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Arquivos Brasileiros de Psicologia

On-line version ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.69 no.1 Rio de Janeiro  2017

 

RESENHA

 

Lacerda, P. M. (2015). Meninos de Altamira: violência, "luta" política e administração pública. Rio de Janeiro: Garamond, 2015. 325 p.

 

 

Luiz Felipe Castelo Branco da Silva

Psicólogo. Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Brasília. Distrito Federal. Brasil

Endereço para correspondência

 

 

A obra Meninos de Altamira: violência, "luta" política e administração pública é produto da tese de doutorado de Paula Mendes Lacerda, defendida em 2012 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A tese, após a defesa, foi agraciada com o prêmio Gilberto Velho de Teses da UFRJ. A autora visa tratar do "caso dos meninos emasculados"i de Altamira, Pará. Busca entender o processo pelo qual acontecimentos de violência ocorridos no citado município, entre os anos de 1989 e 1993, foram construídos como uma "causa" política na qual se envolveram familiares das vítimas, religiosos, defensores dos direitos humanos, assim como, em um caso polêmico, tanto do ponto de vista policial quanto jurídico. Embora a autora tenha considerado distintas fontes de informaçãoii (entrevistas, análise documental, material audiovisual etc.), buscou privilegiar as ações e as percepções dos familiares das vítimas.

O primeiro capítulo visou apresentar os "casos" que, para a polícia, para a Justiça e para o movimento socialiii, compõem o "caso dos meninos emasculados". Na primeira parte, considerando-se que sem a mobilização social o processo judicial não teria sido aberto e a existência do "caso" não teria sido alcançada, a autora busca focar no processo de formação do movimento social na região da Transamazônicaiv e, em especial, a formação do Comitê, a partir das vozes dos sujeitos nele engajados.

O segundo capítulo, além de discutir os antecedentes da formação do Comitê, visou debater as estratégias e as linhas de ações utilizadas. Ali há certa ênfase naquilo que poderia ser chamado de "ativistas acidentais", que ingressam na "luta" como única alternativa restante. Eles não escolheram, mas foram recrutados pelas circunstâncias. No terceiro capítulo, a autora aprofunda nas dimensões em torno do recurso, da estética e das experiências que dão forma às manifestações (tais como vigílias, caminhadas e passeatas). A autora não se restringe a analisar somente os atos em si, mas também as falas proferidas em ocasiões públicas.

Na quarta parte da tese, a autora centraliza nos tensionamentos existentes entre as famílias das vítimas e os policiais (este segmento percebido por elas como "Estado"). Resgata as primeiras relações entre familiares - ainda abalados pelo acontecimento - e os policiais (sobretudo aqueles da polícia civil).

No quinto e último capítulo, a ênfase recai sobre a odisseia empreendida pelos familiares durante quase 20 anos para que a justiça fosse aplicada. Deste modo, a "luta por justiça" passa a se constituir enquanto engajamento desses familiares, como respostas mínimas do "Estado" para reparar o irreparável.

Um dos aspectos de singulares da obra é a construção da narrativa, que acaba por provocar sensações de indignação diante do descaso das autoridades policiais. Conduz-nos a refletir o quanto a administração pública e o sistema de justiça é constituído para a defesa do interesse daqueles que possuem o monopólio do poder e, portanto, a vocalização e o agenciamento nesses contextos. Por outro lado, percebe-se que as famílias, nas tentativas de vocalizar suas demandas, em diversos episódios, quando não foram sequestradas em seus discursos (no sentido foucaultiano), claramente tiveram estes eclipsados pela imposição de outros saberes. Chama, inclusive, especial atenção quando uma das falas de uma vítima sobrevivente é desconsiderada e modificada em seu significado. Se, inicialmente, esta vítima/testemunha estava ali para contribuir com as investigações, a partir do momento que ela descreve feições de um dos algozes com características que poderiam levantar certa suspeita sobre um dos investigadores, instantaneamente o discurso do jovem passa a ser constituindo como o de alguém que quer atrapalhar as investigações (p. 85). Será que havia um dos investigadores envolvidos nos crimes? Se sim, não seria equivocado supor os possíveis agenciamentos deste no processo de (re)construção de verdades.

Na sequência, a apresentação da obra oferece meios de experienciar o citado descaso. A apresentação do canto entoado em um encontro sobre Direitos Humanos preambula, em certa medida, o que viria na sequência das reflexões: "[...] Mas com os irmãos unidos, o mundo muda de sentido. E nossos direitos vem" (p. 99). Deste modo, percebe-se que clamores individualizados, insulares, não parecem ser capazes de alcançar ecos, contudo, quando este clamor se configura a partir de um coletivo minimamente organizado, as possibilidades de ecoar demandas, revela-se diferente. Esta dimensão do estar em uma "luta" parece também apontar como formas de, em alguma medida, (re)organizar "dificuldades(s)", "espinhos" e "sofrimento" individualizados, em um primeiro momento, por meio de um "inimigo eleito e comum", do qual se busca alcançar o mínimo de expiação do "mal causado". Em diversos momentos, o "Estado" parece servir a esta personificação.

Percebe-se também parecer existir certa processualidade quando a autora destaca que o "estar em luta" não significa ser vencedor de uma causa [...] significa empreender uma batalha contra os "mais fortes", muitas vezes já sendo uma batalha ingrata porque desigual. O que faz a "luta" valer a pena é a percepção de que "algo está sendo feito" (p. 103). Isto parece também soar como uma metáfora, que parece também contar algo sobre itinerários internos, nos quais a dimensão da singularidade, da subjetividade passa por processos de transformação/(re)significação do sofrimento experienciado diante dos "casos". O atuar "fora", na "rua", também é atuar "dentro", nos bastidores da intimidade. Revela-se enquanto tarefa contínua, difícil, mas satisfatória quando se percebe que algo está sendo feito, está em transformação, em movimento.

Não obstante, o "estar em luta", no contexto externo, não deixa de representar espaço de matriz identitária, na qual as pessoas não logram visibilidade socialv, mas também passam a ter oportunidade de novas possibilidades de pertencimento coletivo e, por que não afirmar, inclusive de ser e estar no mundo enquanto singularidade.

Nestes termos, penso que o trabalho da autora é importante contribuição no sentido de dar luz à invisibilidade imposta por um sistema estatal que ainda funciona para privilegiar determinados grupos econômicos e sociais. Nos "casos" de Altamira, a escolha da autora em enaltecer a perspectiva das famílias vitimadas constitui-se enquanto importante ato político e não apenas metodológico em termos acadêmicos. Eis que esta opção se revela enquanto outra dimensão de singular envergadura no trabalho da autora. Se por um lado a "dor" dessas famílias é considerada, a obra também mostra a potencialidade dessas famílias amazonenses em organizarem-se e lograr maior espaço na arena de negociações tanto do sistema de justiça como em outros contextos políticos. Em tempos em que a democracia se revela tão massacrada, tão deteriorada em virtude de agentes da corrupção, a obra parece nos convidar a refletir sobre o "bom combate" e as possibilidades de uma coletividade civil organizada e atuante para exigir aquilo que é o mais justo e mais ético.

 

 

Endereço para correspondência:
Luiz Felipe Castelo Branco da Silva
pesquisa.gerpis@gmail.com

Submetida em: 23/10/2017
Aceita em: 29/10/2017

 

 

i Refere-se ao conjunto de crimes ocorridos contra meninos que foram violentados sexualmente, assassinados e encontrados com os órgãos genitais mutilados em Altamira e no estado do Maranhão (especificamente nos municípios de São José do Ribamar e Paço do Lumiar, região metropolitana de São Luís). Segundo a autora, o uso desta nomenclatura, em grande medida, é "resultado da ação política empreendida pelos familiares das vítimas e seus apoiadores, religiosos ligados à Prelazia do Xingu e ativistas do Movimento de Mulheres Trabalhadoras de Altamira do Campo e da Cidade" (Lacerda, 2015, p. 3).
ii Foram nove famílias entrevistadas. Além disso, ocorreram nove entrevistas envolvendo religiosos, ativistas, polícia, Justiça e outras 10 com delegados, advogados, promotores, juiz, desembargador, assistente social, superintendente da Divisão de Polícia do Interior, padre, professor universitário e advogada da organização não governamental (ONG) Justiça Global. O trabalho ocorreu entre 2008 e 2012.
iii Para a autora, movimento social e ativismo são compreendidos enquanto o conjunto de instituições, além do coletivo formado por familiares das vítimas (Lacerda, 2015, p. 44).
iv Este contexto ajuda a lançar luz a um modo de posicionamento coletivo que parece introduzir nas pessoas uma postura de mobilização como meio de atuar nos espaços públicos.
v Em especial para que os "casos" não caíssem no esquecimento.

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