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Pesquisas e Práticas Psicossociais

On-line version ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.10 no.2 São João del-Rei Dec. 2015

 

DOSSIÊ PSICOLOGIA COMUNITÁRIA

 

Desafios éticos na prática em comunidade: (des)encontros entre a pesquisa e a intervenção

 

Ethic challenges in community pratices (un)meeting between research and intervention

 

Los desafíos éticos en prácticas en comunidad: (des)encuentros entre la investigación y la intervención

 

 

Maria de Fátima Quintal de Freitas

Pós-Doutora em Psicologia Comunitária (ISPA, Lisboa e Universidade do Porto, Portugal). Mestre e Doutora em Psicologia Social (PUC-SP). Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Coordenadora do Núcleo de Psicologia Comunitária, Educação e Saúde (NUPCES-PPGE/CNPq). E-mail: fquintal@terra.com.br

 

 


RESUMO

O presente trabalho analisa as relações entre os processos de investigação e de intervenção no campo comunitário, enfatizando duas questões centrais: a) se a investigação (pesquisa) deve conduzir a ações que também sejam comprometidas com a realidade e a transformação social; e b) se o processo de intervenção em comunidade gera conhecimentos socialmente relevantes. Para isso procede-se a uma reflexão sobre os dilemas e desafios éticos que estão presentes nas práticas comunitárias: a) relacionados às exigências metodológicas e de produção de conhecimento; b) ligados à "sensibilidade cotidiana e histórica". Indaga-se se a intervenção psicossocial capta os processos de participação e conscientização. Finaliza-se com uma exposição de aspectos importantes para a congruência metodológica e política entre intervenção e investigação psicossocial em comunidade, na perspectiva da Psicologia Social Comunitária Latino-Americana.

Palavras-chave: Investigação-intervenção em Psicologia Social Comunitária; Ética e práticas comunitárias; Relação profissional-comunidade.


ABSTRACT

This paper analyzes the relationships between the processes of investigation and intervention in the community field, emphasizing two central questions: (a) whether the investigation (research) should lead to actions that are also committed to reality and social change; and (b) whether the community intervention process generates socially relevant knowledge. For that, the paper proceeds to a reflection on the dilemmas and ethical challenges that are present in the community practices: (a) related to methodological requirements and to the requirements of knowledge production; (b) linked to the "daily and historical sensitivity". It asks whether the psychosocial intervention captures the processes of participation and awareness acquisition. It ends with an exhibit of significant aspects to the methodological and political congruence between intervention and psychosocial research in community, from the perspective of the Latin American Social Community Psychology.

Keywords: research-intervention in Community Social Psychology; ethics and community practices; professional-community relationship.


RESUMEN

Este trabajo analiza las relaciones entre los procesos de investigación e intervención en el ámbito de la comunidad, haciendo hincapié en dos cuestiones centrales: (a) si la investigación (pesquisa) debe conducir a acciones que también están comprometidos con la realidad y el cambio social; y (b) si el proceso de intervención comunitaria genera conocimiento socialmente relevante. Para tanto el documento procede a una reflexión sobre los dilemas y desafíos éticos que están presentes en las prácticas en la comunidad: (a) en relación con los requisitos metodológicos y de la producción de conocimiento; (b) ligados a "la sensibilidad cotidiana y histórica". Se pregunta si la intervención psicosocial captura los procesos de participación y toma de conciencia. Se termina con una exposición de los aspectos importantes de la congruencia metodológica y política entre la intervención y la investigación psicosocial en la comunidad desde la perspectiva de la Psicología Social Comunitaria Latinoamericana.

Palabras clave: investigación-intervención en Psicología Social Comunitaria; ética y prácticas de la comunidad; relación profesional en la comunidad.


 

 

Introdução

Nos últimos anos, a discussão sobre ética tem recebido destaque em vários campos disciplinares e práxicos. Isso em parte acontece por conta da ampliação de temas relacionados aos dilemas e desafios éticos presentes na práxis e nos projetos e programas de intervenção sociocomunitária, que poderiam ser agrupados aqui, sem se ter a pretensão de esgotá-los, em três grandes blocos de debate. Primeiro, os temas relativos aos impactos gerados a partir das diferentes relações estabelecidas entre os profissionais e as comunidades às quais seus trabalhos se dirigem, seja no campo da educação, saúde, ciências humanas e sociais, urbanismo e planejamento urbano ou rural, políticas sociais e públicas. Segundo, as discussões ligadas às fragilidades e melindres relativos às fronteiras, pouco claras e consensuais, entre as autorias da produção de conhecimento e de tecnologias sociais, assim como sobre as implicações dos usos inapropriados das ideias ou "origens intelectuais" que os pesquisadores e autores demoraram anos para alcançar. E o terceiro tema, para o debate ético, está relacionado à formação que se faz necessária para atuar em instituições e comunidades, utilizando programas de ação para diferentes setores e grupos da realidade social. Coloca-se, aqui, a discussão sobre "verdades" e "adequações" a respeito de cada tipo de formação e os paradigmas predominantes nesse processo formativo. Isso transparece na discussão que emerge da oposição entre uma formação "mais ampliada" e uma formação "mais especializada". Isso reaviva uma antiga celeuma entre eficácia-eficiência versus qualidade-compromisso das intervenções e práticas profissionais, a despeito do lugar sociopolítico que a comunidade e os setores destinatários poderiam ter nessa discussão.

Vários autores, desde o final do século passado, trouxeram para o debate análises a respeito dos limites da ação e organização sociais e dos impactos pessoais e sociais produzidos - positivos ou negativos -, seja na perspectiva das redes e movimentos sociais e comunitários (Novo, Souza & Andrade, 2001; Ploner, Michels, Schlindwein & Guareschi, 2003; Gohn, 2010), seja na dimensão de como isso poderia contribuir para processos de socialização a favor (ou contra) os princípios de civilidade (Altvater, 1999; Appiah, 1999; Heller, 1999; Hobsbawm, 2000; Codato, 2006; Sen & Kliksberg, 2010). Nesse âmbito, pode-se, aqui, recorrer a Hobsbawm (1998), quando se refere aos desafios que a sociedade atual enfrenta quando se depara com a mudança de valores básicos de convivência e de sociabilidade. Esse autor chama a nossa atenção para "a atual adaptação das pessoas à existência, em uma sociedade desprovida das regras de civilização" (Hobsbawm, 1998, p. 268).

A sutileza de alguns processos psicossociais de naturalização da vida cotidiana pode ser identificada em exemplos atuais de exploração, sofrimento, humilhação ou mesmo admissão de formas de desvalorização, individuais ou coletivas. Essas naturalizações acontecem, por exemplo, em situações nas quais há algum grau de aceitação dos episódios ou acontecimentos cruéis que aviltam de algum modo a condição humana, ou mesmo atribuem "causas" psicológicas para situações que são derivadas das condições de desigualdades sociais, econômicas, culturais e/ou políticas. Para além da compreensão dessa naturalização, parece ser também importante chamar a atenção para o fato de isso não gerar um sentimento de indignação, que deveria ser forte o suficiente para impedir que tais situações voltassem a acontecer.

[...] todos nos adaptamos à vida em uma sociedade que, pelos padrões de nossos avós ou pais - e até pelos padrões de nossa juventude, para os que têm a minha idade -, é incivilizada. Acostumamo-nos com ela. Não quero dizer que não conseguimos mais ficar chocados com esse ou aquele de seus exemplos. Ao contrário, ficar chocado periodicamente por algo invulgarmente terrível é parte da experiência. Ajuda a ocultar o quanto nos habituamos à normalidade daquilo que nossos pais - os meus com certeza - teriam considerado vida em condições desumanas. (Hobsbawm, 1998, p. 268).

Essa certa "habituação" diante do que não deveria ser admissível e, muito menos, tolerável tem afrontado e desrespeitado a vida e a dignidade humanas. "O pior é que passamos a nos habituar ao desumano. Aprendemos a tolerar o intolerável" (Hobsbawm, 1998, p. 279). Isso suscita um debate necessário no campo da ética das ações e das práticas humanas que acontecem nos contextos mais variados. Essa habituação gera, ao mesmo tempo, um conformismo que coloca em cheque os valores e os princípios norteadores do que é chamado de humanamente digno.

Na mesma perspectiva de refletir sobre a vida cotidiana e suas dimensões éticas, outros autores apontam o caráter das rápidas mudanças presentes na vida moderna e seus impactos para a dinâmica das relações humanas, no sentido disso fragilizar os princípios norteadores do agir e interagir coletivos, em diferentes situações. As seguranças a respeito, por exemplo, das diferenças entre bem e mal, certo e errado, parecem esvair-se diante da volatilidade e esvaziamento de sentidos dos valores e atitudes na vida cotidiana. Parece criar-se, na sociedade moderna, uma espécie de zona de conflito e tensão, em que se torna cada vez mais preocupante

[...] a transformação da experiência da vida cotidiana, com a introdução, nos lares e mesmo na vida íntima, de uma tecnologia sempre em mudança. Tem-se que mudar hábitos, ideias, credos - e reaprender praticamente tudo três vezes na vida. Quanto tempo se consegue resistir? Quantas vezes podem as pessoas mudar de atitude na vida? Quantas vezes podem as pessoas mudar de profissão? Quantas vezes podem assumir novas orientações? Homens e mulheres sentem que estão perdendo terreno. (Heller, 1999, p. 19)

Nesse sentido, Heller (1999) aponta a condição paradoxal da modernidade na sociedade atual, sendo percebida tanto como possibilidade como uma espécie de ônus. De um lado, potencializa e incentiva desenvolvimentos e variações na vida cotidiana, seja no âmbito íntimo ou no público e, para isso, gera como subproduto dificuldades de adaptação por parte das pessoas. No plano político-social, as formas de desenvolvimento expressam-se pelos diferentes níveis e fóruns de participação e representação social e política criados, como é o caso das instâncias dos conselhos (de gestão, de controle social, de planos de ação, etc.). Entretanto, o paradoxo disso surge, por exemplo, quando as pessoas

[...] têm pouca clareza dos resultados de suas ações. Talvez estejam conscientes das suas responsabilidades diante das gerações futuras, mas apenas em termos abstratos. Dificilmente podem imaginar a vida dessas gerações. No mundo pré-moderno todos podiam imaginar como seus netos viveriam e o que fariam. Hoje, nenhum de nós sabe grande coisa sobre os netos. Viver na incerteza é traumático. Viver na incerteza de significados e de valores é ainda mais. [...] O trauma moderno não é um acontecimento, mas um estado de coisas, pois é contínuo. (Heller, 1999, p. 21).

Em entrevista a um jornalista italiano, às vésperas do século XXI, Hobsbawm (2000), interpelado a respeito do impacto das mudanças de vida hoje, quando comparadas aos antepassados, traz reflexões sobre se as pessoas seriam, na atualidade, mais felizes. Esse historiador argumenta que, mesmo que tenha existido uma relativa melhoria na vida das pessoas, em parte traduzida por aumento na renda ou ampliação de acesso aos divertimentos ou lazer, isso "não assegura, de modo necessário ou automático, um sentimento de realização ou satisfação" (Hobsbawm, 2000, p. 127). Destaca, ainda, que uma das características de sociedades globalizadas, como a nossa, é o decréscimo dos valores coletivos - e, poderíamos aqui dizer, comunitários - enquanto cada vez mais a sociedade valorizar características individualistas, que podem, por exemplo, ser identificadas quando é difícil para alguém que obteve êxito deixar de se comparar com a riqueza de outros (Hobsbawm, 2000). Esses aspectos apontam para alguns princípios que se relacionam às propostas de intervenção comunitária, no sentido de serem criadas e fortalecidas redes mais solidárias e cooperativas entre as pessoas e, para isso, os valores comunitários e de solidariedade constituem um eixo central.

Tendo essas preocupações ligadas às incertezas vividas no cotidiano e que podem refletir-se na prática dos trabalhos de intervenção comunitária, é que se busca, neste artigo, trazer uma discussão da perspectiva ética. Para isso pretende-se discorrer sobre os dilemas e desafios éticos que estão presentes quando da realização de tais práticas, destacando-se as tensões e interfaces entre o processo de investigação e o de intervenção no campo comunitário. Serão apresentados os desafios e dilemas relativos às exigências metodológicas e de produção de conhecimento e relativos à proximidade ou distanciamento da intervenção psicossocial, no sentido de captar os processos de participação e conscientização. Ao final, é feita uma reflexão a respeito da congruência metodológica e política entre intervenção e investigação em comunidade, adotando-se a perspectiva da Psicologia Social Comunitária Latino-americana.

 

Bases epistemológicas das práticas psicossociais em comunidade

Buscando analisar as relações entre o processo de investigação e o da práxis no campo da intervenção psicossocial em comunidade, propõe-se tomar como ponto de partida, para uma primeira reflexão, alguns questionamentos que foram sistematizados por Ignácio Martín-Baró (1987) ao pretender analisar criticamente a práxis do(a) psicólogo(a) em comunidade.

A partir da perspectiva da psicologia social comunitária e da libertação (Dussel, 2002; Guzzo, 2010; Freitas, 2010; Flores Osorio, 2011; Gaborit, 2011a e 2011b), Martín-Baró (1998) tece críticas a respeito do lugar e compromisso assumidos por esse profissional ao atuar e inserir-se nas dinâmicas comunitárias, cuja prática, em sua opinião, deveria contribuir para a transformação social e libertação das formas de opressão e exploração na vida cotidiana. Três são as perguntas centrais que devem, então, ser feitas, dentro dessa perspectiva, quais sejam: a) Como sabemos que o conhecimento da nossa área, ou seja, o conhecimento psicológico, possui verdades dirigidas à realidade concreta das comunidades? b) Quais são as nossas especificidades históricas e que aspectos são cruciais para orientar a nossa prática? c) Que "fazer psicossocial" tem tido a Psicologia em relação aos problemas concretos vividos por nossa população?

Essas questões referem-se a eixos colocados por Martin-Baró (1987; 1998) que contribuem para que se pense nas dimensões que são importantes para os trabalhos de intervenção, assim como para a pesquisa no campo da psicologia social comunitária. A primeira pergunta refere-se a uma questão de ordem epistemológica que pode ser traduzida em: que conhecimentos (em nossa profissão) temos produzido e como concebemos o que é psicológico no contexto das relações comunitárias? A segunda questão relaciona-se às categorias conceituais relevantes para se compreender a realidade psicossocial que existe na América Latina e no Brasil. Isso se expressa em preocupações quanto à vida cotidiana de nossa gente e à rede de relações comunitárias existentes. A terceira coloca a reflexão sobre a práxis político-profissional ao indagar sobre o "fazer psicossocial" e o tipo de compromisso que o nosso trabalho possui e tem assumido, indicando a favor de quem e com que princípios tem se guiado. Tomando esses questionamentos como referencial, pretende-se, assim, tecer algumas reflexões sobre as práticas psicossociais em comunidade, destacando-se as (in)coerências entre o fazer e o planejar tais práticas, com vistas a criar resistências às formas de injustiça e indignação, ao mesmo tempo em que possa ser reafirmada a participação e solidariedade na vida cotidiana.

 

Pesquisa e intervenção nas práticas comunitárias

Falar a respeito das relações entre investigação e intervenção dentro das práticas comunitárias significa, também, refletir sobre os cuidados éticos que devem estar presentes quando da realização desses trabalhos. Considerando-se o contexto das relações comunitárias, pode-se dizer que emergem duas preocupações básicas:

1. uma, se a investigação deveria e poderia conduzir a práticas comprometidas com a construção de uma vida mais digna para as pessoas;

2. outra, se a intervenção deveria e poderia contribuir para a produção de conhecimentos que estivessem implicados com a mudança das condições responsáveis pela situação desumana em que as pessoas vivem.

Que a prática deve conduzir a conhecimentos, todos nós concordamos. O que se coloca, aqui, é indagar se podem (e devem) ser conhecimentos que levem à mudança. Equivale a ter a mesma preocupação colocada no primeiro item, somente ao revés: Em outras palavras, podendo levar à transformação, deve-se então perguntar: para quem? A favor do quê? E por quê? Em continuação, e tendo a preocupação de compreender a relação pesquisa-intervenção, deveríamos refletir sobre: a) O grau de coerência que há entre a maneira "como se vê a realidade concreta" (que pressupostos ontológicos nos guiam) e a maneira "como se age diante dela" (recursos epistemológicos adotados). Isso pode ser traduzido em termos de se há coerência (ou incoerência) entre a cosmovisão que nos guia ao olharmos e selecionarmos a realidade com a maneira como atuamos nessa realidade e problemas selecionados. b) As estratégias que poderiam ser utilizadas para fortalecer redes mínimas de solidariedade e união dentro das relações comunitárias.

Nessa busca de compreensão sobre a (in)coerência epistemológico-ontológica e sobre as estratégias de construção de solidariedade, inúmeros são os desafios e dilemas éticos com os quais nos deparamos durante as práticas psicossociais em comunidade (Montero, 2003; Martín-Baró, 1987; Gaborit, 2011a, 2011b; Guzzo, 2010; Freitas, 2002, 2003a, 2003b, 2005, 2006). Entre eles podem ser apontadas duas categorias, intimamente interligadas entre si, que são: uma, relativa às exigências metodológicas e à produção de conhecimentos que se referem, diretamente, à realidade na qual o pesquisador-trabalhador comunitário atua; outra, relacionada ao que se denomina, aqui, sensibilidade cotidiana e histórica. Essa última categoria se expressa em dois desafios a serem vencidos. O primeiro é relativo a como capturar e compreender os sutis processos de participação e conscientização, no cotidiano das redes comunitárias, para que se possa ter certeza de que a intervenção comunitária está avançando. O segundo refere-se ao que se tem de vencer para dizer que acontece essa sensibilidade e liga-se à necessidade de analisar se o trabalho comunitário que está sendo desenvolvido, ao avançar, se mantém eticamente fiel aos princípios que o orientaram. Esses dois desafios, intrinsecamente interligados e dependentes, apresentam-se de modo contínuo e a cada etapa do trabalho comunitário, exigindo muitas vezes aquilo que Lane (1986) denominava "paciência histórica".

 

Exigências metodológicas e epistemológicas à práxis em comunidade

Com a proposta de discutir o significado e os conteúdos da intervenção e da investigação dentro dos trabalhos comunitários, pretende-se aqui uma reflexão sobre as relações entre pesquisa/intervenção e os diferentes tipos de conhecimento produzidos, assim como entre o tipo de compromisso assumido e a prática realizada dentro dos projetos comunitários. Partiremos, assim, dos desafios e dilemas colocados à prática dos trabalhos em comunidade expressados na pergunta: Quais são as exigências metodológicas e de produção de conhecimento colocadas a profissionais, sejam pesquisadores(as) e/ou trabalhadores(as) comunitários?

Independentemente de quais sejam os objetivos e propostas específicas de cada trabalho comunitário, os profissionais envolvidos enfrentam desafios em função das características dos programas/projetos comunitários que eles desenvolvem, relacionadas às complexas problemáticas com as quais trabalham e ao grau de envolvimento que lhes é exigido. Enfrentam, assim, diferentes dilemas: a) os mais práticos e operacionais: como fazer o trabalho, como envolver e agregar mais pessoas, como tornar o trabalho de fato eficaz e eficiente nas atividades, entre tantos outros; b) os mais "existenciais" e epistemológicos, materializados em indagações como: estão sendo respeitadas as necessidades e interesses da população? Os encaminhamentos/alternativas escolhidos são os melhores para a coletividade/comunidade? Estamos no caminho certo?

Essas são dimensões psicossociais que atravessam as práticas em comunidade e que acompanham os vários trabalhadores comunitários, constituindo-se em fatores que podem representar entraves e pontos de inflexão para a realização das práticas psicossociais em comunidade. São aspectos que interferem, seja para a (des)continuidade do trabalho, seja para a explicitação (ou "abrandamento") das perspectivas assumidas, seja para a (des)construção dos projetos político-sociais presentes em tais práticas. Dessa forma, enfocar esses dilemas, quando da realização dos trabalhos comunitários, pode contribuir para que sejam encontrados caminhos para o fortalecimento da coerência ético-política dessas propostas de ação. Assim, os aspectos ou condições relativas às exigências metodológicas e epistemológicas têm importância e produzem influências que podem ser facilitadoras ou dificultadoras do desenvolvimento das práticas psicossociais em comunidade.

Na prática dos trabalhos comunitários, encontram-se obstáculos e dúvidas relativas a dois aspectos principais: a) como captar e compreender os sentidos e significados que as pessoas atribuem à sua própria condição de vida; e (b) como explicar e compreender a vida dessas pessoas identificando as repercussões psicossociais no seu cotidiano (Freitas, 2002; 2005). No primeiro aspecto, detectar e compreender os sentidos e significados que as pessoas atribuem a si mesmas e às suas próprias condições de vida - seja como favelados, crianças de rua, sub-moradores, idosos, mulheres violentadas, aidéticos, soro-positivos, excluídos, entre tantos outros desvalorizados e tornados invisíveis sociais. Significa entender como se percebem e como se sentem, na condição de excluídos e oprimidos e, também, como alvo dos nossos trabalhos comunitários. Significa, em outras palavras, empreender esforços para captar e compreender - de uma maneira sensível e humana - a subjetividade dessas pessoas, com a quais nossas práticas deveriam estar comprometidas.

No segundo aspecto e como um contraponto ao primeiro, aparece a seguinte dimensão: como nós - os profissionais e investigadores desses processos psicossociais imbricados nas redes comunitárias - explicamos essas condições de vida e de sobrevivência psicossocial dessas pessoas? Que voz e que espaço damos a esses atores sociais, dentro de nossos trabalhos e investigações, e como somos fiéis àquilo que eles vivem e sentem? Que tipo de impacto isso cria nas práticas que desenvolvemos? Enfim, significa perguntar se melhoramos (ou pioramos) nossa sensibilidade para com os problemas sociais que afetam essas pessoas em seu cotidiano, ou seja, que "radiografia" da realidade, que seja fiel, conseguimos construir? Essas são questões que têm nos acompanhado no desenvolvimento das práticas comunitárias, em especial, quando assumimos um compromisso com os setores desprivilegiados e intentamos fazer um trabalho voltado para transformações sociais (Freitas, 2005, 2006; Martín-Baró, 1987, 1998; Guzzo, 2010).

Se pensarmos, por exemplo, nas crianças e adolescentes em situações de risco, na violência urbana e doméstica sofrida pelas pessoas, no aviltamento da condição humana com a precarização do trabalho, na exploração nas relações cotidianas e na profissionalização do trabalho do sexo, na humilhação das pessoas mais velhas e incapacitadas para sobreviverem e não perderem seus empregos, enfim, nos inúmeros personagens que intentam sobreviver e manter suas redes de solidariedade, poderíamos - referenciados a essas pessoas que possuem história, trajetória e enraizamento psicossocial - fazer as seguintes indagações: a) Como essas pessoas se sentem em suas vidas e em seu cotidiano? b) Sentem-se com maior (ou menor) perspectiva de futuro e melhoria? c) Sentem-se já "marcadas" por certa dose de tragédia cotidiana e acreditam haver alternativas de superação?

Inúmeras são as "tragédias cotidianas" com as quais nos deparamos cotidianamente, por exemplo: meninas adolescentes que se tornam mães antes mesmo de terem terminado suas possibilidades como crianças ou adolescentes. A gravidez em mulheres adolescentes e pobres congrega um paradoxo e certa tragédia, na medida em que faz, de um lado, essas jovens serem obrigadas a perderem sua dimensão de crianças e adolescentes, ao mesmo tempo em que essa condição contribui para perpetuar sua condição de pobreza e, talvez, até torná-la mais severa e cruel. Encontramos, também, "tragédias cotidianas" na desvalorização das pessoas que, em idade avançada, perdem seus trabalhos, o que afeta, inclusive, suas relações afetivo-familiares, antes estáveis, mesmo se recebiam baixos salários, mas que ainda eram vistas como "bem colocadas" na estrutura de empregos e socialmente "reconhecidas". O envelhecimento, ao lado da desvalorização e desqualificação, cria um processo de desenraizamento psicossocial, de negação da história psicossocial e de anulação de uma identidade construída e incorporada em décadas na vida das pessoas. Esse processo, por sua vez, faz com que a pessoa seja vista, em princípio, mediante a negação da sua própria condição: não é mais vista como a "trabalhadora tal", mas como aposentada ou como velha (em oposição ao jovem, bela e forte) ou como "menos" e incapaz (Freitas, 2002; 2005). Vários são os exemplos dos efeitos "trágicos" no cotidiano, envolvendo homens, mulheres e crianças, em diferentes situações e relações de aviltamento de sua dignidade e de sua condição de humanidade.

Nesse momento, cabe-nos então indagar: A condição e situação em que essas pessoas vivem, que significado psicossocial tem para elas? Como o pesquisador-profissional apreende esses "novos" sentidos de vida para essas pessoas e como os expressa nas diferentes etapas do trabalho comunitário, de tal maneira que seja fiel àquilo que elas vivem e sentem em seu dia a dia?

 

Considerações éticas no fazer psicossocial

Essas são questões que remetem à ética dentro da investigação e das práticas comunitárias. Considerar as determinações estruturais e conjunturais evita que se cometa o erro de assumir explicações baseadas, precipuamente, nos aspectos individuais e internos das pessoas como responsáveis pelos mais diferentes problemas. Pode-se dizer que negligenciar a visão de totalidade histórica e social, deixando de identificar os fatores concretos que mantêm as condições de precarização da vida e das relações humanas, contribui para o aparecimento de explicações baseadas na (in)capacidade do indivíduo, (in)competência no trato interpessoal, (não) habilidades para o enfrentamento das dificuldades e em características pessoais, todas sendo consideradas como elementos responsáveis para o sucesso ou para o fracasso, assim como para a (in)aptidão em fazer determinadas atividades.

Visões dessa natureza imprimem, também, um caráter de "congelamento" da história e do desenvolvimento (superação) humano, presentificando o momento em foco e gerando certa posição fatalista e cristalizada (Freitas, 2005). Essa cristalização, por sua vez, aparece entre "aquilo que é possível" e "aquilo que é aceitável/esperado em uma dada condição", seja essa condição etária ou geracional (oposição entre "velhos" × "novos"), seja de gênero (confrontos nas dimensões homens × mulheres), seja condição educacional (a perversa hierarquização entre "cultos" e "não cultos" definidos por conteúdos biológicos do desenvolvimento humano), entre outras.

Com isso, mesmo sem intenção, o profissional pode ser um personagem que limita o aparecimento de novos e diferentes comportamentos ou características naquelas pessoas ou dinâmica comunitária (alvo de sua ação), considerando-as como "não sendo mais capaz de...". Presencia-se, por exemplo, o mesmo processo em relação aos jovens e às crianças, agora vistos como os que "ainda não sabem ou não completaram seu "perfeito" desenvolvimento". O mesmo se dá para a condição da mulher, que passa a ser considerada como "mais frágil ou menos habilidosa" para lidar com os problemas concretos e "práticos" da vida. A mesma lógica explicativa também se dirige aos que não estudaram nem se alfabetizaram, sendo vistos como "menos cultos". O mesmo aplica-se àqueles que não se "capacitaram" em alguma prática profissional. Enfim, estende-se para os que são alvo de alguma forma de preconceito e/ou escapam aos parâmetros considerados "normais" na sociedade, sejam esses parâmetros econômicos, sociais, familiares, etários, de gênero, de escolaridade, de moradia, de etnia, físicos, entre outros. Em todas essas situações e processos verifica-se que esse mesmo perverso mecanismo psicologizante acontece. Como bem assinala Chauí (1980), a conivência para com a continuidade desse mecanismo significa, em última análise, que se confere legitimidade às práticas de opressão e de exclusão que são dirigidas, explícita ou implicitamente, a essas pessoas, grupos e comunidades que são vistas como "menos", e que fogem a esses parâmetros de "normalização".

Além disso, esse mecanismo revela também alguns aspectos epistemológicos no desenvolvimento das investigações e intervenções que produzem impactos psicossociais importantes na rede de relações da vida cotidiana. Isso porque acaba revelando o tipo de concepção de mundo e de homem que estaria guiando os trabalhos comunitários. Tais aspectos epistemológicos indicam que estaria havendo:

1. Certa cristalização na classificação das pessoas e do seu "lugar social", situando-as dentro do aceitável ou não aceitável, a partir de categorias comportamentais ou atitudinais que enfatizam aspectos pessoais, em detrimento da construção histórico-social do indivíduo. Encontramos diversas classificações e tipologias sobre "jovens", "adultos", "velhos", assim como sobre os que têm melhor e maior "perfomance produtiva".

2. Um "descarte" ou eliminação daquele que se distancia da classificação prescrita, justificado por ser "pouco significativo", ter "pouco sentido heurístico", ou, ainda, ter "baixa representatividade", em especial se forem considerados os cânones e critérios da investigação científica, em especial quantitativa, mesmo que dentro dos programas e propostas comunitárias. Como exemplos, temos os grupos de idosos ativos e participantes cujas características de participação faz com que estejam fora da visão pré-estabelecida de que seriam pessoas dependentes e menos críticas. Por causa disso, deixam de ser investigados e são vistos como "atípicos" e, portanto, deixam de ser incluídos em grupos de trabalhos comunitários. Na verdade, deixar de compreendê-los é perder a oportunidade de descobrir os caminhos que eles adotam para (re)criar novas estratégias de melhoria de vida e resolução de seus conflitos e tensões em seu cotidiano, mesmo que não sejam "representativos" (Gaborit, 2001b; Martín-Baró, 1987, 1989; Montero, 1994; Freitas, 2002, 2006). Outros exemplos poderiam ser as comunidades e bairros localizados em lugares altamente perigosos, que, superando as expectativas "normatizantes", apresentam baixos índices de violência; ou grupos de mães adolescentes que, apesar de terem sido já mães muito jovens não consideram essa condição (maternidade na adolescência) maléfica ou prejudicial (Freitas, 2005; 2010).

3. Uma busca por "encaixes taxonômicos" dos fenômenos observados ou encontrados na dinâmica comunitária em que as categorias teóricas e as definições já existiriam a priori e, portanto, seriam inquestionáveis. Na verdade, a realidade social é maior do que o nosso olhar de investigadores consegue apreender. Em outras palavras, significa que a realidade ultrapassa nosso objeto e nossos instrumentos que pretendem captá-la (Martín-Baró, 1987; 1998). Admitir isso é imprescindível para iniciarmos uma inversão epistemológico-ontológica e para explicitarmos a serviço de que ideologia nossa produção científica está (Martín-Baró, 1987; 1989).

4. Um frequente fatalismo, que impede a percepção de situações diferentes e possibilidades de mudança no cotidiano (Guzzo, 2011; Martín-Baró, 1987; Montero, 2003). Congela-se a história social e o momento atual se cristaliza, constituindo-se em referência padrão (ou quase universal) para aquela condição ou situação grupal/comunitária. A dimensão da mudança social coloca-se de modo distante na ação dos profissionais envolvidos, como se fosse retirada do homem a sua possibilidade e condição como produto e produtor da sua própria história individual e coletiva. Isso leva ao círculo de certa neutralidade e do não comprometimento com a realidade, legitimada pela crença de que não pode ser alterado o seu curso "natural".

Diante dessas considerações, pode-se afirmar que mesmo que os pesquisadores e trabalhadores sociais se envolvam e se comprometam com a vida daqueles com os quais trabalham, isso por si só não é suficiente para a construção de práticas comunitárias que possam contribuir para mudanças e melhorias na vida das pessoas. Isso porque o referencial epistemológico que possuem - dependendo de qual seja -, pode não permitir compreender a realidade de maneira a superar as condições de opressão e exclusão em que vivem os indivíduos no seu cotidiano.

 

Intervenção e investigação: relações e conhecimentos

Ao se falar de conhecimentos e de práticas, tomando como referência as preocupações éticas no fazer psicossocial em comunidade, deve-se considerar duas dimensões interligadas: 1. uma relativa às relações que se travam nessa dinâmica intervenção-investigação; e 2. outra ligada à compreensão que temos da nossa prática e produção de conhecimento no campo das práticas psicossociais comunitárias.

Que relações há ou são possíveis entre a produção do conhecimento e a intervenção psicossocial? O que essas relações significam e o que podem gerar como resultados? Podemos considerar três possibilidades derivadas do tipo de relação estabelecida entre o alvo das ações em comunidade e o profissional/investigador, a saber:

1a. Se entre o profissional/investigador e a comunidade se estabelece uma relação de fato dialética, a produção de conhecimento apresenta-se com caráter mais qualitativo e orientado pela realidade concreta (Freitas, 2005, 2006; Montero, 2003). Na intervenção psicossocial, os diferentes sujeitos e a realidade concreta são tomados como matriz de ação e de problematização, valorizando a participação e decisão conjuntas em prol da comunidade.

1b. Se na relação é o pesquisador/profissional quem decide e delimita os conteúdos e as fronteiras do que deve ser feito e investigado na comunidade, a produção de conhecimento caracteriza-se por ser extensa e descritiva, mostrando uma realidade estática, harmônica e generalizável em condições semelhantes. Por sua vez, a intervenção psicossocial caracteriza-se por privilegiar os resultados e o produto da ação; enfatizar os métodos, recursos e instrumentos utilizados, mais do que a compreensão nos processos envolvidos ou construídos, e a comunidade ou grupo-alvo tem importância na medida em que se constitui em fonte dos dados a serem investigados.

1c. Se na relação é a comunidade que determina o foco das atividades, a produção de conhecimento caracteriza-se por ser dependente das peculiaridades de cada grupo ou comunidade em questão. A dimensão da produção de conhecimento dilui-se e há uma ênfase sobre os relatos experienciais e da subjetividade como orientadores do que deve ser feito no trabalho comunitário (Freitas, 2003b). A intervenção psicossocial focaliza-se no caráter da experiência e da subjetividade e a ação coletiva ou grupal fica em segundo plano.

O segundo aspecto refere-se à compreensão que temos a respeito da comunidade e das problemáticas com as quais trabalhamos, seja na perspectiva da pesquisa ou da intervenção. Como concebemos essas problemáticas, grupos e comunidades? Em que enquadre teórico e ontológico os situamos? E, como entendemos o processo de constituição psicossocial desses personagens? Dessas indagações depreendem-se algumas considerações éticas, relacionadas ao fazer psicossocial (prática psicossocial em comunidade) e ao investigar (produção de conhecimentos) em comunidade, que também merecem ser consideradas, quais sejam:

2a. Os temas e problemáticas sociais e comunitárias têm sido cada vez mais incorporados nos programas e currículos universitários. Fortalece-se assim uma agenda social dentro da agenda das investigações científicas, ao lado também das ações do chamado terceiro setor, do empreendedorismo com responsabilidade e do protagonismo social, profissional e juvenil.

2b. Derivado disso, há o fato de que os trabalhos realizados se autoclassificam como "trabalhos comunitários" (ou de intervenção psicossocial, ou práticas comunitárias, ou programas comunitários, entre outros) pelo fato de trabalharem com alguma temática de âmbito social. Classificá-los assim não diferencia o que é trabalho/prática comunitária com características precípuas de produção de conhecimento e/ou estudo e o que é prática/trabalho implicado fundamentalmente com propostas de ação e de intervenção no contexto comunitário dirigidas à transformação.

2c. Muitos desses trabalhos dispõem-se a lidar com temas relativos á pobreza e/ou à exclusão, como se essa escolha, por si só, pudesse significar - e essa é uma ideia falaciosa - uma prática ou intervenção com um alto compromisso social pelo fato de lidar com pobres e excluídos. Observa-se que várias são as práticas de intervenção que defendem a construção/fortalecimento da cidadania, melhoria e mudança social, emancipação ou transformação social como resultado de suas ações. No entanto, observa-se o uso indevido e pouco claro de alguns termos, o que contribui para certa confusão conceitual e epistemológica, revelando um esvaziamento político-teórico. Como exemplo, encontramos nos trabalhos e publicações pouca referência aos significados históricos e políticos de termos como "transformação social", em oposição a "mudança social"; classe social, grupos populares e movimentos sociais ao lado dos termos "cidadania" e "inclusão social"; o termo exclusão como substituto moderno e contemporâneo do termo marginalização, dos anos 1970, não havendo nenhuma análise aprofundada sobre isso.

2d. Há, ainda, a falsa ideia de que a crítica estaria intimamente relacionada a compromisso, ou seja, de que os trabalhos que fazem críticas ao caráter de exploração e opressão da sociedade seriam, devido a isso, trabalhos "comprometidos". Essa ideia de associar compromisso à crítica gera uma desvalorização sobre o papel e importância da prática, da participação e dos projetos políticos dentro dos trabalhos comunitários.

2e. A "aceitação da diferença e da diversidade" aparece na maioria dos trabalhos e projetos comunitários e apresenta-se quase como sinônimo de práticas revolucionárias com alto compromisso com a melhoria de vida. No entanto, há que se destacar ao menos quatro inconsistências a respeito disso. A primeira refere-se ao fato de que as práticas comunitárias - ao "aceitarem o diverso e diferente"- teriam isenção e uma "neutralidade", estando isentas de visões e/ou explicações apriorísticas e, portanto, não teriam ideologia, o que não é real. A segunda ideia é a de que quem se sensibiliza ou mobiliza pela situação do outro, querendo ajudar, é que teria condições de fazer trabalhos comunitários, sobrepujando os aspectos da identificação emocional-afetiva sobre os de formação político-pedagógica no processo de intervenção. A terceira ideia é de que a prática em comunidade seria extremamente útil àquele que seria "aceito e acolhido", antes mesmo das necessidades vividas e sentidas serem identificadas. E, por fim, que não é o fato de que as pessoas possam ser "aceitas e acolhidas" que vai retirá-las da condição de exclusão, marginalidade e/ou opressão. Acreditar nessa relação entre "quanto mais acolhimento" puder existir, "menor seria a exclusão", significa subestimar o peso dos determinantes históricos para essa condição de exclusão/marginalização. Com isso, todos esses aspectos revelam que existe, na verdade, uma legitimação da diferença, embora o discurso seja favorável à busca e transformação de todos em "iguais" porque foram "aceitos e acolhidos" (Gohn, 2001).

2f. Quase todos os trabalhos comunitários, na atualidade, falam em "conscientização" e/ou "ter (ou desenvolver) consciência" nas pessoas a quem o trabalho se destina. O significado atribuído a esse termo assemelha-se à aquisição de conhecimento, informação ou instrução sobre a situação/dinâmica envolvida. De novo, a dimensão do "político" - como uma condição inerente à consciência vista como fenômeno e como processo - aparece subestimada e esvaziada, sendo enfatizados mais os aspectos operacionais e de eficiência do que os da ação como expressão política. O mesmo vai acontecer em relação ao conceito "participação".

Até aqui foram apresentadas algumas reflexões de ordem teórico-epistemológica, assim como sobre implicações éticas e desafios que aparecem nos trabalhos de intervenção psicossocial em comunidade. Para poder falar em "intervenção" ou "práticas comunitárias", é importante fazer uma análise a respeito de alguns aspectos, imbricados entre si que permitem vislumbrar caminhos teórico-práticos dentro de uma congruência epistemológica, contribuindo assim para a implementação de programas e ações comunitárias comprometidas com propostas de emancipação e superação das condições de exploração e opressão. Esses aspectos referem-se a: a) tipo de relação estabelecida entre profissional (agente externo) e comunidade (agente interno); b) finalidades do trabalho proposto e repercussões na elaboração metodológica quanto ao quê fazer; c) foco das ações propostas (indivíduo × rede de relações × ações coletivas); d) explicações dos fenômenos (análise micro × análise macrossocial), permitindo conhecimento sobre os determinantes histórico-sociais; e) sentido atribuído à dimensão do comunitário; projeto político pretendido e dimensões práticas para a construção de tal projeto; f) construção de instrumentos e indicadores que tenham algumas características básicas (retratar a realidade/dinâmica comunitária; explicitar relações não visíveis); g) flexibilidade para captar as diversidades culturais e educacionais; h) sensibilidade para detectar avanços e recuos do trabalho; avaliação sobre os impactos produzidos; i) tradução em materiais pedagógico-políticos para formar novos agentes comunitários.

 

Considerações Finais

Devido à própria história de construção dos trabalhos comunitários, assim como à trajetória de luta e consolidação dessas práticas no cenário político-social latino-americano, considera-se importante explicitar uma condição básica dessas práticas: os trabalhos comunitários, na América Latina, são trabalhos e práticas, por excelência, políticos. Essa condição, em nosso continente, vincula-se estreitamente à possibilidade de transformação social e de superação das condições estruturais e conjunturais responsáveis pela pobreza, sofrimento, desemprego, doenças e formas injustas e indignas de vida social.

Como então não nos distanciarmos da nossa raiz histórica? Um dos aspectos possíveis para garantir isso se localiza no que se pretendeu aqui expor, ou seja, a necessária relação e congruência que deve haver entre o investigar e o fazer, entre a produção de conhecimento e as práticas de intervenção em comunidade. Junte-se a isso também o fato de que tem sido tarefa da Psicologia Social Comunitária em nosso continente buscar maneiras de fazer com que as pessoas, de fato, vivam e existam em seus cotidianos de um modo em que a radicalização da democracia seja o ingrediente fundamental e norteador das ações. Falar disso - de como radicalizar a democracia, no cotidiano simples das pessoas, por meio dos trabalhos comunitários - significa pensar o nosso fazer psicossocial diário dentro, também, de cuidados e compromissos éticos. Significa, em outras palavras, indagar sobre em que medida a vida cotidiana pode transformar-se em uma prática de liberdade (não só individual, mas principalmente coletiva) que contribua para uma mudança e/ou transformação social.

Ao se intentar fazer isso, na rede de relações comunitárias, estaremos lidando com uma trama complexa e importante de interações entre líderes comunitários, representantes e moradores, atravessadas por modos de perceber a vida, o mundo e as interações. A partir disso, inicia-se um vislumbrar do tipo de projeto de comunidade e de sociedade a ser compartilhado. Com isso, divisam-se os caminhos para a construção do projeto político que vai se manifestar cotidianamente nas ações dessas pessoas.

Além disso, há também que se agregar a análise que se faz a respeito das características de nosso mundo contemporâneo, no que concerne aos trabalhos e movimentos sociais e comunitários. Hoje, nem os movimentos sociais, nem os diferentes trabalhos comunitários, nem os mais variados programas de voluntariado ou OnGs, são entidades únicas ou assemelhadas em termos de funcionalidade e vínculo político, visto que não caminham mais na mesma direção em termos de fazerem oposição ou denúncia ao sistema, estado ou governo.

O que presenciamos, hoje, é uma multiplicidade de propostas, com inúmeras redes de solidariedade envolvidas e com os mais distintos significados culturais. Hoje os diversos movimentos, grupos ou mobilizações têm uma variedade de temas e compromissos, apresentam diferentes elementos e dimensões que entram na sua constituição. Trata-se de grupos e dinâmicas comunitárias - maiores ou menores, antigos ou novos, mais articulados ou recém-constituídos, implicados numa ação de grande abrangência ou destinados à resolução de uma situação prática - que reproduzem "partes" da comunidade, que se unem e reclamam por alguma causa, que pode ou não ter duração e continuidade, abrangendo outras esferas da vida pública.

É nessa dinâmica que as propostas dos trabalhos comunitários, dentro do campo da Psicologia Social Comunitária, buscam construir a radicalização da democracia e dar visibilidade e corpo à comunidade, entendida e vivida como um projeto político de sociedade e vida.

Numa sociedade planetária e globalizada, como a que vivemos, os conflitos não desaparecem e se tornam dilemas para a ação coletiva ao revelarem impasses e paradoxos do sistema social. Radicalizar a democracia significa permitir que esses desafios e paradoxos se manifestem, buscando que as tensões permanentes entre eles possam ser reduzidas ou negociadas com o intuito de reduzir a desigualdade e a violência vividas no cotidiano e geradas pela própria sociedade.

Desse modo, nessa perspectiva, a existência de uma sociedade democrática torna-se viável no cotidiano simples das pessoas, se:

a) existir um compromisso ético assumido pelas pessoas e compartilhado em sua vida cotidiana e em todas as ações/relações travadas;

b) houver uma consciência sobre o fato de que existem tensões na vida cotidiana e na rede social;

c) se assumir a necessidade de que sejam encontradas alternativas humanas, justas e dignas para reduzir conflitos "destrutivos".

É nesse âmbito que encontramos o lugar e a tarefa da Psicologia Social Comunitária: dedicar-se à análise e proposição de redes de convivência comunitária na vida cotidiana das pessoas, grupos, movimentos populares e comunidades. O terreno do conflito situa-se na vida cotidiana e nas experiências das pessoas que, em muitas ocasiões, as compartilham ou as divulgam pouco, embora as vivam em grupo e na rede de relações. Detectar isso e o sentido - afetivo, intelectual, profissional e de projetos para ações - que isso tem para as pessoas permite que sejam identificadas as orientações para o agir na vida cotidiana, seja na perspectiva de um projeto individual ou de um coletivo, verificando o quão congruentes entre si e éticas estão as práticas implementadas e as metodologias de intervenção comunitária.

Assim, acredita-se que considerar esses aspectos, quando da inserção e intervenção psicossocial, contribui para que seja possível responder a congruências-incongruências entre o agir e o refletir. Ou seja, ao fato de se a investigação pode conduzir a ações, que estejam implicadas na mesma direção do compromisso social; e se a intervenção pode contribuir para a produção de conhecimentos, que estes sejam socialmente comprometidos e relevantes àquele cotidiano concreto e de preferência coletivo e digno.

 

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Recebido em: 21/08/2014
Aprovado em: 18/09/2015

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