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Pensando familias
Print version ISSN 1679-494X
Pensando fam. vol.22 no.2 Porto Alegre July/Dec. 2018
ARTIGOS
Depressão materna e ajustamento conjugal de mães jovens e sua relação com a sintomatologia psicofuncional do bebê
Maternal depression and marital adjustment of young mothers and its relationship with baby’s psychofunctional symptoms
Laura Astrada de Souza Zini1 ; Giana Bitencourt Frizzo2, I; Daniela Centenaro Levandowski3, II, III
I Universidade Federal do Rio Grande do Sul
II Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre
III Conselho Nacional de Desevolvimento Científico e Tecnológico - CNPq
RESUMO
Este estudo investigou a depressão materna e a percepção de ajustamento conjugal de mães jovens, para compreender a sua repercussão sobre a sintomatologia psicofuncional do bebê. Trata-se de estudo de casos contrastantes, transversal, no qual foram entrevistadas duas mães (20 a 21 anos) porto-alegrenses, cujos bebês tinham 8 e 11 meses. Foram aplicados também o R-DAS, a EPDS e o Symptom Check List, para avaliar, respectivamente, ajustamento conjugal, depressão materna e sintomas psicofuncionais do bebê. Os dados foram integrados na análise dos casos. Os resultados apontam que a percepção de ajustamento conjugal ruim e a presença de depressão materna podem repercutir sobre a sintomatologia psicofuncional do bebê, por meio de um processo de spillover, isto é, transbordamento dos desajustes conjugais sobre a relação parental. Esses achados são relevantes para a prática clínica, na busca de intervenções psicológicas que promovam a saúde mental de casais e bebês.
Palavras-chave: Relacionamento conjugal, Ajustamento conjugal, Depressão materna, Parentalidade, Bebê, Sintomas psicofuncionais.
ABSTRACT
This study investigated maternal depression and perception of marital adjustment of young mothers, to understand its impact on the baby’s psychofunctional symptoms. It is a transversal contrasting cases study, in which two mothers (20 and 21years), whose babies were 8 and 11 months old, from Porto Alegre/RS, were interviewed. R-DAS, EPDS and Symptom Check List were also applied to evaluate, respectively, marital adjustment, maternal depression and baby’s psychofunctional symptoms. Data were integrated in the case analysis. The results suggest that perception of poor marital adjustment and presence of maternal depression may contribute to baby’s psychofunctional symptoms, through a spillover process, i.e., the overflow of marital maladjustment on parental relationship. These findings are relevant to clinical practice, in searching for psychological interventions that promote the mental health of couples and babies.
Keywords: Marital relationship, Marital adjustment, Maternal depression, Parenthood, Baby, Somatic symptoms.
Introdução
A partir de uma perspectiva familiar sistêmica, considera-se a família como um sistema composto por diversos subsistemas interdependentes, ou seja, que se influenciam mutuamente (Minuchin, Nichols, & Lee, 2009). A formação de um casal, embora seja a união de dois indivíduos, precisa ser compreendida de forma muito mais complexa, pois representa a sobreposição de dois subsistemas inteiros (McGoldrick & Shibusawa, 2016). Nesse momento, encontram-se diferentes valores e experiências trazidas por cada um dos membros do casal, que devem abrir mão de parte da sua individualidade em prol da relação que estão formando, para criar uma zona comum de interação, uma identidade conjugal (Féres-Carneiro, 1998; Mosmann, Wagner, & Féres-Carneiro, 2006; Silva, 2013). Compreende-se que o sistema familiar tem um ciclo de vida, que será permeado por mudanças previsíveis e imprevisíveis. Uma das mudanças previsíveis do ciclo de vida familiar é a transição para a parentalidade (Bradt, 1995), que inaugura o subsistema parental (Menezes & Lopes, 2007). A partir da gestação, o casal deverá aceitar um novo membro no sistema familiar e ajustar o seu funcionamento para permitir a criação de um espaço para o exercício dos papeis parentais (Bradt, 1995; Silva & Figueiredo, 2005).
Particularmente, a tendência da mãe é voltar-se para si durante a gestação, manifestando, já no pós-parto, um estado de sensibilidade aumentada, que lhe permite reconhecer e responder às necessidades do bebê (Sousa, Prado, & Piccinini, 2011). Winnicott (1945/1993) nomeou esse estado emocional como preocupação materna primária, caracterizando como normal esse período em que a preocupação da mãe com seu bebê tende a superar todas as demais. De acordo com o autor, a função do pai é dar apoio à mãe, para que ela possa se voltar a esse estado emocional sem maiores preocupações. De fato, é necessário que o casal compreenda que a preocupação e os cuidados com o bebê passarão a ser primordiais frente ao funcionamento familiar e conjugal nesse momento, como Silva (2013) refere em sua revisão da literatura.
Entretanto, essa situação nem sempre é bem entendida e enfrentada pelos casais. De acordo com estudo de Cowan et al. (1985), o conflito conjugal tende a aumentar da gravidez até os 18 meses após o nascimento do bebê. As exigências que fazem parte da parentalidade, já mencionadas, levam a um aumento da insatisfação com o casamento, o que acarreta o aumento de conflitos entre os cônjuges (Prati & Koller, 2011). Tais conflitos podem impactar o ajustamento conjugal, que se caracteriza pelo consenso, satisfação e coesão, de acordo com a Escala de Ajustamento Diádico Revisada(R-DAS; Busby, Christensen, Crane, & Larson, 1995).
Assim, esses desafios nem sempre são facilmente superados pelos membros do casal, acarretando separação ou mesmo adoecimento psíquico dos próprios cônjuges (Hernandez & Hutz, 2009). Os conflitos conjugais tendem a afetar negativamente todo o sistema familiar, incluindo o subsistema parental, apresentando-se associados a problemas de comportamento dos filhos (Boas, Dessen, & Melchiori, 2010; Hameister, Grzybowski, & Wagner, 2015). Portanto, os conflitos familiares perpassam os padrões de relacionamento estabelecidos pelos membros da família e o que acontece nos diferentes contextos que eles frequentam. Denomina-se esse processo de Spillover,transbordamento (Erel & Burmann, 1995, Hameister, 2015), pois se entende que as características negativas e positivas das relações conjugais e seus efeitos transbordam em todo sistema familiar, principalmente no subsistema parental. Este subsistema se forma a partir da inserção de um filho ao sistema familiar (particularmente, ao subsistema conjugal), acarretando mudanças em função do desempenho de novas tarefas pelos membros do casal, como proteção, sustento e educação da criança e de do subsistema conjugal (Juras & Costa, 2017; Wagner, Tronco, & Armani, 2015). Este subsistema está fortemente relacionado com a coparentalidade, entendida como o revezamento de papéis de cuidado da prole, relacionados entre si, e que envolvem uma responsabilidade conjunta do casal em prol do seu bem-estar (Grzybowski & Wagner, 2010). Portanto, quando o relacionamento conjugal se mostra harmonioso e os membros do casal conseguem organizar um ambiente acolhedor e respeitoso para si mesmos e para a criança, a saúde conjugal e o desenvolvimento saudável dos filhos ficam favorecidos (Hernandez & Hutz, 2009). Nessas situações, o casal pode estar exercendo de forma satisfatória a coparentalidade.
Ao se considerar a transição para a parentalidade, é possível pensar que casais jovens possam estar mais propensos a situações conflitivas. No presente estudo, entende-se como casais jovens aqueles formados por indivíduos de 15 a 24 anos, considerando-se os parâmetros da Organização das Nações Unidas (ONU, s/d). Conforme revisão efetuada por Levandowski (2005), esses casais muitas vezes podem coabitar ou decidir casar em função da gestação, precisam reorganizar ou mesmo abandonar os antigos projetos de vida e, muitas vezes, falham em alcançar uma autonomia econômica e emocional em relação às famílias de origem. Assim, tendem a viver sob estresse econômico, até mesmo pelo menor treinamento educacional e ocupacional dos cônjuges e pela falta de recursos. Somado a isso, podem apresentar imaturidade para organizar a vida em família e para lidar com as alterações da vida sexual e financeira, em função da exclusividade exigida pelo bebê, que impacta no estado de enamoramento e paixão anterior. Assim, embora se entenda que a vivência simultânea da parentalidade e da conjugalidade será específica e particular para cada jovem (Levandowski, Piccinini, & Lopes, 2008), espera-se que o enfrentamento das mudanças implicadas na transição para a parentalidade, somado à necessidade de lidar com questões desenvolvimentais típicas da juventude, possa dificultar a reorganização psíquica, especialmente da jovem mãe, e propiciar o surgimento de problemas emocionais, como a depressão materna (Budzyn, 2015).
Essa condição clínica tem sido bastante destacada na literatura, devido aos seus efeitos sobre a família como um todo. Diversos estudos revisados por Sotto-Mayor e Piccinini (2005) relatam uma associação entre presença de problemas conjugais e depressão materna. No caso, a ausência de estabilidade no relacionamento conjugal pode se constituir em fator de risco para o desenvolvimento de depressão materna (Cummings, Keller, & Davies, 2005; Frizzo, Prado, Linares, & Piccinini, 2010). Quando as mulheres não podem confiar no parceiro como uma “base segura”, tendem a não o procurar como apoio (Sotto-Mayor & Piccinini, 2005). De fato, nos casais em que a esposa apresenta depressão materna, encontra-se menor apoio entre os cônjuges (Frizzo, Brys, Lopes, & Piccinini, 2010). Por outro lado, também se pode pensar que a presença de depressão materna impacte a qualidade da relação conjugal, impedindo que o casal se apoie mutuamente (Falceto, Seibel, Springer, Nunes, & Fernandes, 2016; Frizzo, Prado, et al., 2010; Sotto-Mayor & Piccinini, 2005). No estudo longitudinal de Hollist et al. (2016), satisfação conjugal e depressão da mãe aos 4 meses de vida do bebê estiveram relacionados com depressão materna aos 2 anos de vida da criança, confirmando uma importante associação entre esses dois fatores.
O estado depressivo da mãe pode repercutir negativamente também na interação com o bebê e impactar o seu desenvolvimento afetivo, social e cognitivo (Frizzo, Prado, et al., 2010). Tal quadro clínico pode ser derivado de expectativas irreais das mulheres nesse momento de vida, incluindo um padrão idealizado de mãe como sendo uma “cuidadora competente”, sempre controlada, amorosa incondicionalmente, capaz ainda de dar conta das tarefas domésticas, de um emprego de período integral e de também atender às demandas do parceiro (Sotto-Mayor & Piccinini, 2005). Dessa forma, quando a mulher percebe que não consegue dar conta de todas essas exigências do modo como imaginava, pode vir a desenvolver sentimentos de tristeza, depressão, raiva, ansiedade e culpa.
Alguns autores sugerem que a depressão materna pode surgir em algum momento do primeiro ano de vida do bebê e não necessariamente nas primeiras semanas após o parto (Frizzo, Prado, et al., 2010; Klaus, Kennell, & Klaus, 2000). Contudo, quando ocorre nas quatro semanas após o parto, esta é classificada pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – Quinta Edição (American Psychological Association, 2014), como episódio de depressão maior com início no pós-parto. Sendo assim, quando os sintomas de depressão ocorrem após esse período ou se estendem ao longo do primeiro ano de vida do bebê, ela é por vezes denominada apenas de depressão materna (Frizzo, Prado, Linares, & Piccinini, 2010). Ainda que a depressão nesse momento possa não ser mais prevalente do que em mulheres que não sejam mães, é sempre importante atentar para a sua etiologia, pois, além de fatores biológicos, diversos estressores psicossociais podem estar presentes, e o quadro como um todo pode incluir dificuldade em cuidar do bebê (Brockington, Butterworth, & Glangeaud-Freudenthal, 2016).
Do ponto de vista do bebê, a experiência de uma interação não harmoniosa com a mãe faz com que ele não se sinta seguro e reaja a essa desarmonia lançando mão de defesas para se proteger daquilo que percebe como estando além do limite e do tempo que é capaz de suportar. Essas falhas, que se constituem em intrusões ambientais na visão winnicottiana, podem ocorrer tanto por ações extemporâneas como pela ausência daquilo que deveria ser oferecido ao bebê, causando uma ruptura na continuidade da sua existência, pela não satisfação de suas necessidades (Amiralian, 2003). A inconformidade do bebê frente às falhas ambientais poderá ser expressa por meio do corpo e das somatizações, já que ele não se encontra equipado com muitos recursos psíquicos para dar conta dessas angústias. Tais sinalizações corporais são entendidas como sintomas psicofuncionais. Estes podem ser conceituados como manifestações de ordem somática e do comportamento da criança, que atingem suas principais funções orgânicas, embora não tenham uma causa orgânica específica ou identificada. Tais manifestações estão associadas, portanto, a um determinismo psicológico e sinalizam, na maior parte das vezes, dificuldades na interação pais/bebê (Kreisler, 1978; Pinto, 2004; Scalco, 2013). Os sintomas mais frequentes na fase inicial da vida da criança são distúrbios de sono, alimentares, digestivos, gástricos, respiratórios e de comportamento, além de problemas de pele (Cramer et al., 1990; Pinto, 2004).
Considerando que a base da subjetividade da criança é constituída a partir dos seus primeiros vínculos, e que os sintomas psicofuncionais são indicadores de dificuldade na interação com os pais, deve-se avaliar não apenas os sintomas, mas também a relação da díade mãe-bebê, da tríade e dos próprios cônjuges, a fim de melhor compreender essa sintomatologia da criança. Assim, esse estudo teve como objetivo avaliar a presença de depressão materna e a percepção sobre o ajustamento conjugal de mães jovens, a fim de compreender a repercussão desses fenômenos sobre a sintomatologia funcional do bebê, pois se ennde que tais aspectos podem predispor ou dificultar o aparecimento desse tipo de sintoma.
Método
Participantes
Duas mães jovens, com idades entre 20 e 21 anos, cujos bebês tinham 8 e 11 meses de vida. Elas apresentavam nível socioeconômico médio-baixo e residiam na região metropolitana de Porto Alegre. Ambas relataram não estar trabalhando no momento da coleta de dados, ao contrário dos seus companheiros, com quem coabitavam. A escolaridade das jovens variou de Ensino Médio incompleto a Superior incompleto, enquanto a escolaridade dos companheiros, de Ensino Médio incompleto a completo.
As jovens foram selecionadas entre as integrantes do projeto Avaliação de Sintomas Psicofuncionais em Bebês de Mães Jovens (SINBEBÊ JOVEM; Levandowski, Frizzo, Marin, & Donelli, 2014), do qual esse estudo deriva. Para integrar a amostra do SINBEBÊ JOVEM, foram delimitados os seguintes critérios: idade materna de 18 a 24 anos e dos bebês de 6 a 18 meses. O nível de escolaridade e socioeconômico poderiam ser variados. Por outro lado, foram excluídos bebês que apresentaram alguma malformação e outros quadros clínicos, assim como mães com psicopatologia severa (esquizofrenia, retardo mental, transtorno de personalidade borderline, anti-social, regressão psicótica, risco de suicídio e uso e abuso de substância), conforme avaliado pela Mini International Neuropsychiatric Interview (MINI PLUS; Amorim, 2000; Sheehan et al., 1998).
Para o presente estudo, foram selecionadas as mães que haviam respondido todos os instrumentos e entrevistas previstos no SINBEBÊ JOVEM e apresentavam um relacionamento estável, com coabitação, com o pai do bebê. Os casos foram escolhidos de forma contrastante quanto à presença/ausência de sintomas psicofuncionais do bebê, presença/ausência de depressão materna e percepção satisfatória/insatisfatória de ajustamento conjugal.
Delineamento, Procedimentos e Instrumentos
Trata-se de um estudo de casos contrastantes, de caráter qualitativo e transversal. Esse delineamento foi escolhido por ampliar a possibilidade de uma replicação teórica (Yin, 2015). Em cada caso, avaliou-se a presença de depressão materna e de sintomas psicofuncionais no bebê, bem como a percepção de ajustamento conjugal, buscando-se analisar semelhanças e diferenças entre os casos em relação a esses aspectos.
Após a aprovação do projeto no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (Parecer 1.029.184.), foi realizada uma visita para apresentar a proposta para a gerência de duas Unidades Básicas de Saúde (UBS) da Gerência de Saúde Norte-Eixo Baltazar, da Zona Norte de Porto Alegre. Após a autorização dos locais, foi realizada uma pré-seleção das jovens, por meio de uma lista de contatos das próprias UBS. A partir dessa pré-seleção, foi feito um contato telefônico, com o intuito de explicar para as jovens os objetivos do estudo e realizar um convite para participação. Diante de seu aceite, era agendada uma entrevista na UBS ou na residência, conforme preferência, com duração aproximada de 2h. Caso a mãe se apresentasse cansada ou não tivesse disponibilidade para esse período de tempo, era oferecido um segundo horário, para a continuidade da coleta de dados.
No primeiro encontro, fazia-se a leitura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TLCE), que a jovem assinava em duas vias, caso concordasse. Após, as mães preencheram o Questionário de Dados Sociodemográficos da Família (Núcleo de Infância e Família, 2008a), que investigava dados de caracterização da jovem e de sua família, e uma Ficha de Dados Clínicos (Donelli, 2011; NUDIF, 2008b), composta por questões referentes à gestação e ao histórico de doenças na família, com o objetivo de detalhar essa caracterização. Na sequência, aplicava-se a MINI PLUS, elaborada por Sheehan et al. (1998) e traduzida por Amorim (2000), como medida de exclusão das participantes com patologias graves (regressão psicótica, bipolaridade, transtorno antissocial, abuso de substâncias). Trata-se de uma entrevista diagnóstica padronizada, que explora 23 categorias diagnósticas do DSM-IV (kappa= 0,86; sensibilidade >0,64; especificidade >0,71; VPN >0,84; VPP >0,60; eficiência >0,76), e pode ser aplicada entre 15 e 30 minutos. Ambas as mães não apresentaram psicopatologia grave e, portanto, foram incluídas no estudo.
Para avaliar a presença de sintomas psicofuncionais no bebê utilizou-se Sympton Check-List, elaborado por Robert-Tissot et al. (1989). Trata-se de uma entrevista que avalia quantitativa e qualitativamente os transtornos psicofuncionais de crianças de seis semanas a 30 meses. É composta por 84 perguntas (fechadas, abertas, de múltipla escolha e abertas em lista), que exploram os seguintes aspectos: sono, alimentação, digestão, respiração, pele, alergias, comportamento, medos, separação, utilização de cuidados médicos e mudanças na vida da criança. As perguntas fechadas avaliam presença, frequência, intensidade e duração das manifestações sintomáticas da criança durante as últimas quatro semanas. As demais perguntas fornecem informações sobre a história dos transtornos, as circunstâncias da ocorrência, as explicações propostas pelo ambiente, as reações e as tentativas de corrigi-los.
Em seguida, aplicava-se a Escala de Depressão Pós-Parto de Edimburgo (EPDS; Cox, Holden, & Sagovsky, 1987; Santos, 1995), para investigar a presença de sintomas depressivos (alpha de Cronbach=0,87). Essa escala é composta por dez itens, que recebem pontuação de zero a três, de acordo com a intensidade do sintoma. Pode atingir pontuação total máxima de 30, sendo considerada a presença de sintomas depressivos nas participantes que pontuarem igual ou superior a 10 (com base no estudo de Figueira, Correa, Malloy-Diniz, & Romano-Silva, 2009). Na sequência, aplicou-se a Escala Beck II de Depressão (BDI-II), adaptada no Brasil por Gorenstein, Wang, Argimon e Werlang (2011). Trata-se de uma escala de autorrelato de 21 itens, que avalia a intensidade de sintomas depressivos. Cada item é avaliado segundo uma escala de quatro pontos (0 a 3), sendo a pontuação total máxima de 63 pontos. A pontuação de Alterações no Padrão de Sono (item 16) e Alterações de Apetite (item 18) equivale a cada um desses itens, contendo sete opções, com valores ordenados como 0, 1a, 1b, 2a, 2b, 3a e 3b, para diferenciar o aumento e a diminuição do comportamento ou da motivação. Os pontos de corte são: 0-13 pontos = intensidade mínima; 14-19 pontos = intensidade leve; 20-28 pontos = moderada, e 29-63 pontos = grave.
Para a avaliação do relacionamento conjugal, foi empregada a Escala de Ajustamento Diádico Revisada(R-DAS; Busby, Christensen, Crane, & Larson, 1995),derivada da Escala de Ajustamento Diádico (Spanier, 1976). Nessa versão, das quatro dimensões originais, restaram três subescalas: consenso, satisfação e coesão. A R-DAS pode ser utilizada considerando a pontuação total ou das subescalas separadamente. É composta por 14 ítens, pontuados em escala likert de 6 pontos (0 a 5), sendo 0 o escore mínimo e 69 o máximo. As propriedades psicométricas, no que se refere à consistência interna da escala, foram: alpha de Cronbach de 0,81 (consenso diádico), 0,85 (satisfação diádica), 0,80 (coesão diádica) e 0,90 (escore total), além de 0,95 de fidedignidade teste-reteste. A R-DAS foi traduzida e validada para o português brasileiro por Hollist et al. (2012), mantendo propriedades psicométricas semelhantes à versão original em inglês. O ponto de corte em português ainda não foi estabelecido, mas, na versão original, um escore igual ou maior que 48 pontos indica não haver problemas de ajustamento conjugal, enquanto que abaixo de 47 indica problemas.
Por fim, realizou-se a Entrevista sobre a Experiência da Maternidade (adaptada de NUDIF, 2008c), buscando-se investigar diversos aspectos da experiência da maternidade, tais como eventos de vida estressores, relação da mãe com os próprios genitores, história da gestação, parto e primeiro ano de vida do bebê, expectativas sobre o bebê e a maternidade, etc. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas literalmente para análise.
Análise dos dados
Os dados derivados da MINI-Plus, EPDS, BDI-II e R-DAS foram analisados quantitativamente, conforme orientação de seus autores/manuais. O Symptom Check List foi analisado quantitativamente, para detectar a presença e o tipo de sintoma psicofuncional dos bebês. As variáveis sociodemográficas e clínicas e os escores dos demais instrumentos serviram para caracterizar as participantes, seu relacionamento conjugal e os bebês, e foram integrados aos dados das entrevistas na construção do relato de cada caso. As entrevistas foram analisadas de modo qualitativo, com base no foco do estudo. Nessa etapa da análise, utilizou-se a estratégia de proposições teóricas (Yin, 2010), na qual priorizaram-se os achados que foram relevantes para o estudo, excluindo-se aqueles que não estivessem dentro do foco. Após, foi empregada a estratégia de síntese de casos cruzados, com o objetivo de analisar as semelhanças e diferenças entre os casos contrastantes (Yin, 2010).
Considerações éticas
Todas as recomendações éticas para a realização de pesquisas com seres humanos, de acordo com a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde, foram observadas. As jovens foram convidadas a participar após uma explicação detalhada e clara dos objetivos e procedimentos. A participação no estudo foi voluntária e poderia ser interrompida a qualquer momento pelas mães, sem prejuízo no atendimento recebido na instituição de saúde para elas e/ou os bebês. Considera-se, ainda, que os instrumentos não representaram ameaça à saúde física ou psicológica das participantes e tampouco possuíam potencial ansiogênico significativo para causar algum tipo de prejuízo. Em caso de identificação de sofrimento psíquico intenso ou indícios de psicopatologia grave materna e/ou de risco para o bebê, a equipe de pesquisa realizou os encaminhamentos necessários. Sendo assim, considera-se que o estudo ofereceu risco mínimo.
Resultados e discussão
O relato dos casos foi elaborado conforme a seguinte estrutura: dados sociodemográficos e clínicos da família e do bebê; dados qualitativos e quantitativos, organizados nos seguintes eixos temáticos: depressão materna, aspectos conjugais, experiência da maternidade e sintomatologia psicofuncional do bebê. Na sequência, consta uma discussão individual de cada caso e, logo após, uma discussão geral, comparando-se ambos.
Caso 1 – Mãe Bruna e bebê Camila
Bruna, 23 anos, mãe de Luana e de Camila (esta última de 13 meses), residia com Rafael, 30 anos, pai de Camila, há seis anos. Bruna, antes da gestação de Camila, exercia atividade laboral, deixando de exercer sua profissão por não ter se adaptado. A família apresentava nível sócio-econômico baixo. Os avós maternos e paternos de Camila não apresentavam nenhum diagnóstico de transtorno mental, embora o avô paterno fosse usuário de álcool.
Bruna já havia sido mãe na adolescência em sua primeira gestação. A gestação de Camila não foi planejada, pois Bruna estava trabalhando e cursando a faculdade. Comparando a última gestação com a primeira, Bruna disse ter se sentido mais cansada, irritada e chorosa. No entanto, não houve nenhuma complicação física durante a gestação e o parto. Aos sete meses de gravidez, ela foi demitida do emprego, tendo se sentido triste e ressentida por não ter uma renda própria: “Durante toda a minha vida, eu sempre trabalhei. Ter parado, me deixou bem mal [...] e a situação ficou pior depois do nascimento da minha filha [...] sempre falam que o segundo filho é mais fácil, mas não é, o corpo já não é o mesmo... Acaba sendo pior, mais cansativo, mais difícil”.
Primeiramente, Bruna não havia percebido que estava diferente de seu jeito habitual: “A Luana estava indo na psicóloga e ela um dia me chamou para conversarmos [...] nem imaginava [estar deprimida]. Ela comentou que percebia que eu estava um pouco distante, sabe, deprimida”. A partir dessa conversa, Bruna compareceu a duas sessões e, na sequência, buscou atendimento psiquiátrico. No entanto, parou a medicação quando começou a frequentar uma igreja. No momento da coleta de dados, tanto na EPDS (13 pontos) como no BDI-II (17 pontos; intensidade leve), ficou evidente a presença de sintomas depressivos.
Em relação ao casal, Bruna acreditava que a gestação e o nascimento de Camila serviram para uma maior união, relatando que Rafael se tornou mais responsável, passando a pensar na filha em primeiro lugar. Durante a gestação, ele acompanhava, conforme sua disponibilidade, os exames pré-natais. Apesar de Bruna relatar que o nascimento da filha uniu o casal, ela obteve uma classificação geral ruim do ajustamento conjugal (R-DAS: 45 pontos), com índice ruim para a categoria Concordância/Divergência (18 pontos) e para a categoria Comunicação (14 pontos), e índice bom para a categoria Atividades Juntos (13 pontos). A partir do seu relato, constatou-se que o casal não possuía muito tempo disponível para estar junto: “Como eu não estou trabalhando, meu marido pega vários trabalhos, para conseguir nos sustentar. Eu me sinto muito sozinha, mal nos vemos, a gente não conversa”. Percebeu-se que Bruna sentia-se triste e gostaria que algumas coisas fossem diferentes. Em contrapartida, considerava o companheiro um bom pai, auxiliando-a, quando presente, em relação aos cuidados da bebê: “Quando ele pode, nos finais de semana que ele pega uma folga, ele faz tudo: troca fralda, dá comida, põe para dormir, dá banho”.
Quanto à experiência da maternidade, a jovem relatou que se sentiu bem como mãe nos primeiros dias após o parto, embora também estivesse preocupada: “Se eu ia conseguir ter forças para dar tudo o que ela precisava (...) Se a Camila estava se alimentando bem, se dormia direitinho, se estava respirando”. Além disso, Bruna sentia-se ansiosa em alguns momentos, principalmente em relação ao choro da filha: “Fico bem incomodada (...) Tento fazer ela parar de chorar”. Apesar de ter se sentido preocupada e ansiosa nos primeiros meses, considerava-se uma boa mãe: “Sou uma mãe coruja, bem amorosa”, pois brincava com Camila todos os dias: “As brincadeiras são mais de contato, ficar tocando na mão, fazendo cosquinha e coisas do tipo, mais físicas”. Contudo, ela considerava a parte mais difícil da experiência de ser mãe o fato de não ter seu próprio trabalho: “Não poder sustentar elas financeiramente, ter o meu trabalho”. O que mais a preocupava no momento da entrevista era o futuro de sua filha: “o que vou poder proporcionar”.
Em relação ao bebê, Camila apresentou sintomas psicofuncionais nas áreas de respiração e alergia. Quanto às alergias, foram mencionadas pela mãe: alergia alimentar (corante de gelatina) e cutânea (dermatite atópica). Durante o mês anterior à coleta de dados, a jovem referiu ter de recorrer aos serviços médicos seis vezes em decorrência das alergias apresentadas pela bebê. Em relação aos sintomas de respiração, Camila apresentava bronquiolite e crises de tosse, com dificuldades para respirar, que começaram a partir dos 10 meses de vida. Também foi referida a presença de rinite alérgica.
Analisando a depressão materna e o ajustamento conjugal e sua repercussão na sintomatologia funcional do bebê
Evidenciou-se, na entrevista de Bruna, alguns sintomas e comportamentos que sinalizam um quadro de depressão materna, cujos sintomas foram rastreados pela EPDS. Destacaram-se a intensa preocupação em relação ao futuro de Camila, por não estar trabalhando, além de ansiedade diante do choro da bebê. Também evidenciou-se tristeza pela ausência do companheiro e sentimento de solidão. Conforme visto na literatura, quanto maior o apoio do companheiro, menor a prevalência de depressão materna, indicando o efeito protetor desse suporte para a saúde da mãe após o nascimento do bebê (Frizzo, Prado, et al., 2010). Na situação de Bruna, o fato de ela não se sentir apoiada o bastante pelo companheiro pode explicar em parte a presença desses sintomas.
De fato, um ajustamento conjugal ruim pode ser gerador de diversos conflitos (Mosmann, C. P., & Falcke, D., 2011), e estar associado à presença de depressão materna. Assim, o relacionamento conjugal tem um grande impacto nos sintomas depressivos da mãe (Hollist et al., 2016), embora a depressão materna também possa ser um fator que influencia os desajustes conjugais (Frizzo, Prado, et al., 2010). Mulheres deprimidas possuem maior dificuldade em explicar a causa e a consequência de suas brigas, assim como sintomas de irritabilidade e desvalia podem prejudicar a comunicação do casal e ser geradores de maiores problemas conjugais (Frizzo, Silva, Piccinini, & Lopes, 2011). O delineamento do presente estudo não permite elucidar qual a direção dessa relação no caso de Bruna.
A depressão materna, por sua vez, repercute sobre a experiência da maternidade. O estado depressivo da mãe pode levar a dificuldades no estabelecimento das primeiras interações com o bebê e, consequentemente, impactar no seu desenvolvimento (Frizzo, Brys, et al., 2010). Pode-se perceber essa dificuldade na relação de Bruna com Camila, pois, quando a bebê começa a chorar, a mãe sente-se muito ansiosa. Pelo fato de Bruna já ter tido uma filha, seria de se esperar uma maior habituação ao choro da criança, o que não acontece. Desse modo, entende-se que a presença de sintomas depressivos e a percepção de um ajustamento conjugal ruim podem estar relacionadas aos sintomas psicofuncionais que Camila apresenta, pois esses são compreendidos como a expressão de uma inconformidade do bebê, por meio de somatizações, em relação às angústias vivenciadas em virtude de falhas ambientais (Scalco, 2013).
Assim, no caso analisado, entende-se que aspectos da conjugalidade estão interferindo na relação parental e repercutindo sobre a bebê, que apresenta sintomatologia funcional, caracterizando o efeito de Spillover (Erel & Burmann, 1995, Hameister, 2015). Esse transbordamento fica facilitado diante da vulnerabilidade da jovem mãe, que apresenta sintomas depressivos. A literatura aponta que casais que estão muito envolvidos em seus conflitos conjugais tendem a não ser tão responsivos às necessidades de seus filhos. De outro modo, as crianças também percebem quando o conflito está diretamente relacionado a elas, pois são sensíveis aos conteúdos emocionais do conflito (Hameister et al., 2015; Mosmann et al., 2011).
Caso 2 – Mãe Elise e bebê Gabriela
Elise, 21 anos, mãe de Gabriela (11 meses), residia com Artur, 26 anos, pai da bebê, há três anos. Artur exercia atividade laboral e Elise, antes da gestação, também. Ela deixou de exercer sua profissão em função do nascimento da filha. A família apresentava nível sócio-econômico baixo. Os avós maternos e o avô paterno não apresentavam nenhum transtorno mental. Já a avó paterna tinha diagnóstico de dupla personalidade e depressão, conforme o relato de Elise.
A gestação de Gabriela não foi planejada. O casal não usava nenhum método contraceptivo e, a cada mês, Elise fazia teste de gravidez, por ter um ciclo menstrual irregular. Portanto, quando souberam da notícia, Elise e Artur ficaram incialmente assustados, mas logo já se sentiram felizes. Segundo Elise, não houve nenhuma complicação durante a gestação e o parto. Entretanto, durante a gestação, ela sentiu muito enjoo, até os últimos meses, e teve um grande aumento de peso. Em termos emocionais, sentiu-se bastante chorosa, mas não irritada. Entretanto, não foi constatada a presença de sintomas depressivos por nenhum dos instrumentos aplicados na coleta de dados (EPDS = 03 pontos; BDI-II: 04 pontos, intensidade mínima). Também não foram identificados, no relato de Elise, episódios dessa natureza na gestação ou após o parto.
Em relação ao casal, Elise acreditava que haviam ficado mais unidos. Segundo ela, Artur a apoiava bastante durante a gestação, pois não estava trabalhando, tendo conseguido acompanhar todos os exames pré-natais. Ela se mostrou bastante satisfeita com o relacionamento conjugal em função do apoio recebido do companheiro para o cuidado da bebê desde a gestação: “Ele sempre fez parte de tudo. Estava sempre junto comigo. Como ele não estava trabalhando nessa época, voltou a trabalhar em março, a Gabriela nasceu em maio, então teve uma grande parte comigo. Foi bem bom, achei bem importante a presença dele como pai”. Além de Elise notar uma mudança positiva no jeito de ser de Artur durante a gravidez, ele também se mostrava bastante cuidadoso com ela, como por exemplo, em relação à alimentação: “Foi mais responsável, assim, antes ele era […] nunca foi desligado, mas ele era […] nós éramos, né, jovens. Ele era mais responsável, estava mais me cobrando alimentação saudável, até para ele mesmo, se ele comesse alguma coisa, eu também ia querer comer”. Além disso, ela percebeu que, com a chegada de Gabriela, a relação do casal se fortaleceu: “A gente ficou mais unido”.
A jovem avaliou o companheiro positivamente como pai, pois a auxiliava em todos os aspectos no cuidado com a filha: “Dá banho, cuida, faz nanar, às vezes eu estou muito cansada. Quero deitar, quero dormir, ele que dá o mamazinho para ela e faz ela dormir. Ele faz de tudo. Só não troca fralda direito porque, meu Deus do céu, bota ao contrário, faz de tudo. Eu não sei se é, acho que a melhor troca de fralda é a minha […] então eu já nem peço para ele fazer. Mas ele faz de tudo. Às vezes que vou, sei lá, no salão, algum lugar, ele passa o dia inteiro com ela”. Confirmando o seu relato, tanto o escore global como os escores das subescalas do R-DAS foram bons (concordância/divergência: 25 pontos; comunicação: 17 pontos; atividades juntos: 16 pontos), demonstrando uma boa percepção de ajustamento conjugal.
Elise referiu sentir-se muito bem por ser mãe: “Acho que eu fui feita para ser mãe [ ] Eu não sei explicar, mas eu tenho um objetivo, eu consigo fazer ela feliz, ela consegue me fazer feliz. Tem uma vida boa do jeito que eu… sei lá, tem um marido bom, que me trata bem, que… se eu estou triste, ele faz de tudo para me fazer feliz […] eu sou feliz, a vida que eu tenho é boa”. Ver sua filha sorrindo era o que ela mais sentia que a satisfazia nesse papel: “Ai, ver a felicidade dela. É que ela é tão queridinha que, tudo, sabe? Ver ela feliz, sei lá. Quando ela acorda, como eu disse, ela acorda sempre feliz, aquilo ali me traz uma alegria no dia, sabe? Me dá uma, uma força de vontade de ser feliz, sabe, de só levar alegria para ela”. Já o que mais a incomodava era não ter sua individualidade, principalmente quando não se sentia bem: “Aí. Não sei, como eu vou dizer, ter ela sempre dependente de mim também não é mil maravilhas, né, bom; lógico, é minha filha, eu amo ela e tudo, mas, às vezes, eu sinto falta de mim, sabe? [...] sei lá, às vezes eu estou mal-humorada, quero ficar quieta e não posso, né, também não vou tratar mal minha filha, né. Então… meu momento, sozinha, que eu não tenho mais”. A bebê Gabriela não apresentou nenhum sintoma psicofuncional na avaliação pelo Symptom Check List.
Analisando a depressão materna e o ajustamento conjugal e sua repercussão na sintomatologia funcional do bebê
Elise apresentou sintomas depressivos de intensidade mínima. Mesmo que, em alguns dias, ela não se sinta tão bem, relatou preferir estar sozinha nesses momentos, para que isso não fosse percebido e nem interferisse na sua relação com a filha, o que pode ser entendido como uma forma de proteção da criança. Afora esses momentos, ela aparentou ter uma interação afetuosa e sensível com a menina. Conforme a literatura, esses sentimentos são adequados em relação à maternidade, pois o nascimento de um filho é um fator que modifica tanto a vida do casal quanto da própria mulher, o que contribui para gerar estresse, como por exemplo, devido ao cansaço e ao fato de ter a vida regrada pelas necessidades do bebê (Rapoport & Piccinini, 2006). Contudo, a resposta da mulher a essas mudanças é influenciada por fatores individuais e ambientais, como a disponibilidade de apoio social, principalmente do pai do bebê, que promove uma maternagem responsiva e o desenvolvimento de um apego seguro da díade mãe/bebê (Rapoport & Piccinini, 2006), como se verifica nesse caso.
Em relação aos aspectos conjugais, Elise demonstrou uma percepção positiva do ajustamento conjugal, a partir de um sentimento de felicidade com o relacionamento e de confiança no companheiro como fonte de apoio. Dessa forma, verifica-se, nesse caso, o fenômeno de Spillover atuando de forma positiva no relacionamento parental (Erel & Burmann, 1995; Hameister et al., 2015). Essa situação repercute positivamente no ajustamento psicológico dos filhos, o que se pode comprovar a partir da ausência de sintomas psicofuncionais da bebê. Conforme a literatura, casais com um bom nível de satisfação conjugal e que atuam de forma apoiadora, envolvida e sensível, conjuntamente, tendem a ter filhos com maior repertório positivo para o enfrentamento das dificuldades (Garcia, Marín, & Currea, 2006).
Percebe-se que a ausência de sintomas depressivos de Elise também pode reverberar numa relação mais positiva com sua filha e seu companheiro, o que, por sua vez, contribui para que Elise não apresente depressão. De acordo com a literatura, a satisfação conjugal aumenta quando há proximidade, estratégias adequadas de resolução de problemas, coesão e boa habilidade de comunicação entre os cônjuges (Frizzo, Brys, Lopes, & Piccinini, 2010).
A partir do que é visto na literatura, as estratégias para um bom ajustamento conjugal incluem a resolução positiva de conflitos, com grande impacto no desenvolvimento da criança (Hameister et al., 2015). Sendo assim, respostas negativas nas crianças ou problemas de ajustamento ficam reduzidos, bem como são maximizados os aspectos positivos do funcionamento psicológico (McCoy, Cummings, & Davies, 2009; Mosmann, 2007), quando esse panorama positivo se apresenta na relação conjugal.
Discussão geral e considerações finais
Este estudo objetivou avaliar a presença de depressão materna e a percepção sobre o ajustamento conjugal de mães jovens, a fim de compreender a repercussão desses fenômenos sobre a sintomatologia funcional do bebê. A análise dos casos permitiu identificar semelhanças e diferenças entre eles. Embora discrepantes em relação aos aspectos avaliados, corroboraram a premissa de que os desajustes conjugais e a depressão materna interferem no relacionamento parental e, por conseguinte, no desenvolvimento infantil (Frizzo, Brys, et al., 2010; Mosmann et al., 2011;) e que o seu oposto, isto é, relacionamentos conjugais saudáveis e ausência de depressão materna, impactam positivamente o desenvolvimento infantil (Frizzo, Brys, et al., 2010; Hameister et al., 2015; McCoy et al., 2009; Mosmann, 2007). Assim, nesses dois casos, pode-se verificar o fenômeno de Spillover de que trata a literatura, demonstrando-se o impacto da qualidade do relacionamento conjugal na parentalidade (Erel & Burmann, 1995; Hameister et al., 2015).
Quanto às semelhanças, nos dois casos as jovens relataram melhoras no relacionamento conjugal após o nascimento de seus filhos, o que concorda com outros estudos revisados por Menezes e Lopes (2007), que indicam melhora na satisfação conjugal em casais jovens após a transição para a parentalidade, em função do desenvolvimento pessoal e da elaboração de estratégias para a resolução de dificuldades conjugais. Esses achados foram identificados mesmo na presença de uma percepção de ajustamento conjugal ruim, o que demonstra a necessidade de maior investigação sobre o tema, para esclarecer o que embasa as percepções de mães jovens sobre a relação conjugal na transição para a parentalidade.
Entretanto, o estudo apresenta como limitações o fato de não se ter contado com a percepção paterna referente à relação conjugal nessa transição, bem como dados sobre o estado emocional paterno e sua repercussão no desenvolvimento infantil. Tais questões poderiam ser contempladas em estudos futuros. Outro aspecto que chamou a atenção, embora não tenha sido o foco do presente estudo, foi a interrupção dos planos de carreira e de estudo das jovens mães e seu impacto para elas. Essas se mostraram como questões fundamentais a serem avaliadas com maior profundidade, pois podem contribuir para o surgimento de sintomas depressivos. Ainda, futuras investigações poderiam empregar outros instrumentos de coleta de dados, como escalas de satisfação conjugal ou mesmo medidas de desenvolvimento e de saúde do bebê, para complementar a compreensão dos resultados aqui obtidos. Poderiam também adotar um caráter longitudinal, que permitiria verificar em que medida as manifestações somáticas do bebê se intensificariam ou atenuariam diante de mudanças no ajustamento conjugal e no estado emocional materno.
Por fim, cabe ressaltar que os achados aqui encontrados não são passíveis de generalização, já que se trata de um estudo de casos contrastantes selecionados de uma amostra maior, recrutada de forma não aleatória, e de caráter transversal. Contudo, pensa-se que trazem contribuições relevantes para a clínica pais-bebê e a clínica de casais e famílias, por destacar temas fundamentais para guiar uma intervenção psicológica com esse público. Ainda, os achados se mostram aplicáveis a outras áreas da saúde, como a Pediatria, ao permitir um olhar ampliado sobre aspectos que promovem ou comprometem a saúde e o desenvolvimento do bebê.
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Endereço para correspondência
Daniela Centenaro Levandowski
E-mail: dclevandowski@gmail.com
Giana Bitencourt Frizzo
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Laura Astrada de Souza Zini
E-mail: laura.aszini@gmail.com
Enviado em: 17/08/2018
1ª revisão em: 14/04/2018
Aceito em: 10/07/2018
1 Psicóloga graduada pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Bolsista PIBIC/CNPq e PIC/UFCSPA no período 2013-2015.
2 Doutora em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3 Doutora em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS), com Pós-Doutorado em Psicologia (PUCRS). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Saúde e em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Bolsista Produtividade do CNPq.