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Revista de Psicologia da UNESP

On-line version ISSN 1984-9044

Rev. Psicol. UNESP vol.18 no.2 Assis July/Dec. 2019

 

ARTIGOS

 

Interações sociais de crianças de três a quatro anos em instituição de educação infantil

 

 

Naomi Stange; Ana Flávia Moreira da Silva; Ana Belén Canseco; Wenlla Lima; Raquel Ferreira Ramos; Meiridiane Domingues de Deus; Fernanda Lopes; Mauro Luís Vieira

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

 

 


RESUMO

Este artigo teve como objetivo analisar as interações sociais entre crianças de três a quatro anos de idade, em uma instituição de educação infantil pública, localizada em uma capital da região sul do Brasil. Utilizaram-se, como enfoque teórico, os pressupostos da teoria de Jean Piaget. Foram realizadas observações com seis crianças, sendo quatro meninas e dois meninos. Destaca-se, como resultados da interação das crianças com as professoras, alternância entre momentos de coação por meio do ajustamento de comportamentos indesejáveis e momentos de demonstrações de carinho e acolhimento. Em relação às interações entre as crianças, percebeu-se a diferença de gênero na escolha das atividades lúdicas e formação de grupos. Salienta-se a importância da observação das interações sociais das crianças na faixa etária dos três a quatro anos como forma de identificar aspectos que possam promover o desenvolvimento infantil saudável.

Palavras-chave: desenvolvimento infantil; interação social; educação infantil.


ABSTRACT

This article aimed to analyze the social interactions between children aged three to four years, in a public early childhood education institution, located in a capital in the southern region of Brazil. We employed Piaget's perspective as theoretical framework to this study. Observations were made with six children, four girls and two boys. We identify in children's interaction with the teachers alternation between coercion for the adjustment of undesirable behaviors and display of affection and welcoming. We noticed gender difference in the choice of recreational activities and groups formation. This study is a important tool to highlight aspects that can promote healthy child development.

Keywords: child development; social interaction; preschool education.


 

 

Introdução

A interação social é concebida como um fenômeno que abrange as relações de convívio entre dois ou mais indivíduos e, em escala ampliada, resulta na vivência humana em sociedade. Nesse contexto, o contato social é fundamentado nas relações sequentes ao diálogo e na influência recíproca entre os sujeitos (Moro, 2000). Tais interações interpessoais são sempre sociais, uma vez que as relações estabelecidas possuem a mediação de outros sujeitos e da realidade material presente em suas vidas. Assim, as interações sociais são, constante e dinamicamente, mantidas e recriadas nas ligações estabelecidas entre os sujeitos (Davis, Silva, & Espósito, 1986).

No livro Biologie et Connaissance, escrito por Piaget no ano de 1967, há uma afirmação de que o desenvolvimento da inteligência ocorre por meio das interações sociais de um indivíduo ao longo do seu desenvolvimento (La Taille, 1992). Para o autor, o homem deve ser compreendido com base nos contextos sociais em que está inserido, visto que é um ser essencialmente social. Assim, visualiza-se a formação de vínculos afetivos entre as crianças como facilitadora do processo de “exploração do meio ambiente e aprendizagem de novos conteúdos” (Bukowski, 2001, citado por Lisboa, 2005, p.30). A amizade, fruto dessas relações sociais, acaba por representar um fator protetivo ao desenvolvimento infantil, o que explana não só a sua importância em si, mas também a de se estudar tais momentos de fortalecimento de vínculo (Lisboa, 2005).

Considerando os quatro estágios de desenvolvimento propostos por Piaget, as crianças de três a quatro anos estariam no segundo estágio, o pré-operatório. Nessa fase são fortalecidas características base para a compreensão da interação social, tais como: a) o desenvolvimento da capacidade simbólica, segundo a qual a criança consegue pensar em algo sem necessariamente vê-lo; b) o egocentrismo, caracterizado pelo pensamento centrado no próprio sujeito; c) a centralização, pela qual a criança consegue perceber apenas um dos aspectos de um objeto ou acontecimento; d) o animismo, que faz com que a criança atribua vida a objetos inanimados e os incapacita de distinguir aparência da realidade (Piaget, 2011). Também é nesse período, em função do aparecimento da linguagem, que se inicia, efetivamente, o processo de socialização, estruturação do pensamento e interiorização das ações. A linguagem, caracterizada por um meio sistemático de combinar palavras, possibilita a comunicação dos indivíduos no meio em que estão inseridos (Sternberg, 2000) e torna viável estabelecer comunicações e trocas entre os indivíduos (Piaget, 2011).

Nesse contexto de desenvolvimento infantil, as creches são responsáveis pela assistência educacional de crianças de zero a seis anos (Moreira & Lordelo, 2002). A importância dessas instituições de educação infantil teve sua origem nas transformações sociais na história recente, como a inserção das mulheres no mercado de trabalho e mudanças nos papéis de gênero e dinâmica da estrutura familiar, o que ressaltou a necessidade de uma assistência alternativa para o cuidado das crianças pequenas. Em consequência, as creches passam a ser uma opção viável de cuidado infantil para familiares (Piccinini et al., 2016), isso porque esses locais prezam pelo enraizamento de relações e habilidades de cooperação, como também são ambientes educativos e seguros, nos quais a criança irá interagir com seus pares e com adultos.

Considerando a relevância de seu papel, a creche constitui-se em um ambiente privilegiado para observação das interações sociais de crianças de três a quatro anos, que é uma fase em que a criança começa a se colocar no lugar do outro e compreende regras, ou seja, habilidades essas que auxiliam na promoção do desenvolvimento da interação social. A utilização da metodologia observacional favorece o conhecimento de variados fenômenos e, principalmente, a observação dos comportamentos das crianças, constituindo uma fonte de informações fundamentais ao entendimento das questões relacionadas ao desenvolvimento infantil (Cole & Cole, 2004). Portanto, a realização de observações em uma creche pode contribuir para o auxílio das práticas e atividades de professores e profissionais no aprimoramento das metodologias de educação utilizadas nessas instituições. Com base nessas premissas, esse artigo teve como objetivo analisar as interações sociais entre crianças de três a quatro anos de idade em uma instituição de educação infantil pública da região sul do Brasil.

 

Método

Este estudo consiste de uma abordagem qualitativa, com delineamento exploratório e descritivo, do tipo observacional. Esse método possibilita captar de modo objetivo comportamentos dos participantes em seu ambiente natural (Cordazzo, Westphal, Tagliari, Vieira, & Oliveira, 2008), além de ser uma fonte de informações para o conhecimento das diferenças individuais dos participantes em situações que não podem ser recriadas em laboratório (Sternberg, 2000).

Participantes e contexto de atuação

Participaram das observações seis crianças com idade entre três e quatro anos, sendo quatro meninas e dois meninos, residentes em uma comunidade de baixa renda, onde se localizava a instituição de educação infantil em que as informações foram coletadas. A escolha de realizar a pesquisa nessa faixa etária ocorreu pela razão de que na fase pré-operatória, segundo Piaget, as crianças desenvolvem a capacidade de apropriação e utilização da linguagem oral, questões importantes para as interações sociais. A creche frequentada caracteriza-se como uma instituição comunitária sem fins lucrativos e de iniciativa própria, localizada em um município da região do sul do Brasil. A instituição possui seis turmas de crianças com idade entre 4 meses a 5 anos e 11 meses. Cada turma possui em média 25 crianças. A opção pela escolha das seis crianças apresentadas neste estudo é justificada pela necessidade das observadoras de analisar as características das interações sociais. Assim, com um número limitado de crianças, seria possível realizar observações mais efetivas dos comportamentos.

Instrumento de coleta de dados

Durante as observações, foi utilizado como modo de registro de experiência um formulário com base nas orientações salientadas por Danna e Matos (1999), que continha os seguintes tópicos: nome do observador(a), dupla de observação, objetivo da observação, local, data, horário de início, horário de término, caracterização do contexto, descrição do sujeito observado, técnica de registro utilizada e registro propriamente dito. Os dados coletados foram compilados por meio da técnica de registro contínuo cursivo, que possibilita coletar e analisar comportamentos e aspectos do ambiente em um dado período ininterrupto de observação (Danna & Matos, 1999). Posteriormente, tais anotações foram organizadas, analisadas e separadas em categorias.

Procedimentos

Inicialmente, foi realizado o contato com a instituição de educação infantil por meio da sua coordenação e direção. Posteriormente, foi agendada uma visita à instituição, a fim de que as observadoras pudessem conhecer a história e dinâmica organizacional da creche, incluindo as regras e condutas a serem seguidas durante as observações.

O grupo de observação foi composto por cinco estudantes do curso de Psicologia de uma instituição Federal do Sul do Brasil. As atividades no local foram realizadas semanalmente, com duplas de observadoras diferentes a cada semana. Para a realização das observações, estruturou-se previamente um planejamento e sistematização das ações previstas (Cordazzo et al., 2008). As informações coletadas e apresentadas neste estudo se referem às observações das interações realizadas apenas pelas seis crianças selecionadas, embora estivessem em um ambiente comum com os outros colegas, no caso, a creche.

O tema das observações foi decidido após a imersão no local pelas observadoras. Finalmente, optou-se pela realização das observações com foco nas interações sociais das crianças durante o período de observação das atividades realizadas na creche. As atividades de observação foram embasadas nos princípios e regras estabelecidos pela instituição de educação infantil. Além disso, todos os procedimentos foram resguardados com base nos princípios éticos da Resolução n. 510/2016 do Ministério da Saúde e, também, foi solicitada autorização institucional à creche para que as atividades fossem realizadas.

Análise dos dados

As informações coletadas foram analisadas conforme a análise de conteúdo de Bardin (2016), que consiste em uma técnica de análise que integra a descrição sistemática e objetiva do conteúdo manifesto para análise e interpretação das comunicações. Os dados brutos foram lidos e organizados, o que constituiu a fase de pré-análise, e, posteriormente, foi realizada a leitura para extração e identificação dos conteúdos temáticos. A constituição do material, submetido à análise (corpus), obedeceu aos critérios de exaustividade, objetividade, representatividade, homogeneidade e pertinência. Após esses procedimentos de preparação e exploração do material, foi realizada a codificação dos conteúdos por meio de agregação das temáticas, constituindo as unidades de registro. Em virtude disso, as informações foram organizadas em três categorias: interação criança-professoras, interação entre pares e brincadeiras solitárias.

 

Resultados

Interação criança-professoras

Essa categoria relaciona-se aos comportamentos motivados pelas crianças junto com suas professoras. Dentre esses, pode-se citar: chamadas de atenção, demonstrações de carinho, auxílio, ensino de novas atividade e brincadeiras.

As crianças ajudavam as professoras a levar os pratos para a mesa do refeitório nos momentos das refeições e, ao terminarem de comer, depositavam os restos alimentares no lixo. As crianças eram ensinadas e lembradas de como se comportar no horário das refeições, bem como a compartilhar o ambiente com os colegas. Uma situação que se destacou nesse meio refere-se à atitude de um dos meninos que, após ser alimentado pela professora “por aviãozinho”, repetiu essa mesma ação da professora com o colega ao seu lado na mesa, de modo a imitar a ação da professora.

Durante o período das observações, constatou-se que as crianças exigiam constantemente a atenção das professoras. Como exemplo disso, cita-se uma das meninas, que foi repreendida várias vezes em função do barulho excessivo que fazia, bem como para que se comportasse melhor. Destacou-se ainda outra menina, que conversou com a professora sobre o seu alimento, brincou com ela e depois deitou em seu colo; e uma outra menina, que solicitou que uma das professoras arrumasse o seu cabelo.

Interação criança-criança

Essa categoria engloba a relação ativa entre duas ou mais crianças, compreendendo atividades como brincar, conversar e brigar. Durante o período das observações, foi possível constatar que as crianças realizaram principalmente atividades como brincar e compartilhar refeições com as professoras e com outras turmas de crianças, com faixa-etárias diferentes, no refeitório da instituição.

As crianças foco das observações, durante essas atividades, demonstraram interesse em interagir com os colegas, com exceção de uma das meninas, que ficou mais centrada nas professoras. Os meninos tenderam a interagir em grupos maiores ou menores e brincavam com vários colegas. Em alguns desses casos de interação nos grupos, foram apresentados comportamentos com características agressivas - como gritar, empurrar e bater nos colegas.

Os meninos se aproximavam dos outros em vários momentos para brincar, situações nas quais pediam algum brinquedo emprestado aos outros colegas e agradeciam ao recebê-lo. Já as meninas tendiam a brincar preponderantemente em duplas e, ocasionalmente, excluíam outras crianças que tentassem brincar com elas, de modo a se afastar ou ignorar as aproximações de terceiros. Como exemplo desse comportamento, registrou-se o fato de uma das meninas que brincava deitada com uma amiga no chão e, quando um colega se aproximou, uma delas reagiu mostrando a língua para ele.

Brincadeiras solitárias

Essa categoria descreve as brincadeiras solitárias realizadas pelas crianças, com o próprio corpo ou com algum brinquedo. Nesses momentos, elas realizaram atividades como lograr brinquedos (bonecas, bolas, blocos entre outros), conversar consigo mesmas e observar as interações entre os outros colegas. Como marco dessa categoria, aponta-se uma das meninas que brincou várias vezes sozinha com um par de óculos, colocando-os e tirando-os, além de percorrer a sala com ele e ignorar os demais colegas ao fazê-lo. Outros comportamentos observados nas crianças ao brincarem sozinhas foram: correr, recrear-se com brinquedos que estavam espalhados pela sala e realizar desenhos. Além disso, algumas meninas brincavam de faz de conta e conversavam com bonecas e brinquedos disponíveis.

 

Discussão

Os estudos realizados em pré-escolas relativos à interação entre professores e crianças afirmam a importância desses profissionais e da qualidade da sua relação e das trocas interativas para o desenvolvimento infantil (Cavalcante, Magalhães & Pontes, 2009; Ramos & Salomão, 2012). A criança é sujeito ativo ao longo de seu desenvolvimento, com escolhas e intenções que o modificam a partir da apropriação de conteúdo apreendidos e a formulação de novas ideias (Oliveira et al., 2015). De acordo com Piaget, a relação entre crianças e adultos possibilita a transmissão de conteúdos culturais, linguísticos, afetivos, educativos e morais importantes para o desenvolvimento infantil. Essas interações sociais estabelecidas contribuirão para a diferenciação entre o ponto de vista da criança, relativo ao egocentrismo, e o das outras pessoas, já que as noções de “eu” e de “outro” são construídas mutuamente (La Taille, 1992; Piaget & Inhelder, 1985). Por isso, além do ambiente familiar, deve haver o encorajamento à interação social em sala de aula, tanto entre adultos e crianças como entre crianças, de modo a resultar na construção grupal de conhecimento, enriquecendo a experiência humana (Davis et al., 1986). Assim, cabe aos professores regular o ambiente escolar e as atividades, de maneira a assegurar o exercício das múltiplas habilidades das crianças (Lima, 2014).

Nesse contexto, as educadoras de uma creche possuem a responsabilidade de cuidar e educar as crianças, juntamente com seus pais e integrantes da família (Cavalcante et al, 2009). Tal afirmação se torna compatível com o ressaltado por Trivellato-Ferreira, Trivellato-Ferreira e Marturano (2016), ao dizer que a creche constitui-se como um ambiente coletivo em que a criança pequena tem a possibilidade de estabelecer uma convivência cotidiana com outras crianças em um contexto extrafamiliar, e, com isso, caracteriza-se como um importante espaço para o engajamento em exercícios e atividades produtivas e desejáveis ao desenvolvimento social, psicológico, físico e emocional das crianças. Dado constatado durante as observações, nas ocasiões em que as crianças observavam os comportamentos e ações das professoras e repetiam com seus colegas, como no exemplo, já citado neste artigo, em que a professora alimentou um menino por meio de “aviãozinho” e ele fez o mesmo com o seu colega.

Para Piaget, as interações sociais, por seu turno, podem ser divididas em duas categorias: coação e cooperação. A primeira diz respeito a uma relação assimétrica, em que há uma figura de autoridade, como pais e professores, que estabelece critérios e regras para controle de comportamentos. Assim, a coação não possui relação com uma tirania exercida pelas pessoas em determinado grupo, mas se torna necessária para uma organização institucional por meio do estabelecimento de normas e regras de conduta (La Taille, 1992). No contexto observado, as professoras emitiram esse comportamento de alerta em relação a regras e atitudes, como na situação em que uma das meninas foi repreendida pelo barulho que fazia na sala, para que pudesse corrigir o seu comportamento. A coação, tal como proposta por Piaget, constitui-se como essencial para a socialização das crianças, para o desenvolvimento de suas habilidades sociais, e é o tipo de relação dominante durante o seu desenvolvimento, visto que elas estão sob os cuidados dos adultos (La Taille, 1992).

A interação entre professores e crianças é estruturante não somente na construção do conhecimento, mas também na área afetiva e dimensão cognitiva (Davis et al., 1986). O estabelecimento de uma relação entre professoras e crianças, pautada não somente na coação, mas também em momentos de acolhimento e carinho, contribui para a assimilação da cooperação como forma de lidar com as interações sociais experienciadas. Essas questões puderam ser observadas na medida em que as crianças solicitavam a atenção das professoras por meio das brincadeiras e também na solicitação de auxílio para se arrumarem ou se alimentarem.

As crianças observadas apresentaram, entre si, o tipo de relação social denominada por Piaget de cooperação. Essa relação consiste em uma relação interindividual entre crianças que contribui para o seu desenvolvimento, visto que se espera que elas realizem atividades, com coordenação de duas ou mais pessoas, que incluam troca de ideias, discussão e controle dos argumentos (La Taille, 1992). Apenas uma das crianças observadas se mostrou aberta em compartilhar os objetos e brinquedos, brincando cooperativamente. Outras crianças, por sua vez, não mostraram preferência em dividir os brinquedos com os colegas, mas brincavam em cooperação quando estavam em duplas.

O brincar, que consiste em uma atividade essencial da infância, é caracterizado pelo prazer e ludicidade e pelo estabelecimento de regras explícitas ou implícitas, o que possibilita às crianças o conhecimento das próprias habilidades e potencialidades, a elaboração de conflitos e a criação de estratégias que contribuem para o entendimento das relações sociais (Cordazzo et al., 2008). Nesse processo, observam-se diferenças entre o brincar de meninos e de meninas, tanto no brinquedo utilizado como no tipo de brincadeira. Essas diferenças perpassam a questão de gênero, não somente na escolha da atividade lúdica, mas também na organização dos grupos que irão participar das brincadeiras, visto que, muitas vezes, meninos e meninas não brincam entre si (Cardon et al., 2008; Pontes, Magalhães, & Martin, 2008). As meninas optaram mais por brincadeiras que privilegiam o faz de conta e estimulem aspectos afetivos do que os meninos (Raymundo, Kuhnen, & Soares, 2010).

Observou-se uma preferência por parte dos meninos por brincadeiras mais motoras, com características agressivas (como atividades envolvendo corrida e contato físico); já as meninas mostraram preferência por brincarem sozinhas - dado que vai ao encontro dos achados de Wanderlind et al (2006). Já um estudo realizado por Lordelo e Carvalho (2006) com crianças na faixa etária entre 2 e 4 anos, constatou que as brincadeiras solitárias tendiam a diminuir com a idade, enquanto as cooperativas aumentaram. Em contrapartida, a pesquisa realizada por Trivellato-Ferreira et al. (2016), com crianças de 3 anos a 3 anos e 10 meses, evidenciou um aumento no tempo tanto das brincadeiras em grupo como das solitárias.

As crianças observadas também se envolveram em brincadeiras em duplas ou grupos com mais crianças, como constatado em um experimento descrito por Lordelo e Carvalho (2006), que descreveu que a organização de grupos maiores pode resultar na formação de subgrupos menores e, também, díades, principalmente quando as crianças são pequenas. Além disso, destacou-se a tendência ao menor engajamento e à aproximação de crianças do mesmo sexo em grandes grupos. No decorrer do desenvolvimento das crianças, há um aumento da complexidade e duração das interações estabelecidas por elas, como também do compartilhamento de brinquedos e brincadeiras em grupo (Bonome-Pontoglio & Maturano, 2010).

A inserção na creche favorece o desenvolvimento da socialização, afetividade e linguagem das crianças. O Ser Social é sintetizado com base em relações equilibradas com os demais. Então, para essa condição, as pessoas envolvidas devem estar em estágios de desenvolvimento próximos entre si - o que influencia nos diferentes graus de socialização (Piaget, 2011). A pré-escola, então, representa um primeiro círculo social, depois da família, no início do crescimento. A relação que as crianças constroem com os professores e demais colegas possibilita a aprendizagem de novos padrões culturais, afetivos e comportamentais, de modo a prepará-los para sua posterior inserção na sociedade, ao mesmo tempo que ainda lhes dispensa o cuidado condizente com as suas idades.

 

Considerações finais

Este artigo teve como objetivo analisar as interações sociais entre crianças de três a quatro anos de idade em uma instituição de educação infantil pública da região sul do Brasil. Destaca-se que a experiência de inserção no ambiente da pré-escola foi algo significativo na formação profissional das observadoras, bem como proporcionou conhecimentos sobre metodologia observacional e, também, sobre aspectos da psicologia do desenvolvimento infantil. O ambiente observado apresentou-se propício para o desenvolvimento, socialização e aprendizado, bem como para a aquisição de habilidades sociais pelas crianças.

Destaca-se a interação social entre as crianças e as professoras, permeada por momentos de coação, por meio da correção de comportamentos indesejáveis, e também, pelas demonstrações de carinho e acolhimento às crianças. Já na interação entre as crianças, percebeu-se a diferença de gênero na escolha das atividades lúdicas e formação de grupos, sendo que as meninas tendiam a brincar sozinhas e formaram duplas com outras crianças. Os meninos interagiam em grupos variados e tiveram comportamentos com características mais agressivas.

Ressalta-se, como limitações do estudo, a realização das observações em períodos específicos, não sendo possível em outros turnos, e atividades realizadas pelas crianças. Outra questão refere-se ao número de crianças, bem como às dificuldades em manter a neutralidade nas observações, em função das especificidades da idade em que as crianças se encontravam: a faixa etária dos 3 três a quatro anos tem como característica maior exploração e questionamento da dinâmica do ambiente em que estão inseridos.

Salienta-se a importância da observação das interações sociais das crianças, na faixa etária estudada, como forma de possibilitar o conhecimento da ocorrência de comportamentos prejudiciais ao desenvolvimento infantil. Destaca-se a pré-escola como importante espaço para o desenvolvimento da afetividade, socialização, aspectos cognitivos e sociais. Assim, esse ambiente deve planejar ações que potencializem as interações sociais das crianças por meio de espaços lúdicos e de atividades de aprendizagem que possibilitem o desenvolvimento infantil saudável.

Sugere-se a realização de estudos com a utilização da metodologia observacional nas diversas interações sociais constituídas pelas crianças nas pré-escolas, seja entre os colegas seja com os professores. Recomenda-se, também, a realização de estudos longitudinais, com foco na observação das interações sociais estabelecidas pela criança no ambiente pré-escolar.

 

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Recebido em: 04/01/2019
Aprovado em: 20/12/2019

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