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Revista do NUFEN
On-line version ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.7 no.1 Belém 2015
Artigo
O discursso do "amor" e da "dependência afetiva" no atendimento às mulheres em situação de violência
The speech "love" and "affective dependence" on call to women in violence situations
El discurso de "amor" y la "dependencia afectiva" de guardia a las mujeres en situación de violencia
Lorena FabeniI; Luanna Tomaz de Souza; Lívia Bezerra Lemos; Maria Cristina Lima Rocha Oliveira
I Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará - UNIFESSPA
Universidade Federal do Pará- UFPA
RESUMO
O presente artigo analisa o discurso da dependência afetiva e em que medida ele interfere nas políticas de enfrentamento à violência cometida contra a mulher. É feito um percurso histórico da evolução legal e uma pesquisa bibliográfica sobre os discursos que muitas vezes tentam justificar o porquê de muitas mulheres não procurarem o sistema de justiça criminal e, muitas vezes, terminam produzindo estigmas sobre às mulheres, o que impossibilita o processo de empoderamento e reconhecimento da cidadania feminina.
Palavras-chave: dependência afetiva, violência contra a mulher, Lei Maria da Penha.
ABSTRACT
This article analyzes the discourse of emotional dependence and to what extent it interferes in the face of political violence committed against women. It made a historical course of legal developments and a literature search on the discourses that often try to justify why many women do not seek the criminal justice system and often end up producing stigmas about women, which makes the process of empowerment and recognition of women's citizenship.
Keywords: emotional dependence, violence against women, Maria da Penha Law.
RESUMEN
En este artículo se analiza el discurso de la dependencia emocional y en qué medida interfiere en la cara de la violencia política contra las mujeres. Se hizo un recorrido histórico de la evolución jurídica y una búsqueda bibliográfica en los discursos que a menudo tratan de justificar por qué muchas mujeres no buscan el sistema de justicia criminal y, a menudo terminan produciendo estigmas acerca de las mujeres, lo que hace que el proceso de revalorización y el reconocimiento de la ciudadanía de las mujeres.
Palabras-clave: dependencia emocional, la violencia contra la mujer, Ley Maria da Penha.
INTRODUÇÃO
Com o advento da Lei Maria da Penha, a Lei 11.340/2006, as violências cometidas contra as mulheres alcançam com grande força o espaço público, em especial aquelas que no âmbito das relações de afeto, a chamada violência conjugal. Amplia-se a rede de serviços, o aparato legal, além dos estudos e pesquisas sobre a temática.
Muitos desses novos olhares interrogam as causas do fenômeno e os problemas do cotidiano dos serviços como o desejo de muitas mulheres em não querer denunciar seus agressores ou prosseguir com algum procedimento já feito. Algumas pessoas passam a apontar para a chamada "dependência afetiva", entendida como um problema clínico no qual o indivíduo mantém um relacionamento amoroso que lhe traz intenso sofrimento, colocando em risco o seu bem-estar físico e emocional (Canaan, 2007).
Algumas políticas públicas têm incorporado essa discussão acerca da dependência afetiva. Todavia, relegar ao "amor" a situação de violência pode servir, muitas vezes para alimentar uma lógica de revitimização e de patologização que coloca a mulher como frágil, doente, irracional em suas decisões ou até responsável pela situação de violência na medida em que não reagiu. O presente artigo visa refletir sobre as contradições desses discursos e seu impacto nas políticas de enfrentamento a violência.
"Quem ama não mata"
A responsabilização do "amor" pelas situações de violência conjugal não é algo novo. Em verdade, a bandeira do combate a "violência contra a mulher" surge, no país, na década de 80, pela ação dos movimentos feministas e de mulheres que denunciavam a impunidade dos crimes que terminavam sem condenação e com a justificativa de que eram cometidos "por amor" ou "em defesa da honra". Em boa parte desses casos, utilizava-se um argumento que ficou conhecido como "legítima defesa da honra", quando se alegava que o homem agiu apenas para proteger sua honra ferida pelo comportamento da mulher, terminando muitos julgamentos numa verdadeira responsabilização desta pela violência (Correa, 1981).
Um caso que se tornou paradigmático, no Brasil, foi o assassinato, em 1976, de Ângela Diniz, socialite brasileira, pelo seu companheiro Raul Fernandes do Amaral Street (chamado de Doca Street). Ângela foi assassinada a tiros após anunciar o desejo de romper o relacionamento de três meses. Ele foi condenado a dois anos de prisão, em 1979, com direito a suspensão condicional da pena (sursis)3 alegando em juízo a tese de legítima defesa da honra. Os movimentos feministas protestaram vigorosamente contra a pena branda cunhando a expressão "quem ama não mata". Em 1981, Doca teve sua pena aumentada para 15 anos (Correa, 1981).
Durante muito tempo a tese da legítima defesa da honra esteve presente nos tribunais, sendo que, na atualidade, ela já não é mais tão corriqueira. Contudo, ainda há uma série teses jurídicas que legitimam as situações de violência conjugal nomeando, muitas vezes, esses crimes de "passionais" e conduzindo a absolvições.
Homicidio duplo. Crime passional. Autoria e materialidade comprovadas. confissão. Legitima defesa nao caracterizada. juri. absolvição. apelação. provimento. decisao e sentencas anuladas. novo julgamento. Tratando-se de duplo homicidio denominado passional praticado por odio, paixao ou ciume e provada a autoria e materialidade e diante da confissao do acusado, nao caracterizada ficou a legitima defesa, dar-se provimento a apelação para anular a decisão dos senhores jurados e a sentença dela oriunda para que o apelado seja submeti do a novo julgamento. (TJ-ES – APR: 13999000204 ES 13999000204, Relator: PAULO NICOLA COPOLILLO, Data de Julgamento: 12/04/2000, SEGUNDA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 10/05/2000).
O Código Penal Brasileiro deixa, todavia, claro no seu artigo 28, inciso I, que a emoção e a paixão não excluem a imputabilidade, ou seja, a culpabilidade do autor nesses casos subsiste, por isso não há como deixarmos de falar de um crime. O que pode acontecer é que esse sentimento se torne patológico, o que levará a um exame pericial para aferir a inimputabilidade1. Segundo Julio Fabbrini Mirabete (2004):
Fala-se em homicídio passional para conceituar o crime praticado por amor, mas a paixão somente informa um homicídio privilegiado quando este for praticado por relevante valor social ou moral ou sob a influência de violenta emoção. A emoção violenta é, às vezes, a exteriorização de outras paixões mais duradouras que se sucedem, se alternam ou se confundem: o ódio, a honra, a ambição. Mas a paixão pode apresentar-se, "e esta é a sua conceituação verdadeiramente científica e exata – como a sistematização de uma ideia que se instala morbidamente no espírito e exige tiranicamente a sua convenção em ato", podendo constituir até uma doença mental (p.69).
Percebe-se que muitos juristas ainda insistem nesse recurso argumentativo para enquadrar tais situações de violência na hipótese de homicídio privilegiado prevista no art. 121, § 1º, do Código Penal: "Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço".
Por outro lado, há numerosas jurisprudências que consideram casos em que o homem mata a companheira por ciúme ou vingança diante do relacionamento amoroso como motivo fútil ou torpe e, consequentemente, homicídio qualificado (art. 121, §2º, I e II)2. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul ao julgar a apelação n.2.546/97 entendeu que: "Caracteriza-se a qualificadora do motivo torpe quando o ciúme extravasa a normalidade a ponto de tornar repugnável à consciência média, por ser propulsionador de vingança ante a recusa da ex-mulher em reconciliar-se".
Demonstra-se então que os problemas no uso do termo "crime passional" que tem o claro pretexto de justificar um ato de violência através de um suposto sentimento amoroso. Este termo minimiza a situação o que já foi apontado por autores como Fernando Capez (2008):
Totalmente inadequado o emprego do termo "amor" ao sentimento que anima o criminoso passional, que não age por motivos elevados nem é propulsionado ao crime pelo amor, mas por sentimentos baixos e selvagens, tais como ódio atroz, o sádico sentimento de posse, o egoísmo desesperado, o espírito vil da vingança. (...) O passionalismo que vai até o homicídio nada tem que ver com o amor (p. 40).
Com o advento da Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015, tais condutas claramente passam a ser enquadradas como feminicídio que ocorreria quando a mulher é morta "por razões da condição de sexo feminino", sendo estas a violência doméstica e familiar e o menosprezo ou discriminação à condição de mulher3.
As mudanças legais, todavia, por si só, não conseguirão alterar uma dinâmica social conivente com a violência de gênero. Autoras como Joan Scott (1989) e Judith Butler (2003) foram paradigmáticas ao pautar uma noção de gênero não de maneira centralizada, coerente e unificada, mas "como constelações dispersas de relações desiguais, discursivamente constituídas em ‘campos de força'sociais".
Parte-se de uma visão foucaultiana que percebe gênero não apenas como uma inscrição cultural de significado num sexo previamente dado, como comumente se define, mas a partir do aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. O género seria assim mais do que a atribuição de significados sobre a diferença biológica, igualmente um meio discursivo, através do qual se constitui a naturalização do sexo ou a natureza dos sexos. Em realidade, o gênero está sempre "se fazendo", nunca é um processo completo, finalizado, mas envolve uma série processos que também precisam ser alterados quando pautamos as desigualdades e violências advindas.
A mulher que não denuncia
A Lei Maria da Penha trouxe grande visibilidade a temática da violência conjugal. A partir dela aumentou-se a pressão sobre as mulheres para que denunciassem as situações de violência. Surgem diversas campanhas voltadas a estimular as mulheres a prestar ocorrências, como "Lá em casa quem manda é o respeito!", promovida pela COPEVID (Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher). Tais campanhas, contudo, depositam, em certo sentido, nas mulheres a responsabilidade pela permanência da situação de violência. A denúncia, que deveria ser vista como um meio, vira um fim em si mesmo (Larrauri, 2008).
Estas cobranças decorrem, dentre outros aspectos, de relatos de pessoas que trabalham na rede de que muitas mulheres decidem não empreender esforços para a punição de seus agressores. Isso alimenta um jogo perverso de atribuição de culpa as mulheres. De acordo com a pesquisa do IPEA (2014), 65,1% da população concorda com a afirmação "Mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar". Isso esvazia por completo todo o projeto voltado a sua proteção, reproduzindo o caldo de cultura em que está imerso e a violência institucional e tem como resultado: um maior distanciamento na relação com as jurisdicionadas, piora nos mecanismos de acesso à Justiça, realimentação da "inferioridade cidadã" feminina, regresso no processo de construção do Estado Democrático de Direito (Brandão, 2015).
Não há como negar, contudo, que haja um grande número de mulheres que ainda não denunciam ou que não prosseguem com suas ocorrências. De acordo com a Pesquisa do DataSenado (2013) revela que 99% das mulheres já ouviram falar da Lei 11.340/2006, mais de 13 milhões e 500 mil mulheres já sofreram algum tipo de agressão, sendo que 14% dessas mulheres ainda sofrem algum tipo de violência. A pesquisa questionou os fatores as levam a não denunciar uma agressão:
A figura mostra como há uma série de empecilhos para que esta mulher denuncie, sendo desarrazoado simplesmente culpabilizá-la por não conseguir superar alguns destes atribuindo-a estereótipos como louca, dependente ou frágil. Segundo Elena Larrauri (2008) há ainda fatores inerentes ao sistema como a desconfiança quanto às declarações da mulher.
Isso foi corroborado pela Relatora Especial de Violência contra as Mulheres das Nações Unidas que aponta, dentre os fatores que dificultam o acesso à justiça pela mulher em situação de violência: o preconceito dos órgãos da justiça e dos juízes e juízas sobre o tema violência de gênero, o medo e as inibições que sofrem as mulheres em suas demandas judiciais e a falta de grupos de promoção poderosos que apoiem as suas demandas de justiça (Mello, 2012). Para Minayo, Abdala e Silveira (2011), não basta à mulher ter consciência de que precisa denunciar, é necessário investir num trabalho de conscientização daqueles/as que devem apoiá-la na sua tentativa de saída da situação de violência.
Muitas vezes a ânsia de punir do sistema penal é tão grande que faz com que se ignore a vontade das mulheres. Segundo Larrauri (2008), o sistema somente trabalha com a lógica do castigo, desqualificando qualquer outra demanda da mulher que não seja punir, como por exemplo, se separar ou até reatar a reação. Ele não sabe lidar com estas demandas, alimentando a ideia da mulher como irracional e justificando a escolha da mulher através de discursos como os da dependência afetiva.
A dependência afetiva como causa do problema
Com o advento da Lei Maria da Penha, surgem inúmeros serviços de retaguarda a mulher como as equipes multidisciplinares, que foram criadas por ela4, ligadas as Varas de Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com profissionais especializados para fornecer subsídios ao juízo e desenvolver trabalhos de orientação, encaminhamento, prevenção e outros voltados para a ofendida, o agressor e os familiares. Além das Varas, passa a existir setores psicossociais em diversos órgãos como delegacias, promotorias especializadas e centros de referência.
Há muita expectativa para que esses profissionais apontem as "causas da violência". Uma das justificativas apontadas para o fato da mulher em situação de violência conjugal não denunciar a agressão ou prosseguir com alguma já feita seria sua suposta dependência afetiva. Zolet (2000) define a dependência afetiva como:
A concessão extrema, desnecessária, permissiva, na qual a pessoa se deixa na mão do outro. Pode ser classificada enquanto personalidade dependente, porque o indivíduo submete-se à subjugação afetiva, faz e reage para não perder o afeto do outro devido a algum medo, falta de autoconfiança, insegurança pessoal (p.54).
A personalidade dependente é considerada um transtorno psicológico, o qual é caracterizado pela necessidade excessiva de ser cuidado, que leva a um comportamento submisso ao medo da separação. A Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamentos - CID-10 (1993) traz as seguintes características:
(a)encorajar ou permitir a outros tomarem a maioria das importantes decisões da vida do outro indivíduo; (b) subordinação de suas próprias necessidades àquelas dos outros dos quais é dependente e aquiescência aos desejos desses; (c) relutância em fazer exigência ainda que razoável às pessoas das quais depende; (d) sentir-se inconfortável ou desamparado quando sozinho por causa de medos exagerados de incapacidade de se autocuidar; (e) preocupações com medos de ser abandonado por uma pessoa com a qual tem um relacionamento íntimo e de ser deixado para cuidar de si próprio; (f) capacidade limitada de tomar decisões cotidiana sem um excesso de conselhos e reasseguramento pelos outros (CID-10, 1993, p.202).
Há hoje também o debate sobre a inclusão no CID (Catálogo internacional de doenças) do "amor patológico", que atualmente é considerado "somente" uma síndrome comportamental. Alguns estudos têm trabalhado na validação de escalas para avaliação do amor patológico criadas em outros países e que se aproximam muito daquelas que identificam a dependência química como forma de identificar os indivíduos "saudáveis" (Berti et al, 2010).
Nestas condições, Sophia et al (2007), afirma que a dependência afetiva é uma patologia apresentada com frequência nas clínicas de psicologia, sendo caracterizada pelo comportamento de cuidado e atenção excessiva com a outra pessoa, e consequentemente ocorre a renúncia dos seus interesses antes valorizados. Existe uma permanência dos relacionamentos amorosos insatisfatórios, mesmo após várias atitudes nocivas para a vida da pessoa e/ou de seus familiares.
Rodrigues e Chalhub (2009), afirmam que a dependência afetiva é fundamentada pela falta de reciprocidade. Essa dependência é gerada por um vínculo malformado com a principal figura de apego na infância, provocando transtornos nos relacionamentos da vida adulta, onde a pessoa procura no outro, o suprimento do afeto inexistente.
Relaciona-se a noção de dependência afetiva a de codependência. Mark (1996) define a codependência como o vício de aprovação e qualquer outro comportamento com o objetivo de conseguir reconhecimento, de maneira que o codependente deixa as atitudes das pessoas afetá-lo, sentindo-se obcecado por controlar a vida da outra pessoa.
Zampieri (2004) apresenta várias características relacionadas ao codependente, tais como, a impulsividade, medo, insegurança, dificuldade em expressar sentimentos, incerteza do futuro, culpa, justificativa para o insucesso, baixa autoestima, ansiedade, vitimização, estresse, indignação, mágoa, depressão, falta de afeto, desvalorização, mau humor e desespero.
A codependência seria assim uma disfunção comportamental na qual o indivíduo perde sua identidade em função de agradar os outros para buscar recompensa, de forma que a pessoa tem dificuldade de entrar em contato com seu próprio mundo interno, passando então a viver para cuidar e controlar o outro. A codependência e o transtorno da personalidade dependente encaminham para a compreensão da dependência afetiva.
A pessoa com dependência afetiva, com personalidade dependente e o codependente vivem uma relação conflituosa, visto que, esses relacionamentos iniciam com uma sensação de bem-estar, no entanto, com o passar do tempo um dos parceiros, sente-se cada vez mais dependente do cuidado e apoio do outro.
Com relação à dependência afetiva e a permanência da violência cometida contra a mulher, Mizuno et al (2010), aponta a dependência afetiva/emocional como uma das causas que mantém a mulher em situação de violência. Já que em muitos casos, ela também sofre de dependência afetiva, a qual foi adquirida na infância resultando em transtornos nos relacionamentos da vida adulta.
Segundo Allen e Allan (2006) a mulher que tem a dependência afetiva não se sente competente com sua estrutura emocional para cuidar de si mesma. Basicamente, perde sua própria identidade.
De acordo com as definições de dependência afetiva, a mulher submetida ao agressor por motivações internas de cunho emocional expressa através de pensamentos/comportamentos de inferioridade, um amor excessivo que ultrapassa o seu próprio bem-estar, de forma que mesmo diante dos abusos sofridos, silencia-se com receio de romper a relação conjugal patológica. A mulher não se reconhece como vítima na relação conflituosa, tampouco consegue reagir a uma situação de violência.
Desta forma, podemos dizer que a dependência afetiva, através da submissão emocional da mulher, faz com que ela busque no parceiro uma forma de suprir a sua carência afetiva. Assim, o sentimento de que precisa do outro para viver, contribuiria para a sujeição da mulher à violência doméstica, pois ela não conseguiria romper o vínculo e/ou denunciar o agressor às autoridades competentes5. A mulher que apresenta dependência afetiva necessitaria de um acompanhamento psicológico diante de seu transtorno. Segundo Sophia et al (2007), o tratamento psicológico só é procurado no período em que o relacionamento termina quando poderia iniciar nos primeiros sintomas.
O EFT6 - Emotinal Freedom Techniques (2004) - Manual de Técnicas de Libertação Emocional, sugere um método capaz de fazer com que as mulheres se desvinculem de suas bagagens emocionais, para que possam seguir suas vidas. O método é baseado na descoberta de que desequilíbrios no sistema energético do corpo têm um efeito profundo na psicologia pessoal do indivíduo. Corrigindo esses desequilíbrios, através de batidas leves em certos pontos do corpo humano, muitas vezes, significaria o caminho para a tomada de consciência e o rompimento da violência conjugal. Além desse método, a psiquiatria indica técnicas de enfrentamento do malestar (que consistiria no enfrentamento das próprias emoções) e técnicas do "Ônus do não" (que consistiria em dizer não em determinadas situações).
Considerações finais
Essa produção discursiva sobre a dependência afetiva ignora muitas vezes as questões de gênero e reforça representações sobre o que Foucault (2005) chamou de "histerização do corpo da mulher". Os discursos sobre dependências e os programas de recuperação podem se relacionar ao que o autor chama de vontade de saber e de verdade. A importância da "verdade" seria para justificar a interdição e definir a loucura. Essas estratégias de normatização das condutas têm nos aspectos relacionados à sexualidade seu lugar privilegiado, difundindo-se "receitas para a vida".
Diversos/as autores/as localizam num ideal de amor os conflitos de violência conjugal como Eluf (2003) e Barros e Machado (2011). Essa dimensão patologizante do problema, muitas vezes culpabiliza a mulher que precisa ter "novas atitudes" para fugir de determinados "padrões de relacionamento". Há uma associação entre as mulheres em situação de violência como "viciadas" em sofrimento e com comportamentos mórbidos e insanos vai ao encontro do perfil da histérica e da masoquista consolidados no século XIX e da justificação científica das diferenças de gênero pela diferença sexual, ignorando as relações de gênero e de poder que se desenvolvem (Procópio, 2007).
Para Costa (1998), o amor deve ser entendido como uma crença emocional e, como toda crença, pode ser mantido, alterado, dispensado, melhorado ou piorado e não deve ser visto como um sentimento absoluto que impedirá o homem ou a mulher de encerrar a relação ou que justifica comportamentos violentos.
O que é se deve é fugir do binômio perverso que coloca a mulher em situação de violência ora no papel de frágil e dependente ora no papel de louca diante de suas escolhas. São muitos e complexos os fatores que levam uma mulher a permanecer em uma relação violenta ou a não procurar o sistema de justiça e, de modo algum, não podendo ser resumidos ao ideal de amor romântico.
A luta dos movimentos feministas e de mulheres para que a violência seja erradicada e para que a mulher seja empoderada10 é essencial para o combate de todas as formas de discriminação, tanto nas leis como nas práticas sociais.
O atendimento à mulher em situação de violência não deve servir para estigmatizá-la, mas deve garantir sua autonomia e efetiva liberdade para tomar as decisões que lhe cabem acerca do exercício dos direitos previstos em lei. Para além de agentes, "bem-intencionados", o que ainda permanece é a priorização da resolução da lide sem que exista, de fato, uma preocupação com uma resposta ao que, efetivamente, se assenta o conflito, isto é, nossa cultura androcêntrica (Brandão, 2015).
Ao fim ao cabo, muitas dessas políticas públicas focam-se somente na solução de conflito individual em detrimento de uma mudança social, ou seja, sem atuar sobre a dimensão de gênero das relações existentes na sociedade, que ainda perpetuam violências e desigualdades. Isso tem sido apontado pelos movimentos que muitas vezes excluídos dos processos decisórios inerentes a tais políticas.
Referências
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Recebido em 06 de agosto de 2015
Aprovado em 01 de maio de 2016
Notas sobre as autoras
Lorena Fabeni: Doutora em Direito pela Universidade Federal do Pará. Diretora da Faculdade de Direito da UNIFESSPA (Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará). Pesquisadora do NEIVA (Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Violência na Amazônia) e do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia.
Luanna Tomaz de Souza: Professora da Universidade Federal do Pará. Doutoranda em Direito (Universidade de Coimbra). Pesquisadora do NEIVA (Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Violência na Amazônia) e do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia.
Lívia Bezerra Lemos: Graduada em Psicologia pela Universidade Tiradentes- UNIT. Trabalha no NASF- Núcleo de Apoio a Saúde da Família, Município de Bom Jesus do Tocantins – Pará. Aluna do curso de Especialização em Educação em Direitos Humanos e Diversidade da Universidade Federal do Pará- UFPA. Email: liviablemos5@hotmail.com.
Maria Cristina Lima Rocha Oliveira: Graduada em Licenciatura Plena em Química pela Universidade Federal do Pará- UFPA. Aluna do curso de Especialização em Educação em Direitos Humanos e Diversidade pela Universidade Federal do Pará- UFPA. Email: cristinarochaoliver@gmail.com
1 Benefício existente no Código Penal que determina a suspensão da pena a partir do cumprimento de requisitos como a reparação do dano (Art. 77).
2 Causa excludente da culpabilidade, onde o autor, ao tempo da ação ou da omissão, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, sendo isento de pena (Art. 26, CP).
3 § 2° Se o homicídio é cometido: I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; II - por motivo fútil; (...) Pena - reclusão, de doze a trinta anos. Art. 121, 2§, VI e § 2º - A, C
4 Art.29 e 30 da Lei Maria da Penha 5 Delegacia da mulher-DEAM, Ministério Público e disque 180.
5 O EFT9- Emotinal Freedom Techniques (2004) - Manual de Técnicas de Libertação Emocional, é um curso para terapeutas, médicos, professores e outra profissões criado pelo clínico Gary Craig.
6 Termo derivado do inglês ‘empowerment'que remete ao desenvolvimento da autonomia das mulheres sobre seus corpos e sua vida.