começar pergunto o que é um testemunho? Quais as diferenças e aproximações possíveis entre testemunho literário e os testemunhos dos dispositivos analíticos?
Segundo Ginzburg (2013), o conceito de testemunho tem procedência jurídica e diz respeito ao lugar dado à voz que toma posição em um processo, em situação de impasse, de dúvida. Uma fala em tensão com a realidade em que a hegemonia de uma verdade singular está em conflito. É nesse sentido que os testemunhos estão associados ao trauma, já que se trata de recordar, repetir e elaborar o encontro com o horror, com o real.
Em um debate sobre Literatura de Testemunho no Fórum do Campo Lacaniano São Paulo, Prates Pacheco (2011) discute a aproximação entre a literatura de testemunho com o testemunho do passe e alguns inconvenientes dessa vizinhança. Em primeiro lugar, Prates Pacheco (Ibid.) fala que o testemunho do passe não é literatura e, de certa forma, eu acrescentaria nem a experiência de análise. Em segundo lugar, ela explica não ser possível comparar o posicionamento de quem foi submetido involuntariamente a uma prisão, tortura ou qualquer outro crime contra a humanidade com aquele que se submete a uma análise. Além disso, diz que o testemunho daqueles que foram vítimas é da ordem da necessidade, uma via política para dar voz àqueles que foram excluídos. Ao ganhar lugar e destinatário, esta voz que testemunha tem a ocasião de quebrar a totalidade da história construída pelos discursos hegemônicos. Como diz Ginzburg (2013): "O fato de que a voz testemunhal não se refere a uma generalidade universalizante, mas a uma posição específica, situa seu interesse político, em contrariedade ao autoritarismo". Este testemunho que sobrevive traz as marcas das vozes daqueles que não sobreviveram. Aqui, talvez caiba uma questão: apesar das diferenças existentes entre testemunho literário e o dispositivo de análise, oferecer um lugar para escuta a partir da ética psicanalítica não seria também um ato político?
Em um artigo publicado na revista A Peste, sobre a relação do corpo com a contemporaneidade, Ramos (2010) diz que podemos entender o corpo como um objeto que concentra história. Corpo que, em parte seria civilizado, conformado pelos discursos sociais e que, em outra parte, em uma relação dialética, estaria um corpo sintomático, que não é modelo e nem modelado pelos ideais dos discursos sociais. Por ser um corpo sintomático, que goza de modo não civilizado, seria uma espécie de corpo dissidente, como Ramos (2010, p. 325) explica:
Se o contemporâneo no corpo, a história no corpo pode ser apreendida pelos gozos estandardizados, por mais alienantes, criticáveis e estranhos que nos pareçam, o corpo sintomático, os gozos não estandardizados, não teriam um valor político na medida em que constituem uma dissidência?
Se há um corpo que faz resistência aos discursos contemporâneos de conformar aos dispositivos farmacológicos e educativos que sugestionam e calam, não é porque há algo a se falar, a testemunhar? Se há tentativas de fazer calar, de apagar e esquecer a distensão de espaço, tempo e escuta proporcionada pelo discurso do analista, isso não é um ato político? Como diz o autor: "[...] não haveria, na escuta do corpo sintomático, um ato político de abertura de um devir?" (RAMOS, 2010, p. 325).
De qualquer maneira, essa seria uma forma de pensar a proximidade da literatura de testemunho com o dispositivo analítico, mas, talvez, o ponto mais inconveniente dessa aproximação, como levanta Prates Pacheco (no prelo), seja a diferença radical da posição do sujeito que testemunha por meio da literatura, daquele que testemunha no dispositivo analítico e/ou do passe. É que nas experiências desumanizantes das torturas ou dos campos de concentração, como ela diz: "O sentido cai, porque antes cai o homem" (PRATES PACHECO, 2011). Aliás, é preciso lembrar que um dos grandes projetos criados por Hitler, nomeado de "a solução final", tinha como meta eliminar não só os judeus, mas acabar com todos os rastros humanos da sua existência (GAGNEBIN, 2009).
Para Agamben (2008/2013), o campo de concentração, de Auschwitz em especial, foi um lugar de um experimento ainda não imaginado. Daí muitos testemunhos de sobreviventes recorrentemente nomearem esta experiência de "inimaginável". Uma experiência devastadora em que o impossível é introduzido à força no real (AGAMBEN, 2008/2013). Ou, como explica Duba (2010, p. 41), trata-se de um acontecimento inédito que com efeitos de trauma, marca uma ruptura que explode os limites da representação: "Ou, em outras palavras, a literatura que se tornou possível a partir daí teve que incluir a representação de um real irredutível, o que se traduz por uma defasagem sempre presente na própria narrativa entre o acontecimento e o discurso".
Diferente disso, em uma análise, a interpretação inclui o sem sentido, o Real, para fazer cair a consistência da significação e não para fazer cair o homem. Aponta-se o sem sentido para fazer emergir justamente os traços, os rastros mais radicais da singularidade do sujeito humano, ao mesmo tempo em que evidencia que sua sujeição ao Outro é voluntária (PRATES PACHECO, 2011). Contudo, se existe alguma outra possibilidade de aproximação entre a psicanálise e a literatura de testemunho, talvez possamos dizer que é na importância dada por ambos à construção de um saber sobre a experiência. É só no discurso do analista que o saber está no lugar da verdade, e isso não pode passar despercebido, pois denota uma posição ética – a de que o saber construído pelo analisante tem valor de verdade, independente se corresponde ou não à realidade: "Se a palavra é tão livremente dada ao psicanalisante – é justamente assim que recebe essa liberdade –, é porque se reconhece que ele pode falar como um mestre, isto é, como um estouvado [...]" (LACAN 1969/1970-1992, p. 35). É o discurso do analista que institui, como diz Lacan (Ibid., p. 31), a histerização do discurso: "Em outras palavras, é a introdução estrutural, mediante condições artificiais, do discurso da histérica". Condição artificial que institui uma circulação entre os discursos, marcando o retorno do sujeito ao lugar de agente da sua própria história.
Da mesma forma, a literatura de testemunho parece produzir também certa condição para a elaboração sobre um saber em uma experiência, sem a pretensão de sobrescrever uma verdade por outra indiscutível. Não é porque os testemunhos relativizem uma verdade histórica totalizante que significa que eles se tornem equivalentes, pois a escrita de cada testemunho carrega rastros singulares. Portanto, o testemunho literário, assim como a experiência psicanalítica, viabiliza diferentes versões que incluem aquilo que outros discursos totalitários tentam excluir, ao mesmo tempo em que situam a verdade apenas como um semi-dizer: "ela só é acessível por um semi-dizer, que ela não pode ser inteiramente dita porque, para além da sua metade, não há nada a dizer." (Ibid., p. 49).
Neste sentido, como pontua Prates Pacheco (2011), a literatura de testemunho estaria mais do lado da experiência de análise do que exatamente a do passe: "Mais do lado do que Lacan chama de hystoire, historisterização, ou seja, uma experiência que institui um sujeito dividido no lugar de agente" (PRATES PACHECO, 2011).
A questão é que nem todos os testemunhos desafiam o impossível de dizer. Muitos tendem à descrição e insistem de alguma maneira em falar a verdade do que se passou. É justamente neste ponto, da sua relação com a verdade, que o testemunho de Semprun (1995), a meu ver, diferencia-se; ele, já de saída, contou com o impossível. Seu livro "A Escrita ou a Vida" é mais do que o testemunho da sua experiência no campo de concentração. Neste livro ele relata o que pôde fazer com sua experiência no campo de concentração: "Não é um livro sobre 'a coisa', mas sim sobre o que ele pode fazer com 'a coisa', para permanecer vivo" (PRATES PACHECO, 2011). Há algo de inédito, de criação, de invenção. E este inédito não tem relação com o "inimaginável" da experiência do campo de concentração, como citamos antes. E sim, com a invenção singular, que criou para se separar do lugar de objeto que ocupava para o Outro. Invenção para dar conta de fabricar vida após tanta morte, para sair do sonho/pesadelo que a realidade havia se tornado após sua libertação. "O sonho da morte, única realidade de uma vida que, ela mesma, não passa de um sonho. [...] Nada era verdade a não ser o campo de concentração, é isso" (SEMPRUN, 1995, p. 237).
Retomo sua fala: "Onde tudo estará dito, anotado... Onde tudo será verdade... salvo que faltará a verdade essencial, a qual nenhuma reconstrução histórica jamais poderá alcançar, por mais perfeita e onicompreensiva que seja" (Ibid., p. 126).
É disparatado que na discussão com os repatriados já soubesse de antemão que a experiência que anteriormente vivera não era passível de ser transmitida, a não ser a partir de certa perspectiva, usando um pouco de artificio. Em seu testemunho, ele diz não ter conseguido isso de imediato: "Mas meu plano afigurava-se irrealizável, pelo menos no imediato e na sua totalidade sistemática. A memória de Buchenwald era demasiado densa, demasiado implacável, para que eu conseguisse alcançar logo de saída uma forma literária tão depurada, tão abstrata" (Ibid., p. 158).
Ele fala em seu livro que precisou abrir mão por um bom tempo da ideia de escrever. Por um lado, precisava da escrita para fabricar vida após tanta morte, mas, por outro, deixar passar; deixar passar através da escrita naquele momento afigurava-se para ele um luto inacabado, uma passagem temporal radical demais, suicida. Daí o nome do livro A Escrita ou a Vida (Ibid., p. 162):
Nada mais possuo a não ser minha morte, minha experiência da morte, para contar minha vida, expressá-la, levá-la adiante. Tenho que fabricar vida com toda essa morte. E a melhor maneira de conseguir é a escrita. Ora, esta me leva a morte, aí me tranca, aí me asfixia. Estou nesse ponto: só posso viver assumindo essa morte pela escrita, mas a escrita me impede literalmente de viver.
Na condição em que descreve, escolhe a vida e abandona a escrita por mais de quinze anos. Algo que desperta a atenção é que durante esse tempo em que se afastou da escrita Semprun (1995) carregou a carta que havia ganhado, logo após a sua libertação da amiga Claude-Edmonde Magny1 sobre o poder de escrever:
Tinha de escolher entre a escrita e a vida, escolhi esta. Escolhi uma longa cura de afasia, de amnésia deliberada, para sobreviver. E era nesse trabalho de retorno à vida, de luto da escrita que havia me afastado de Claude-Edmonde Magny, é fácil compreender. Sua Carta sobre o poder de escrever, que me acompanhava por todo canto, desde 1947, mesmo nas minhas viagens clandestinas, era o único vínculo enigmático, frágil, com aquele que eu gostaria de ter sido, um escritor. Comigo mesmo, em resumo, com a parte de mim mais autêntica embora frustrada (SEMPRUN, 1995, pp. 191-192).
Nesta carta, a amiga lhe dizia que para escrever é preciso deixar-se morrer, pois a literatura só é possível ao término de uma ascese, de algum descolamento: um se desgarrar de si (SEMPRUN, 1995).
A escrita só pôde ser retomada, dezenove anos depois da sua libertação do campo, especificamente em 1964, com a publicação do livro A Grande Viagem, mas não sem o retorno de muita angústia:
Eu vivia na imortalidade desenvolta da assombração. Mais tarde, essa sensação se modificou, quando publiquei A grande viagem. A partir daí, a morte ainda estava no passado, mas este deixara de se afastar, de se dissipar. Muito pelo contrário, voltava a ser presente. Eu começava a remontar o curso da minha vida a essa fonte, esse nada originário (Ibid., p. 241).
Livro que ele escolhe escrever em sua segunda língua, o francês, por ser uma língua de exílio que lhe permitiu certo afastamento e possibilitou esta primeira publicação (SEMPRUN, 1995).
Importante notar que devido à censura de Franco a publicação deste livro foi proibida e sua versão em espanhol feita no México. Seu editor, com o intuito de cumprir o ritual de entrega ao autor deste livro premiado, mandou fabricar um exemplar único com capa e formato tal qual a versão mexicana, mas com as folhas internas brancas "virgens de qualquer impressão" (Ibid., p. 263). Ao folhear o livro, com suas páginas brancas, Semprun conta que foi tomado, naquele "instante único", pela lembrança do dia 1o de maio de 1945, quando uma borrasca de neve caía sobre as bandeiras vermelhas, no momento exato da sua libertação: "Naquele instante, naquele primeiro dia da vida de volta, a neve turbilhonante parecia me lembrar que seria, para sempre, a presença da morte" (Ibid., p. 264). Explica que foi como se a "neve de antigamente" tivesse caído de novo sobre sua vida e apagado os traços impressos do livro, segundo o qual havia escrito "numa sentada":
Era um sinal fácil de interpretar, uma lição fácil de tirar: eu ainda não havia conquistado nada. Esse livro, que levei quase vinte anos para poder escrever, desaparecia de novo, mal terminado. Teria de recomeçá-lo: tarefa interminável, decerto, essa de transcrição da experiência da morte (Ibid., p. 264).
A neve, a antiga neve que naquele instante recaía sobre as páginas brancas do livro, não cobria qualquer texto. Não cobria uma língua qualquer: "Por certo, ao anular o texto de meu romance na sua língua materna, a censura franquista limitou-se a redobrar um efeito do real. Pois não escrevi A grande viagem na minha língua materna" (Ibid., p. 265). Contudo, conta que nesta época vivia em Madri a maior parte do tempo e aí reencontrava constantemente a sua língua de infância, e junto dela a cumplicidade, a paixão, a desconfiança, base para a intimidade para o desenvolvimento da escrita. Ele sabia que a questão não tinha a ver com o simples reencontro com a língua espanhola após o tempo de exílio na França. Entende que em parte foi obrigado a fazer isso devido às circunstâncias políticas do exílio, porém acha que este não era o único motivo de sua escolha pela língua francesa:
Quantos espanhóis recusaram a língua do exílio? Conservaram seu sotaque, sua estrangeirice linguística, na esperança patética, insensata, de permanecerem eles mesmos? Quer dizer, outros? Limitaram deliberadamente o emprego correto do francês a fins instrumentais? Quanto a mim, eu havia escolhido o francês, língua de exílio, como uma outra língua materna, originária. Escolhi-me novas origens. Fiz do exílio uma pátria (Ibid., p. 266).
Conta que sempre pensava nisso, especialmente quando, vez ou outra, lia a carta da amiga Claude-Edmonde Magny. Para ele, quando "o poder de escrever" lhe fosse restituído, poderia escolher sua língua materna (SEMPRUN, 1995).
Talvez aqui seja preciso lembrar que o exílio não se resume à passagem de um país para outro: "Exilar-se é efetivamente um acontecimento"2 (BERTA, 2007). E apesar de tema recorrente na literatura e poesia, é uma experiência radical que transforma a relação do sujeito com o mundo (KOLTAI, 2005).
Assim, além da questão da língua materna e apesar de o livro A grande viagem ser literatura baseada na experiência do campo de concentração, havia um tempo, o tempo presente do campo, da memória, que não era possível acessar naquele momento:
O meu problema, que, todavia, não é técnico, é moral, é que não consigo, pela escrita, penetrar no presente do campo, contá-lo no presente... Como se houvesse uma proibição da figuração do presente... Assim, em todos os meus rascunhos a coisa começa antes, ou depois, ou em torno de, jamais começa no campo... E quando afinal chego lá, quando ali estou, a escrita fica bloqueada... Invade-me a angústia, torno a cair no vazio, abandono (SEMPRUN, 1995, p. 164).
Para ele não bastava uma estrutura romanesca em terceira pessoa ou mesmo um simples depoimento enumerador dos sofrimentos e horrores. Era preciso alcançar, como ele diz, um eu da narração, nutrido com sua experiência, mas que vai para além dela "capaz de nela inserir o imaginário, a ficção... Uma ficção que seria tão esclarecedora quanto a verdade, sem dúvida" (Ibid., p. 163). "[...] Pelo artificio da obra de arte, é claro!" (Ibid., p. 126). Assim, em 1995, cinquenta anos depois, no desafio, no fio do impossível de dizer, ele publica o livro A Escrita ou a Vida, onde testemunha sobre sua experiência no campo de concentração e mais, sobre o que pôde fazer com o horror do sem sentido.
De acordo com Fingermann (2005), alguns autores – incluo o nome de Semprun – podem ser chamados de Passadores do pior, porque seus textos transmitem o inominável cada qual a seu estilo e maneira singular:
[...] porque os textos que produzem, possibilitam encontros inéditos, e ao mesmo tempo obscuramente familiares; encontros ainda inauditos até o exato momento em que tropeçamos numa frase, numa entonação, num tropo, que muda nossa vida. [...] Muitos são os textos arrebatadores que des-cobrem nossa ausência, e nos fazem ceder à tentação de se atingir aí onde não estava: Duras, Beckett, Blanchot, Lispector, Levi. E outros também (FINGERMANN, 2005, p. 95).
Não se trata de extrair do texto interpretações ou fazer uma psicanálise aplicada ao texto literário. Para Fingermann (2005), esta questão entre os literários e psicanalistas está mais que esclarecida. Trata-se antes de tentar aprender a trilha, o caminho realizado pelos artistas:
Não é para nós uma questão apenas estética, mas também interesseira e ética. Interessa saber como orientar as análises para que no fim se reduza o texto da neurose à estrutura do conto – como diz Lacan. Interessa almejar que pela graça do desejo do analista que corta, talha e cala, a neurose ao final possa se deduzir e se reduzir ao matema e ao poema (FINGERMANN, 2005, p. 97).
É surpreendente que estes sujeitos, dada a mesma estrutura neurótica – "[...] a partir da mesma origem da falta do objeto e dos mesmos recursos pulsionais" (Ibid., p. 97) – consigam criar obras singulares, cujo efeito enlaça: "Produzindo seu mais íntimo/êxtimo, a letra fisga o outro no mais íntimo/êxtimo. A letra, litter, literal, litoral – que desenha 'a borda do furo no saber', a letra, se for letra, 'chega sempre a seu destino': afeta, ativa, atua, 'provoca em nós emoções das quais não nos acharíamos capazes'".
Gagnebin (2009, p. 55) no artigo Memória, História, Testemunho diz que algo só poderá ser transmitido se a realidade for trabalhada e, para que esse tipo de testemunho possa acontecer, é preciso certa narrativa não linear da história: "Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras". Para essa autora, é Walter Benjamin quem fala de outra forma de narrar e que parece muito com esta forma de testemunho que inclui a dimensão da perspectiva e do artificio: "uma narração nas ruínas da narrativa" (GAGNEBIN, 2009, p. 53). Uma espécie de "narrador sucateiro", catador de lixo, de restos, detritos, que apreende apanhar e incluir em seu testemunho; "aquilo que é deixado de lado como algo que não tem importância, nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer" (Ibid., 2009).
"Só há discurso de semblante", afirma Lacan (1971/2009, p. 136), sendo o semblante o lugar de agente dentro dos discursos que interpreta fundamentalmente a partir da função fálica. Interpretação que se apoia na verdade e que insiste na possibilidade de desvelá-la, de alcançá-la tal como o sujeito neurótico e sua relação com o falo. Mas, se toda interpretação vem do semblante, o que faz com que alguns testemunhos, obras de arte, poemas, transmitam algo para além da significação? O que este narrador sucateiro sabe fazer que alguns discursos não sabem? O que ele sabe interpretar da sua experiência, tal como Semprun soube desafiar e incluir na transmissão de seu testemunho? É exatamente essa pergunta que Lacan parece estar procurando responder.
O semblante se apoia na verdade, só pode haver semblante no regime da verdade. Mas há um testemunho, diz Lacan (Ibid., p. 107), que é feito "sem nenhum recurso ao conteúdo". Um semblante que conta com seu fracasso de representação, não para revelar a verdade, mas, sim, algo do sem sentido para fazer ressoar alguma coisa do significante. Depende, portanto, de ocupar um lugar onde o semblante falha. Nas palavras de Fingermann (2010, p. 343): "Instalar o objeto pequeno a no lugar do semblante [semblant], sentido em branco [sens blanc], é não produzi-lo nem reproduzi-lo como verdadeiro, é o pôr em causa, como hiância, furo, oco em que ressoa o falasser [parlêtre] aquém da tagarelice do sujeito". Uma virada, como diz Lacan (Ibid., p. 113), entre centro e ausência, entre saber e gozo, que só se consegue por um embalo diferente: "que só consegue quem se desliga de seja lá o que for que o traça (raye)".
Conforme destacam Caldas e Barros (2012), Lacan demonstra que todo discurso é artificio significante e que de fato o Real não se reduz à significação, porém é sensível aos efeitos de escrita, assim como na matemática que tem sua eficiência, mas é desprovida de sentido. O mesmo artifício, o mesmo material serve para construir algum sentido (semblante) e por não aderir totalmente a ele, deixa restar algo de enigmático, que pode indicar o real:
Este discurso, por ser agenciado pelo objeto, traz o estranhamento diante do real do escritor, indicando que, mesmo como agente, sua posição de sujeito está mais próxima possível da posição feminina na qual experimentou um gozo indizível. Não importa se se trata de um escritor homem ou mulher. Trata-se de escrever a partir de uma experiência na qual faltou medida ou controle sobre o gozo (p. 197).
Restos que, segundo as autoras, apontam para o que não tem nome, para aquilo que escapa a todos os ditos. Explicitando que transmitem um enigma, causam desejo. Mostram através do exercício sublimado de escrever o real que não se escreve, o que sabem fazer com o impossível (CALDAS; BARROS, 2012). Um saber fazer que rompe o semblante além das significações produzidas pelas leis do significante: "A letra parte do pior, da falta, para contorná-lo, produzindo esse contorno que tanto baliza quanto assinala. A letra está para além da angústia; ela faz sinthoma, uma solução que não ignora o pior: antes o trança e trespassa" (FINGERMANN, 2005, p. 98).
Para Fingermann (2005, p. 105): "Esta é a lição da literatura para a psicanálise: no fim, uma psicanálise, passando pelo pior, pode fazer o melhor para o ser humano: transformá-lo em passador, rumo ao pior sem perder o humor".
Um narrador que já se sabe sucateiro e que faz uso disso para deixar passar. Deixa passar algo do impossível, do inenarrável, como diz Semprun, por meio de um instante contingente, a partir de certa perspectiva, com um pouco de artificio. Sem isso os testemunhos permaneceriam em uma contínua tentativa de tradução sobre o ocorrido, que busca, através da linguagem, dizer o verdadeiro sobre o verdadeiro. Como diz Semprun (1995, p. 164): "Restarão os livros. Os romances, de preferência. Os relatos literários, ao menos, que ultrapassarão o simples testemunho, que darão para imaginar, ainda que não deem para ver". Quanto ao exemplar único do livro A grande viagem com suas páginas brancas: "(...) permaneceram brancas, virgens de toda escrita. Ainda disponíveis, portanto. Gosto do seu augúrio e do seu símbolo: que esse livro ainda esteja por ser escrito, que essa tarefa seja infinita, essa palavra, inesgotável" (Ibid., p. 267).
Referências
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Endereço para correspondência
Cibele Barbará
Rua Jureia, 896 – Chácara Inglesa – São Paulo – SP 04140-110 11 98937-6334
E-mail: cibelelbarbara@singularclinica.com.br
Recebido: 15/02/2014
Aprovado: 22/08/2014
* Psicóloga. Psicanalista. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo.
1 Esta carta, transformada em livro, foi publicada em 1947 sob o título "Carta sobre o poder de escrever", pela editora Seghers.
2 Para aprofundamento das questões a respeito do exílio, remeto às pesquisas sobre as relações do exílio e do luto, realizadas por Sandra Letícia Berta, especialmente na sua dissertação de mestrado "O exílio: vicissitudes do luto – reflexões sobre o exílio político dos argentinos" (1976-1983).