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Revista da Abordagem Gestáltica

Print version ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.24 no.2 Goiânia May/Aug. 2018

https://doi.org/10.18065/RAG.2018v24n2.6 

ARTIGOS: RELATOS DE PESQUISA

 

Por um núcleo de atendimento clínico a pessoas em risco de suicídio

 

Toward a clinical care center for people at risk of suicide

 

Hacia a un centro de atención clínica a personas con riesgo de suicidio

 

 

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Doutora em Psicologia, Professora Adjunta da UERJ, atuando no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e no Curso de graduação em psicologia. Coordena na UERJ o Laboratório de Fenomenologia e Estudos em psicologia Existencial (LAFEPE). Vice-diretorado Instituto de Psicologia. É bolsista produtividade- PQ2/CNPQ e Procientista da UERJ. Participa do GT Psicologia & Fenomenologia da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em psicologia). Sócia fundadora do Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro (IFEN), Presidente da Asociación Latino-americana de Psicoterapia Existencial (ALPE). Endereço Institucional: Rua São Francisco Xavier - 524 - Maracanã - Rio de Janeiro, CEP 20550-013. Email: ana.maria.feijoo@gmail.com

 

 


RESUMO

O estudo versa sobre a criação de um núcleo de atendimento psicológico a pessoas em risco de suicídio por meio de uma análise fenomenológica daquilo que nos diz aquele que pensa em suicídio em suas diferentes etapas: a redução fenomenológica, a descrição dos vetores internos ao fenômeno e a explicitação das experiências. Para tanto, acompanhamos as questões que foram apresentadas pelas duas primeiras pessoas encaminhadas pelo Núcleo de Atenção ao Estudante (NACE) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ao Núcleo de Atendimento Clinico (NAC) a pessoas com risco de suicídio e concluímos que antes de cometer o suicídio algumas pessoas procuram por ajuda, o que justifica a pertinência e a urgência da criação de núcleos de atendimento clínico com psicólogos devidamente preparados para a lida com essa situação.

Palavras-chave: Suicídio; Psicoterapia; Método fenomenológico, Núcleo de apoio.


ABSTRACT

This study is about the establishment of a psychological service center for people at risk of suicide. It will work by means of a phenomenological analysis of what is in question in the different stages of the possible suicide: the phenomenological reduction, the description of internal vectors of the phenomenon and the explanation of the experiments. To do so, we followed the issues that were presented by the first two people referred by the Student Care Center (NACE) of the State University of Rio de Janeiro to the Psychological Service Center (NAC) for people at risk of suicide. We concluded that before committing suicide some people look for help, which justifies the relevance and urgency of creating clinical care centers with psychologists properly prepared to deal with this situation.

Keywords: Suicide; Psychotherapy; Phenomenological method; Supporting nucleus.


RESUMEN

El estudio es sobre la creación de un centro de servicios psicológicos a las personas en riesgo de suicidio a través de un análisis fenomenológico de lo que nos dice aquellos que tienen pensamientos de suicidio en sus diferentes etapas: la reducción fenomenológica, la descripción de vectores internos al fenómeno y la explicación de experiencias. Para ello, seguimos los temas que fueron presentados por las dos primeras personas remitidas por el Centro de Atención al Estudiante (NACE) de la Universidad del Estado de Rio de Janeiro al Centro de Atención Clínica (NAC) en personas con riesgo de suicidio y la conclusión a que llegamos es que antes de suicidarse las personas buscan ayuda, lo que explica la importancia y la urgencia del establecimiento de la atención clínica con psicólogos debidamente preparados para lidiar con esta situación.

Palabras clave: Suicidio; Psicoterapia; Método fenomenológico; Núcleo de apoyo.


 

 

Introdução

Este artigo faz parte do projeto intitulado Por Um Núcleo de Atendimento Clínico a Pessoas em Risco de Suicídio: Uma Análise Fenomenológica do Ato de Decidir Pôr Fim à Vida. O objetivo do projeto alicerça-se em duas reivindicações. A primeira delas parte da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2015) - de que sejam criados mais núcleos de atendimento a pessoas que têm ideias suicidas. A outra reivindicação é do Conselho Regional de São Paulo (Santos, 2011) - para que haja um maior preparo dos profissionais de psicologia para a atuação clínica com pessoas que pensam em pôr fim à vida. O objetivo desta pesquisa, no sentido de atender às solicitações acima, foi o de criar um núcleo de atendimento clínico, com a devida formação dos estudantes e profissionais de psicologia para a lida com pessoas que pensam em suicídio.

Finalizado o projeto, criamos um Núcleo de Atendimento Clínico (NAC) a pessoas em risco de suicídio, com ações locais destinadas à assistência a essas pessoas. Esse núcleo se estabeleceu no SPA/UERJ, em parceria com um núcleo já consagrado, denominado UERJ Pela Vida. Assim, a equipe UERJ Pela Vida continuou na recepção ou triagem daqueles que procuram ou são encaminhados por outros Centros da Universidade para esse núcleo. E as pessoas avaliadas como em risco, ou aquelas que quiserem dar continuidade aos encontros com profissionais e estudantes preparados para esse fim são atendidas pelo NAC.

A preparação de profissionais de psicologia para o atendimento clínico, pelo NAC, àqueles que têm ideias suicidas aconteceu em três vertentes. A primeira pautou-se em estudos sobre o atendimento clínico em uma perspectiva existencial em psico-logia (Feijoo, 2017). O conteúdo discutido nesses estudos foi sobre o modo de cuidado que se estabelece na relação clínica com bases existenciais. A segunda vertente ateve-se aos estudos sobre a ação de pôr fim à vida - desde os gregos antigos, passando pelos hebreus, Idade Média até a Moderna - para, dessa forma, poder verificar como, em cada época histórica, o suicídio ganha modulações próprias ao horizonte histórico em que a existência se encontra (Minois, 1995). Por fim, colhemos informações e conquistamos aprendizado sobre aquilo que os estudiosos do tema suicídio, bem como os núcleos de atendimento têm estudado e concluído. Na terceira vertente, estagiários e psicólogos voluntários realizaram atendimentos clínicos que foram devidamente registrados e analisados para compreender o que estava em jogo quando as pessoas queriam dar fim às suas vidas.

O Ministério da Saúde (Brasil, 2015) criou, em 22 de dezembro de 2005, a portaria de número 2542, que versa sobre a Estratégia Nacional de Prevenção do Suicídio, estimulando algumas ações locais destinadas à prevenção; assinalou, no entanto, não haver iniciativas de maior alcance nesse campo. Na tentativa de mobilizar a prevenção do suicídio, o MS estimulou a realização de Projetos com o propósito de acolher as pessoas que pensam em suicídio. Daí surgiram alguns projetos como ComViver, no Rio de Janeiro, e Programa de Prevenção de suicídio implantado no Hospital Ouro Verde, em Campinas.

Na World Health Organization (WHO, 2016) encontramos três informações acerca do suicídio que são muito pertinentes para justificar a necessidade de criação de núcleos de atendimento a pessoas que pensam em suicídio. A primeira informação é de que 800.000 pessoas se suicidam anualmente. A segunda diz que o suicídio é a segunda maior causa mortis de pessoas entre 15 e 29 anos de idade. E a terceira é de que a cada quarenta segundos uma pessoa comete suicídio. Minayo e Cavalcante (2010) trazem mais uma notícia, também de grande pertinência para o nosso projeto. As autoras dizem que em escala global morrem mais pessoas vítimas do suicídio do que a soma das que morrem vítimas de homicídios e de guerras. Segundo a cartilha intitulada Suicídio: informando para prevenir, da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP, 2014), o Brasil é o oitavo país em números absolutos de suicídio, registrando em 2012 um total de 11.821 mortes, com aproximadamente 30 mortes por dia. Vasconcelos-Raposo, Soares, Silva e Teixeira (2016) afirmam que o suicídio é um problema de saúde pública, por se encontrar entre as dez primeiras causas de morte mundialmente, considerando todas as faixas etárias, e ocupar o terceiro lugar entre 15 e 35 anos. Com as informações acima, não resta dúvida de que o suicídio é um problema de saúde pública, como ressaltado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Com relação a atendermos à solicitação da OMS para que se criem mais núcleos de atendimento a pessoas com ideação suicida, vamos nos ater às informações dessa Instituição. A OMS (2015) considera que 90% das pessoas que pensam em dar fim à vida não consumariam o ato se tivessem a oportunidade de ser acolhidas. Isso pode ser constatado no documentário A Ponte (Blaustein & Fleming, 2009), em que fica evidente a hesitação daquele que pretende suicidar-se, parecendo que a aproximação de um dos transeuntes poderia reverter a decisão.

Diante dessas informações, não resta dúvida sobre a importância e a necessidade de se criar núcleos de atendimento às pessoas que pensam em pôr fim à sua vida. Também ressaltamos que profissionais e estudantes de psicologia devem ser devidamente preparados para encaminhar esses atendimentos clínicos.

Santos (2011) confirma a importância da criação de projetos e núcleos de atendimento. No entanto, alerta para a insuficiência da qualificação do pessoal envolvido na lida com a situação de suicídio. Ele ainda se refere à importância do implemento de "políticas de recheio", ou seja, uma maior preocupação com a qualificação técnica, sem abandonar a humanização dos profissionais envolvidos com a temática. E, por fim, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (Santos, 2011) refere-se à preocupação com a falta de maiores discussões dos psicólogos sobre a lida desses profissionais com aqueles que querem pôr fim à vida.

Para poder criar um núcleo de atendimento para essas situações específicas, empenhamo-nos na preparação de profissionais de psicologia para atendimento a pessoas que pensam em pôr fim às suas vidas. Desse modo, caminhamos na posição defendida por Dillon (2009) acerca da formação de redes de ajuda devidamente preparadas, para assim evitar o Complexo de Agar, ou seja, na tarefa de ajudar o outro, aquele que se propõe a ajudar acabar ficando fragilizado.

Ao pensar na clínica psicológica com bases existenciais, nos deparamos com um grande desafio: como encontrar um caminho clínico para pensar a questão do suicídio sem recair nas instruções de um manual, mas também não ficar na indiferença? Os manuais, os questionários e as escalas de avaliação do risco de suicídio foram o que mais encontramos na atuação do psicólogo e de outros profissionais que lidam com a questão. Os profissionais agem para não deixar que o ato aconteça, aproximando-se de algo policialesco e moralizante, chegando até a internações compulsórias. Na tentativa de não recair nesse modo de lida, corremos o risco de ficar no polo oposto, ou seja, na indiferença, em que se pensa o suicídio como algo da ordem do desejo ou da escolha estritamente pessoal e, portanto, nada nos cabe fazer a não ser deixar que a pessoa aja naquilo que lhe convier.

Outra questão recorrente naqueles que lidam com pessoas que pensam em suicidar-se é a de procurar o responsável pela situação. Há aqueles que responsabilizam o individuo, com diferentes alegações: portador de uma doença psíquica, frágil psiquicamente etc. Há ainda aqueles que responsabilizam os pais ou a família, pelos seus comportamentos de desatenção, conflitos etc. E encontramos aqueles que culpabilizam o Estado, pela manutenção de questões sociais como desemprego, pobreza, falta de oportu-nidades etc. Berenchtein (2013), por exemplo, considera o suicídio algo que se dá pela responsabilidade do Estado e, portanto, como consequência da ordem social vigente. Esse estudioso do tema refere-se ao suicídio como uma questão de saúde pública e um desafio para a psicologia clínica - sugerindo, como medida preventiva, uma ação do profissional de saúde no sentido de "promover ou valorizar a questão da vida" (Berenchtein, 2013, p. 21).

Cattapan (2012) - em Moralização do Suicídio? - defende uma postura oposta à de Berenchtein. Cattapan pauta-se na responsabilização do indivíduo por suas decisões e seus atos. Com isso, ele defende a inutilidade de redes de atendimento com fins à prevenção. Ele ainda argumenta que a criação de núcleos de atendimento já é, por si só, moralizante, uma vez que estes remetem à psicopatologização da vida. E ainda diz que com esses núcleos aparece uma perspectiva biopolítica, em que o objetivo é o controle da vida e da morte. Cattapan (2012) finaliza a sua apresentação da seguinte forma: "O suicida não tolera a vida e a sociedade biopolítica não tolera o suicídio" (p. 183).

Da discussão anterior surgiu o nosso segundo desafio na lida com aqueles que querem dar fim às suas vidas. Trata-se de como assumir uma atuação clínica que não se incline ante uma perspectiva moralizante, seja ela de ordem médica, jurídica ou sacerdotal. Essas ordens que se inserem no nosso tempo são características de um mundo onde ainda predominam as determinações cristãs, que na prática sacerdotal recebem a classificação de pecado. Na medicina, o suicídio é diagnosticado como um ato patológico. E na justiça, até pouco tempo, como crime. E como nós somos homens desse mundo, encontramo-nos totalmente tomados por essas determinações.

Para alcançar uma postura de acolhimento sem recair em algo policialesco foi que nos dedicamos à preparação dos profissionais envolvidos no núcleo de atendimento. Nossos estudos aconteceram no sentido de que estudantes e profissionais de psicologia se apropriassem de uma postura fenomenológica diante de questões, tanto moralizantes quanto indiferentes, sobre a decisão de pôr fim à vida. Para que esses estudantes e profissionais pudessem conquistar um modo fenomenológico de atendimento clínico, precisamos prepará-los mediante três vias de estudos e pesquisas: sobre o exercício da clínica existencial; sobre a compreensão de que as verdades acerca do suicídio são historicamente construídas; e por meio de uma análise fenomenológica dos relatos sobre suicídio na relação clínica - para, assim, poderem apreender o sentido que está em jogo quando uma pessoa pensa em dar fim à sua vida.

 

Método

Para proceder aos nossos estudos e investigar os sentidos que estão em jogo na decisão de pôr fim à vida, estabelecemos a nossa rotina de trabalho por meio de uma análise fenomenológica do relato das experiências daquele que decide pôr fim à vida e vai à busca de atendimento clínico.

Análise fenomenológica do relato das experiências daquele que decide pôr fim à vida

Para procedermos à investigação fenomenológica do fenômeno de decidir pôr fim à vida - e assim podermos aceder aos sentidos que estão em jogo quando alguém pensa nesse ato - consideramos a proposta de Feijoo e Mattar (2014) que apontam para três elementos presentes no modo como os filósofos Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty se apropriaram da fenomenologia para investigarem alguns fenômenos presentes na existência humana. Essas estudiosas do tema consideram esses três elementos imprescindíveis na investigação fenomenológica. São eles: a redução fenomenológica, passando da atitude natural, na qual predomina o julgamento e a conduta moral e assumindo uma postura anti-natural diante do que se apresenta; a descrição dos vetores internos ao fenômeno, de modo que aquele que investiga acompanha o fenômeno em sua mobilidade estrutural por meio daquele que traz a sua experiência de querer dar fim à sua vida; e, por fim, a explicitação das experiências, na medida em que, ao acompanhar o fenômeno tal como ele acontece no seu campo de mostração, torna vigente aquilo que se dá na situação singular em que essa decisão aparece. Passemos ao primeiro momento da investigação, qual seja, assumir uma atitude antinatural, saindo da perspectiva empírica para apreender o ato de pôr fim à vida fenomenologicamente, como veremos a seguir.

Redução fenomenológica

Para podermos proceder à análise fenomenológica do relato das experiências daquele que decide pôr fim à vida e vai à busca de atendimento clínico no SPA/UERJ, primeiramente tivemos que operar com a redução fenomenológica e superar alguns desafios. O primeiro deles foi suspender a ideia, vigente em nosso mundo, de tomar o ato de pôr fim à vida em uma conotação de patologia, erro, pecado e até de crime contra a própria vida. Desse modo, o ato do suicídio vem, na maioria das vezes, permeado de uma perspectiva moral, presente tan-to naquele que pensa ou tenta o ato, como naquele que lhe dá assistência. Consideramos que em uma apreensão fenomenológica do fenômeno de pôr fim à vida, precisamos, antes de qualquer lida com o fenômeno, suspender todos os atravessamentos que impliquem em diagnóstico, julgamento e moralização do comportamento. Diante disso, a questão que primeiramente enfrentamos é como suspender posições moralizantes acerca do suicídio, uma vez que estamos totalmente inseridos em um mundo cujas determinações são cristãs? Como fazer tais suspensões de modo a não velar a dinâmica existencial própria ao fenômeno? Antes de qualquer coisa, precisamos nos colocar ante o fenômeno de modo sereno (Heidegger, 1959) ou, como assinala Kierkegaard, (1859/1986) na adição. Essa postura ante o fenômeno consiste em poder dar um passo atrás diante daquilo que o mundo articula como verdades inquestionáveis acerca do suicídio.

Para dar o passo atrás ou reduzir fenomenologicamente o fenômeno que queremos investigar, temos que, primeiramente, refletir acerca das determinações do mundo em que nos encontramos. No mundo moderno, como denominado por Heidegger (1953/1997), predomina a máxima de que a vida deve ser mantida a qualquer preço, tal como se fosse um manancial energético. Além disso, somos regidos por um modelo normativo acerca de como devemos nos alimentar, nos exercitar, nos divertir a fim de manter a saúde e, consequentemente, prolongar a vida. Logo, nessa lógica em que conduzimos as nossas vidas na atualidade, o ato de pôr fim à vida torna-se, automaticamente, algo que deve ser evitado, também a qualquer preço. Nisso há, sem dúvida, uma posição moral, mesmo que sutil. Fora isso, incluem-se nessa moralidade as máximas das instituições religiosas cristãs, em que o suicídio é pecado e aquele que o cometer terá sua alma dirigida para as trevas após a morte.

Uma vez tendo conquistado uma atitude serena perante aquilo que predomina como verdade em nosso tempo, podemos nos abrir para o fenômeno sem nenhum preconceito. Assim, podemos nos aproximar daquele que decide pôr fim à sua vida sem nenhuma ideia anteriormente concebida. Trata-se de reduzir o fato tomado, na maioria das vezes empiricamente, a uma visada fenomenológica. Isso significa poder entender que tudo que vemos e interpretamos acontece como intencionalidade, logo, não partimos da ideia de que é o sujeito o detentor da verdade sobre as coisas - a verdade aparece sempre na experiência, na qual homem e mundo são cooriginários. E é desse modo que tomamos o fenômeno do ato de decidir pôr fim à vida.

Descrição dos vetores internos ao fenômeno

Passamos, então, à descrição dos vetores internos ao fenômeno do suicídio. Para tanto, precisamos, primeiramente, acompanhar a experiência daquele que decidiu finalizar o curso de sua vida, e assim ver o que ele tem a nos dizer. Para cumprir essa etapa, apresentaremos os fragmentos de relatos de duas pessoas que procuraram o SPA/UERJ para atendimento clínico, cuja queixa era o desejo de pôr fim à vida.

As duas pessoas com as quais trabalhamos receberam nomes fictícios: Larissa, com 21 anos e Darly, com 25 anos. A decisão por esses relatos clínicos se deu pelo fato de terem sido os dois primeiros atendimentos após o início da pesquisa. Depois desses, outros atendimentos vêm ocorrendo; no entanto, não serão considerados no interior deste manuscrito.

Os atendimentos foram realizados por estagiários do grupo de supervisão denominado Análise existencial, sob a orientação, coordenação e supervisão de um profissional com bastante experiência na atuação psicoterápica. Os atendimentos foram registrados por escrito no decorrer do atendimento clínico. E a análise dos relatos foi realizada junto ao grupo de supervisão e estudos em suicídio.

Algumas questões podem surgir ante os procedimentos inerentes ao método fenomenológico. São elas: a seleção da amostra foi aleatória? A amostra composta por dois indivíduos tem o poder de generalização? Primeiramente, temos que esclarecer que amostra significativa e generalização são elementos próprios das pesquisas nas ciências naturais, ou ainda, nas ciências humanas, que tomam para suas pesquisas o modelo das ciências naturais. Esse não é o caso daquele que quer investigar fenomenologicamente, pois nesta perspectiva basta ver um homem para que eu possa compreender a dinâmica existencial dos homens em um determinado horizonte histórico. Em segundo lugar, na fenomenologia não se pretende alcançar leis gerais sobre as coisas e sim a sua essencialidade. Enquanto as leis se constituem pela significação numérica, a essencialidade se alcança pelo deter-se demoradamente ante aquilo que o próprio fenômeno tem a dizer.

A significação numérica diz respeito à significação estatística dos dados de acordo com a frequência em que uma situação acontece. Se a frequência for numericamente significativa podemos generalizar o acontecimento e estabelecer uma ordem causal mesmo que probabilística. Ao nos referirmos a alcançar a essencialidade do fenômeno, queremos mostrar que não é o numérico que posiciona a verdade do fenômeno. O que importa é o fato de que a questão aparece e se mostra em seu elemento existencial, independente da frequência em que ele apareça.

Uma vez esclarecidas as questões acima, vamos prosseguir na descrição dos fenômenos por meio das experiências que nos são relatadas. Os relatos desses atendimentos foram organizados em agrupamentos, cujas denominações se deram a posteriori.

Larissa relata que já tentou suicídio, com ingestão de veneno, por três vezes. Ela diz que tem vários episódios de depressão, que se expressam por querer isolar-se e, nessas ocasiões, nem mesmo quer sair de casa. Também, quando deprimida, percebe-se como uma pessoa sem valor e sem importância. Nessas ocasiões, seu maior desejo é acabar com sua vida. Para tanto, vai para um lugar bem distante de sua residência e ingere veneno. Age desse modo porque se preocupa com o sobrinho, não querendo que ele presencie a cena. Há algum tempo isso não ocorria; no entanto, agora ela vem percebendo que o desinteresse e as depreciações com relação a si mesma estão voltando. Diante disso, decidiu pedir ajuda. Foi ao psiquiatra e este a encaminhou para uma psicoterapia comportamental (TCC). Larissa, então, procurou o SPA/UERJ - no entanto, como a equipe de TTC não dispunha de vagas para o atendimento imediato, ela aceitou ser atendida pelos pesquisadores. Seguem abaixo os diferentes agrupamentos e os respectivos relatos de Larissa:

Tentativas de suicídio mediante a ingestão de substâncias lesivas e inalação de gás

"Uma vez que fui para longe de casa e ingeri veneno. Quando comecei a espumar, chamei alguém que encontrei na rua para ajudar-me. A pessoa ligou para o SAMU e fui socorrida". "Das vezes que tomei chumbinho, queria mesmo morrer, mas quando as reações começaram, me arrependi. Foram muitas vezes. Uma vez liguei o gás e fui dormir. Uma vizinha sentiu o cheiro e bateu à porta. Ela desligou o gás. Desta vez, eu me sentia inútil e incapaz".

Preocupação com o sobrinho e a relação com seus pais

"Na segunda vez que tomei chumbinho, fiquei internada e meu pai não foi me visitar. Da última vez, fiquei irritada porque minha irmã contou ao filho. Eu me preocupo com o meu sobrinho, tenho medo que ele entre em depressão quando perceber que a mãe dele não o procura". "Eu brigo muito com a minha mãe, a casa em que moro é da minha mãe, eu não consigo falar minha casa".

Motivos que levam Larissa ao desejo de querer pôr fim à sua vida

"Briguei com a minha mãe há pouco tempo e decidi sair de casa. Agora, estou com medo, pois da última vez que saí de casa fiquei mal".

E, ainda, relembrando as suas tentativas de suicídio: "Saí de casa aos 16 anos e voltei a morar com a minha mãe aos 18. Saí de casa, pois brigávamos muito. Essa foi a primeira vez. Fui para um terreno baldio e tomei chumbinho; um amigo telefonou para mim, nesse momento, e contei o que fiz e onde eu estava. Ele me socorreu e fiquei em coma, internada por al-gum tempo". "A segunda vez que tentei suicídio, também com 18 anos, eu fazia parte de um partido, mas, por estar depressiva, as pessoas não queriam me dar muitas tarefas para fazer, para que eu não me estressasse. Com isso, eu me sentia inútil. Hoje, me arrependo de ter tentado me matar, por isso, meu pedido de ajuda".

Ao ser questionada acerca dos motivos das crises, Larissa responde: "Sinto-me incapaz e inútil quando não consigo ir para o curso, estudar, cumprir com as minhas obrigações".

Sua história de estupros

"Quando mais nova, fui abusada. Depois disso costumava me machucar, me arranhar. Sinto muita raiva". "Há mais ou menos duas semanas fui para a casa de um amigo e ele me estuprou. Cedi por medo dele pegar algum objeto e que me machucasse. Eu ainda não digeri essa situação. Que quando acontece algo assim, fico em casa chorando e trancada. Desta vez, não fiquei, acho que não digeri essa situação. Não prestei queixa porque tenho medo de falarem que eu estava na casa dele porque quis. Não fui ao posto tomar pílula do dia seguinte nem coquetel porque tinha muita coisa para fazer".

Momentos que ela está bem:

"Quando estou bem, procuro me cuidar, me tratar. Mas quando estou mal, tenho vontade de morrer". "Agora estou fazendo aula de música e o pré-vestibular".

Última crise

"A última crise foi há algumas semanas. Senti muito medo e não consegui falar nem me olhar no espelho. Como estou fazendo yoga e meditação, tentei me acalmar e perceber o que estava sentindo. Então, pedi a minha mãe para pegar um remédio. Não sei porque senti tanto medo".

Desistência dos tratamentos:

"Não sei se virei mais à terapia, porque acho que falar não está me ajudando". "Já fiz terapia antes, mas não gostei, pois os terapeutas eram conservadores e rudes".

Darly foi ao atendimento acompanhada pela namorada, que permaneceu na sala de espera enquanto Darly estava em sua consulta. No relato sobre sua situação, Darly falou com clareza em uma linguagem correta e bem articulada. O relato pare-cia ser difícil, falava pausadamente e, por vezes, prendia o choro. Darly utiliza o gênero masculino ao referir-se a si mesma.

Sensações de angústia

"Há mais ou menos dois anos venho passando por episódios de muita angústia, sem motivo al-gum. Nessas situações tenho a sensação de que vou explodir". "Do mesmo modo que o sofrimento e o desespero vêm, vão embora, não sei quando esses sentimentos virão, por isso não posso me preparar". "Não me sinto feliz, mas tenho momentos alegres. No momento, estou melhor. Eu acho estranho ter alegria e tristeza ao mesmo tempo. Parece que o sofrimento vem do nada e eu não consigo lidar, não estou preparado para isso". "Tenho muito medo do que posso fazer comigo e com os outros, quando eu explodir. Já pensei em me drogar para acabar com isso, mas não me drogo". "Eu me sinto vulnerável ao falar sobre essas coisas para minha namorada e agora para você na terapia, embora na terapia me sinta menos. Acho que às vezes estou me vitimizando, pois os meus problemas não são tão graves como eu faço parecer".

Tentativas de suicídio mediante a ingestão de substâncias lesivas

"Há um ano tentei suicídio por ingestão de medicamentos. Nesse momento, enviei uma mensagem de despedida, por e-mail, à minha namorada. Ela, imediatamente, telefonou-me na tentativa de acalmar-me, então parei de ingerir os remédios e desisti do ato". "No último domingo, senti, outra vez, vontade de morrer e recorri de novo à minha namorada". "Tentei suicidar-me setes meses após a morte de minha mãe". "Ano passado, tentei me matar, tomei remédios, mas sabe, não foram eficazes. Se conhecesse um método eficaz, eu faria".

Relações afetivas

Ela diz, sobre o fato de procurar pela namorada quando pensa em terminar com sua vida:

"Isso me preocupa, tenho medo que ela fique por medo que eu me mate e não porque me ama. Não tenho minha família, desde que minha mãe morreu, há mais de um ano, meu irmão foi morar com o meu pai e eu fiquei sozinha". "Aos 16 anos, assumi junto à minha família que me relacionava homo afetivamente. Minha família, principalmente minha mãe, reagiu muito mal. Ela não tolerou a situação e eu me surpreendi, não esperava essa reação por parte dela. Com isso, sofri agressões físicas e verbais por parte de minha mãe, e reagi à altura, não me dobrei". "Há mais ou menos cinco anos, quando eu estava quase acabando outro curso na faculdade e decidi sair, trocar de profissão". "Minha mãe não concordou com a minha decisão e me chamou de incapaz, disse também que eu já estava velho para morar com ela".

Seu desempenho

"sempre fui distraído, mas logo conseguia recuperar a atenção. Hoje, não consigo mais recuperá-la, passo horas fazendo alguma coisa que qualquer pessoa faria em pouco tempo. Por isso, me sinto burro. Tenho dois braços e duas pernas, tenho saúde, por isso deveria ser feliz. Mas não sou. Tanta gente leva uma vida medíocre e é feliz. Acontece que eu só me vejo em posição de destaque, bem sucedido. Se não for assim, prefiro não viver". "No estágio, a supervisora disse que eu era o melhor estagiário. Achei estranho, em vez de gostar me senti mal".

Sua escolha sexual

"Talvez fosse mais fácil se não tivesse assumido que era gay. Mas não conseguiria viver hoje sem me assumir".

Tratamentos

"Já tentei fazer terapia antes, porém abandonei após três sessões". "Já fiz terapia antes. Da primeira vez não senti empatia pela psicóloga; na outra, achei que não precisava. Agora sei que preciso de terapia, pois o momento ruim vai voltar e ele volta cada vez pior. Agora eu preciso de apoio profissional. Se existisse um remédio para

o sofrimento e para o desespero não acontecerem, eu tomaria. Eu não venho para a sessão feliz, venho me arrastando, mas venho porque sei que é necessário, pois me faz bem falar".

O desabafo com as pessoas

"Eu me sinto bem ao falar de minhas mazelas, é melhor do que guardá-las para mim. As pessoas falam para eu mudar, como se fosse fácil. Mandei mensagem para uma amiga, da qual estava afastado há algum tempo, e a minha amiga respondeu com frieza, por isso não a procurei mais. Penso o mesmo com relação à minha namorada, acho que ela não aguenta mais, também. Estamos juntos há dois anos, mas a minha família não sabe".

Principais incômodos

"As coisas que mais me incomodam são a vida acadêmica, a relação com a minha mãe e a relação com meu pai. É mais difícil falar daquilo que causa sofrimento. Durante muito tempo sofri agressões e insultos das pessoas de quem eu precisava de apoio. Por isso, sempre carreguei muita raiva e rancor por isso". "Saí de casa e depois de dois meses a minha mãe descobriu um câncer de mama, que depois foi para o cérebro. Minha mãe me insultava, dizia que eu não era capaz e não era ninguém. Logo que ela começou a falar isso para mim, eu não ligava, depois isso mudou. Quando a minha mãe me batia, sentia vontade de espancá-la, mas me lembrava que era minha mãe e não podia fazer isso". "Quando saí de casa, resolvi revidar as agressões, dizendo para minha mãe que ela não era uma boa mãe. Isto foi logo após a cirurgia de mama. Sinto-me culpado, penso: será que o estresse que causei a ela provocou a doença? Também me sinto culpado por não ter estado ao lado dela, não ter ido com ela às consultas. Nos últimos nove meses de vida, eu me aproximei da minha mãe e tentamos conviver bem. Mas eu me pergunto se essa aproximação foi boa, pois assim sofri mais com a morte dela". "Acho que ter falado da minha mãe me fez mal, não estou legal".

Retorno do convívio familiar

"Penso em entrar em contato com meu pai e com a minha família para ter mais um apoio, mas não sei se seria certo ou errado estabelecer laços, não sei como eles irão reagir". Depois de alguns encontros, Darly relata: "Resolvi falar com minha família. A minha madrinha disse que os meus problemas não eram nada. Depois, falei com a minha tia e ela disse que os meus problemas eram muito fáceis de resolver. Elas acham que sofrimento e a crise de depressão não são nada".

Conflitos com a namorada

"Ainda estou mal, tão mal quanto antes". "Saí com a minha namorada e com umas amigas e fui dormir na casa de minha namorada. Lá, "surtei" e não deixei ninguém encostar-se a ela. Sinto vergonha, pois fiz isso na frente dos pais dela. Eles são umbandistas e disseram que eu não estava sozinho. Desde agosto ou setembro, brigo muito com a minha namorada. Há três anos, só sofro. Depois da crise que dei na casa dela, pensei em me matar. Só não o fiz porque não queria que ela passasse por outro sofrimento". "Eu não sei criar vínculos nem proximidade, não consigo me reaproximar das pessoas de quem me afastei". "Não consigo me desvincular da minha namorada. Me sinto sozinho". "Tenho tentado encarar de frente, mas só piora. Me sinto muito perdido".

Passaremos, então, para a última etapa da investigação fenomenológica. Trata-se da explicitação das experiências em seus diferentes sentidos, que tradicionalmente é denominada de resultados.

 

Resultados

O objetivo proposto nesta investigação foi de averiguar a pertinência de se criar um núcleo de atendimento clínico a pessoas que pensam em suicídio tal como foi reivindicado pela OMS (2015). E, ainda, tentando atender a reivindicação do Conselho regional de São Paulo (Santos, 2011), preparar os psicólogos para esse tipo específico de atendimento. A análise fenomenológica dos discursos clínicos, obtidos em nossa investigação, nos mostrou a importância e pertinência da criação do NAC/UERJ pelo fato de que na medida em que as pessoas atendidas falavam de seus incômodos, a ideia de suicídio desaparecia.

Com relação à reivindicação de que os profissionais sejam devidamente preparados para essa modalidade de atendimento, a própria investigação foi fundamental para que o aprendizado se desse - uma vez que a modalidade de investigação exigiu do pesquisador um exercício da clínica psicológica.

A explicitação das experiências em seus diferentes sentidos, que se desvelou ao acompanhar o fenômeno tal como ele acontece no seu campo de mostração por meio das expressões singulares em que a decisão de terminar com a própria vida apareceu, é de importância fundamental para a ação clínica propriamente dita.

Apresentaremos os resultados da investigação em unidades de sentidos tal como explicitados nos relatos das experiências de Larissa e de Darly que aparecem em outros relatos e nos quais o psicólogo, em sua atuação tal como desenvolvido por Feijoo (2017), deve ater-se no sentido de trabalhar o intento de pôr fim à vida:

Identidades e rótulos: ambas referem-se a rótulos que definem uma identidade como depressiva, que na clínica psicológica devem ser destruídos, a fim de que a pessoa possa conquistar a si mesma, uma vez que se encontrar totalmente distanciada de tais rótulos ( Feijoo, 2017).

Autodepreciação: tanto Larissa quanto Darly referem-se a si mesmas autodepreciando-se. Afirmam ser inúteis, incapazes, descartáveis, sem valor e sem importância. No atendimento clínico, há toda uma tentativa de que a pessoa possa repensar o seu valor, que não tem que necessariamente estar atrelado ao valor posicionado pelo mundo.

Vínculos afetivos: aparecem no valor que Larissa dá ao sobrinho, preocupando-se com ele e na preocupação de Darly com a namorada, caso venha a dar cabo da própria vida. Na clínica, o psicólogo dá destaque aos vínculos afetivos de modo a abrir um espaço para que a pessoa se demore neles e, assim, possa repensar aquilo que na vida ainda faz sentido.

Identificação daquilo que antecede o desejo de suicídio: Darly diz que não percebe os sinais que antecedem o desejo de pôr fim à sua vida. Já Larissa percebe claramente e por isso pede ajuda. A identificação desses elementos é de importância fundamental para que a pessoa possa pedir ajuda. Além disso, aquele que já identifica os sinais pode demorar-se na tematização dos mesmos de modo a poder compreender o que está em jogo no projeto de pôr fim à vida.

Pedidos de ajuda: ambas relatam a desistência do ato pela presença do outro. Em ambas há um pedido de ajuda e perante a ajuda, elas desistem. Essa unidade de sentido mostra a importância de que haja núcleos de atendimentos clínicos de modo a que se possa evitar a consumação do ato.

Retomada da experiência passada: Ambas retomam a experiência passada como fonte de frustrações e abandono. Na situação clínica, essa retomada é importante para que aquele que se sente abandonado e frustrado tenha a oportunidade de dar outros sentidos a essas experiências.

Ambiguidade ante a (in) decisão do suicídio: Larissa, quando toma o veneno, pede ajuda. Ela quer morrer, mas quando está conseguindo, há o arrependimento pela tentativa de suicídio. A ambiguidade aparece no fato de que ela quer morrer, mas quando está conseguindo, pede ajuda e desiste. Darly refere-se ao medo de cometer o ato. Essa situação reforça a importância da criação de núcleos de atendimento clínicos, na medida em que tais núcleos podem acolher aquele que se arrepende e, ainda trabalhar clinicamente o que se apresenta como questão no ato de arrepender-se.

Presença de sentimentos, afetos e humor: ambas referem-se à raiva; autoagressão; oscilação de humor: estando bem, valorizam a vida; estando mal, querem morrer; arrependimento; medo; episódios de angústia, sofrimento e desespero; rancor; preocupação em parecer frágil e vulnerável; auto culpabilização. Todos esses afetos podem ser trabalhados durante os atendimentos clínicos de modo que a pessoa possa compreender e apreender as experiências que se apresentam na oscilação do seu humor.

Fuga do sofrimento: ambas parecem querer escapar ao sofrimento. Em Darly isso aparece quando ela se pergunta se deveria ter se reaproximado da mãe, já que assim sofreu mais com sua morte; também quando toma remédios e álcool para dormir. Larissa não expressa tão claramente essa fuga, embora fique subentendida. O espaço clínico em sua vocação para uma acolhida atenta, pode abarcar o sofrimento de modo que esse apareça como possibilidade existencial.

A lida com situações adversas: dificuldade de lida com adversidades. Larissa, quando briga com a mãe, sai de casa e quando está mal, quer sair da vida. O modo de lidar com a adversidade é saindo da situação. Larissa e Darly sentem-se rejeitadas por um membro da família e, também, depreciadas por parte da família. Ambas se referem a conflitos familiares e a decisão de afastar-se dos mesmos. Esse modo de sair da situação pode ser trabalhado clinicamente para que outras possibilidades de lida com tais conflitos possam aparecer.

Queixa a respeito dos tratamentos: ambas queixam das psicoterapias anteriores por diferentes motivos, e com isso justificam o fato de terem abandonado o tratamento. É importante, que o psicólogo clínico permaneça atento a tais queixas de modo a poder trabalhar o abandono do tratamento.

Motivos para a decisão pelo suicídio: ambas se sentem inúteis e, por isso, não merecem viver. Isto as leva à desistência, pois quem não é útil merece ser descartado. Tanto Larissa quanto Darly evitam de forma específica a dor e fogem do sofrimento. Em Darly isso aparece quando ela diz que gostaria de um remédio para acabar com o sofrimento, e que já pensou em se drogar para acabar com a dor. Parece que a única saída para ambas é a autodestruição. Na situação clínica, pode-se abrir um espaço para reconstruir o modo que as pessoas que pensam em suicídio lidam com a dor e o sofrimento.

Durante a pesquisa, outros atendimentos foram realizados e as queixas também se deram em termos de conflitos e ressentimentos com relação aos amigos e aos familiares, seja por terem se sentido abandonados ou superprotegidos. Apareceram também relatos de violência sexual, estupros e dificuldades financeiras. Muitos se referem às frustrações pelo fato da vida não ter transcorrido da forma como planejaram. É unânime a declaração de que o motivo pelo qual procuram atendimento é o medo de acabarem cometendo suicídio. Concluímos, portanto, que naqueles que solicitam atendimento clínico, o desejo de morrer não supera o de viver.

De posse dos sentidos presentes nas situações acima, podemos destacar a importância e a necessidade da atuação clínica psicológica, bem como a pertinência de criação de núcleos de atendimento clínico destinado àqueles que, em algum momento, pensam em dar fim às suas vidas.

 

Discussão

Vasconcelos-Raposo et al (2016), ao pesquisar acerca dos níveis de ideação suicida em jovens adultos, querem buscar as variáveis que podem estar influenciando o aumento quantitativo de suicídio nos últimos cinquenta anos. Ou seja, esses pesquisadores buscam medidas preventivas ao suicídio, que acreditam obter uma vez conhecidas as causas. Com a pesquisa aqui apresentada, pensamos a prevenção não em seu caráter causal, indo ao encontro daquilo que defendem Pompili (2010) e Dutra (2011), nem preventivo no sentido de acreditar que por essa via teremos controle do ato de suicidar-se como defendem Toro, Nucci, Toledo, Oliveira & Prebianchi (2013). Com isso sustentamos que a liberdade do homem escapa de todo e qualquer controle. Tentamos, com nossa pesquisa, esclarecer aquilo que está em jogo na (in) decisão quanto ao ato de pôr fim à vida, para assim podermos, junto àquele que pensa no ato, mobilizá-lo no sentido de que ele se demore na decisão, de modo a poder esclarecer para si mesmo o que afinal ele deseja, como argumenta Feijoo (2017) ao referir-se a disposição do psicólogo clínico.

Na análise fenomenológica dos discursos clínicos, pudemos observar que alguns elementos mostram a importância e a necessidade da formação dos psicólogos como defendem Dillon (2010) e Berenchtein (2013) para a atuação em núcleos de atendimentos clínicos a pessoas que pensam em dar fim às suas vidas. Pudemos acompanhar que há pessoas que querem e solicitam ajuda; isso aponta para o fato de que a decisão, nesses casos, não é definitiva - conclusão essa a que também chegaram Toro et al (2013).

Vimos também, nos relatos de Larissa e Darly, a presença de vínculos afetivos e a consequente preocupação com aquilo que vai ocasionar na vida daqueles com os quais esse vínculo se estabelece. No entanto, não interpretamos tais expressões como fatores que aumentam o risco de ocorrência do suicídio (Toro et al, 2013), ao contrário, defendemos que se trata de um elemento importante a ser trabalhado pelo psicoterapeuta. O vínculo afetivo, a procura por ajuda e a ambiguidade ante a decisão de pôr fim à vida mostram que tanto Larissa quanto Darly mantêm-se compromissadas com a vida. O fato daquele que pensa pôr fim à vida procurar atendimento clínico e mostrar que afetos o ligam à vida justifica a pertinência e a urgência de mais pesquisas sobre o tema, como também da criação de núcleos de atendimento clínico com psicólogos devidamente formados para a lida com essas situações.

Ao alcançar o final dessa etapa da pesquisa, concluímos que para nos aproximarmos mais daquilo que está em jogo na decisão de pôr fim à vida, precisamos buscar o que disseram aqueles que efetivamente se suicidaram tal como defendido por Pompili (2010). Para tanto, passaremos a analisar as cartas deixadas pelos suicidas.

 

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Recebido em 20.02.17
Primeira decisão editorial em 24.07.17
Aceito em 03.01.18

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