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Revista do NUFEN
On-line version ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.13 no.3 Belém Sep./Dec. 2021
RELATO DE PESQUISA
Ocupar-se nas chegadas e partidas: afetações e ressonâncias em cuidados paliativos
Work on arrivals and departures: affections and resonances in palliative care
Trabajos sobre llegadas y salidas: afecciones y resonancias en cuidados paliativos
Odair José Mendes Souza Junior 1
Universidade do Estado do Pará, Brasil
RESUMO
Escrever sobre as vivências, afetações e curiosidade sobre o processo da morte e morrer fez sentido após reflexão acerca de como podem se afetar os sujeitos participantes deste percurso, além das ressonâncias que essas vivências trouxeram e trarão para minha vida. Este artigo objetivou cartografar afetações e ressonâncias do ocupar-se nas chegadas e partidas em cuidados paliativos, além de compreender possibilidades para sujeitos envolvidos no processo de ocupar-se nas chegadas e partidas. Através de cartas de chegadas e partidas, juntamente ao que foi denominado "teia conceitual", tornou-se possível chegar aos resultados apresentados no artigo. A pesquisa visou também contribuir com aprendizagem, expansão e aplicação do conhecimento nas áreas de pesquisa Oncológica, Cuidados Paliativos, Cartografia, Terapia Ocupacional com ênfase nas vivências do profissional de terapia ocupacional no cuidado de pessoas em cuidados paliativos oncológicos e eleitos à atenção paliativa.
Palavras-chave: Terapia Ocupacional; Câncer; Cuidados Paliativos; Espiritualidade; Artralgia.
ABSTRACT
Writing about the experiences, affectations and curiosity about the process of death and dying made sense after reflecting on how the subjects participating in this journey can be affected, in addition to the resonances that these experiences brought and will bring to my life. This article aimed to map the affectations and resonances of being busy in palliative care arrivals and departures, in addition to understanding possibilities for subjects involved in the process of being busy in arrivals and departures. Through letters of arrivals and departures, together with what was called "conceptual web", it became possible to reach the results presented in the article. The research also aimed to contribute to learning, expansion and application of knowledge in the areas of Oncology research, Palliative Care, Cartography, Occupational Therapy, with an emphasis on the experiences of occupational therapy professionals in the care of people in oncological palliative care and those elected to palliative care.
Keywords: Occupational therapy; Cancer; Palliative care; Spirituality; Arthralgia.
RESUMEN
Escribir sobre las vivencias, afectaciones y curiosidad sobre el proceso de la muerte y el morir cobró sentido luego de reflexionar sobre cómo los sujetos que participan en este viaje pueden verse afectados, además de las resonancias que estas experiencias trajeron y traerán a mi vida. Este artículo tuvo como objetivo mapear las afectaciones y resonancias del cuidado de llegadas y salidas en cuidados paliativos, además de comprender las posibilidades para los sujetos involucrados en el proceso de cuidado de llegadas y salidas. A través de cartas de llegadas y salidas, junto con lo que se denominó "web conceptual", fue posible llegar a los resultados presentados en el artículo. La investigación también tuvo como objetivo contribuir al aprendizaje, expansión y aplicación del conocimiento en las áreas de investigación en Oncología, Cuidados Paliativos, Cartografía, Terapia Ocupacional con énfasis en las experiencias de los profesionales de la Terapia Ocupacional en el cuidado de personas en cuidados paliativos oncológicos y los elegidos para Cuidados paliativos.
Palabras clave: Terapia ocupacional; Cáncer; Cuidados paliativos; Espiritualidad; Artralgia.
Introdução
Todos os dias é um vai-e-vem/ A vida se repete na estação/ Tem gente que chega pra ficar/ Tem gente que vai pra nunca mais/ Tem gente que vem e quer voltar / Tem gente que vai e quer ficar/ Tem gente que veio só olhar/ Tem gente a sorrir e a chorar/ E assim chegar e partir… (Nascimento & Brant, 1985).
Milton e Brant, ainda que não saibam, compuseram uma música que se encaixaria também como trilha sonora para os meses de pesquisa, vivências e afetações nestes longos e intensos vinte e quatro meses de residência, doze deles exclusivamente nos cuidados paliativos oncológicos, ao decorrer do processo outras trilhas surgirão, afinal, fomos embalados e tocados durante boa parte dessas vivências.
Ao decidir falar sobre as afetações e ressonâncias que emergem através do ocupar-se nas chegadas e partidas em cuidados paliativos, aceitei o desafio não somente de narrador de outras histórias, mas de como eu, enquanto membro de uma equipe de cuidados paliativos e do lugar que ocupo, posso me afetar, cuidar, e participar de um dos momentos únicos da existência humana: despedir-se da vida.
A World Health Organization (2020) conceitua cuidados paliativos como uma abordagem que visa melhorar a qualidade de vida de pacientes (adultos e crianças) que enfrentam problemas associados a doenças que geram risco à vida, assim como de seus familiares. Objetivando a prevenção e alívio de sofrimento, através da identificação precoce, avaliação e tratamento correto da dor e de outros problemas, físicos, psicossociais e espirituais (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2018, online).
Com relação aos cuidados paliativos oncológicos, estes podem ser ofertados a pacientes que estejam em tratamento modificador ou fora de possibilidade de tratamento modificador do curso da doença; Desse modo, sabe-se que a maioria das patologias que ameaçam a continuidade da vida são acompanhadas pela perda da funcionalidade, sendo somadas às profundas alterações físicas, cognitivas, emocionais e espirituais experimentadas pelos pacientes a partir do diagnóstico e até a morte (Minosso; de Souza & de Campos Oliveira, 2016).
Faria e Carlo (2015) afirmam que a atuação do terapeuta ocupacional em cuidados paliativos é uma prática recente o que aponta a importância de pesquisas e publicações com o intuito de promover discussões que enriqueçam e aprimorem técnica e cientificamente a profissão nessa área de atuação e conhecimento.
Possibilidades: O que é possível quando se está vivenciando o processo de despedir-se da vida e quais possibilidades temos dentro do nosso repertório de ocupações que iremos ou poderemos vivenciar nesses momentos? Enquanto Terapeuta Ocupacional procurei iniciar os atendimentos refletindo na essência desses questionamentos e considerando o que as pessoas a quem prestei meus cuidados se permitirão fazer dentro de suas possibilidades.
Othero (2012) destaca como principais objetivos do Terapeuta ocupacional, no manual da Academia Nacional de Cuidados Paliativos:
Manutenção das atividades significativas para o doente e sua família; Promoção de estímulos sensoriais e cognitivos para enriquecimento do cotidiano; Orientação e realização de medidas de conforto e controle de outros sintomas; Adaptação e treino de AVD para autonomia e independência; Criação de possibilidades de comunicação, expressão e exercício da criatividade; Criação de espaços de convivência e interação, pautados nas potencialidades dos sujeitos; Apoio, escuta e orientação ao familiar e/ou cuidador. (ANCP, 2012, p.362)
Dentro desse espectro de possibilidades e estratégias proporcionadas pela clínica terapêutica ocupacional, entende-se a importância de acompanhar o ocupar-se das pessoas em cuidados paliativos oncológicos, a fim de contribuir com o favorecimento e engajamento ocupacional durante os processos de chegadas e partidas.
Metodologia
Para a realização da pesquisa, utilizou-se o método cartográfico, de acordo com da Escóssia e Tedesco (2009), para além de uma nomenclatura literal/tradicional, corresponde a uma cartografia social, pois habita "diagramas de relações, enfrentamentos e cruzamentos entre forças, agenciamentos, jogos de verdade, enunciações, jogos de objetivação e subjetivação, produções e estetizações de si mesmo, práticas de resistência e liberdade".
A cartografia é selecionada quando existe a complexidade da/na realidade investigada e o conhecimento não está delimitado na representação da realidade, porém como o íntimo de um processo de construção coletiva, torna-se importante frisar que como método de pesquisa-intervenção a cartografia pressupõe uma orientação do trabalho do pesquisador que não se faz por regras já prontas, nem com objetivos previamente estabelecidos, no entanto, Passos e Barros (2009), elucidam que não se trata de uma ação sem direção, já que cartografar reverte o sentido tradicional de método de modo a não abrir mão da orientação no percurso da pesquisa.
Passos e Kastrup (2013) afirmam que nessa dinâmica, expressam-se manifestações de inconformidade com o instituído, o revelado, que são os analisadores, ou seja, o método cartográfico é analítico e tem por finalidade dar destaque ao relevo que mobiliza a dinâmica instituído-instituinte, firmadora das instituições. Cabe ao analisador desenvolver a análise; ao pesquisador compete a construção de analisadores, em uma abertura que concebe analisar como evidenciar, por meio dos analisadores, o processo de produção histórica das instituições, desnaturalizando-se.
Martines et al. (2013) apontam que a cartografia possibilita o fluir e acompanhamento de paisagens psicossociais, o submergir na geografia das afetações como um caminho de passagem para afetos, intensidades e experiências existentes no contexto. Ademais comunica um devir ontológico e emancipador na medida em que tem direção participativa e inclusiva, potencializando saberes até então excluídos e só se constitui pela transversalidade, onde todos os sujeitos e conhecimentos têm territórios e vivências potencializadores (Sade, Ferraz & Rocha, 2013).
Assim sendo o processo criativo ocorreu através da construção de um diário de campo, com relatos sobre os atendimentos realizados, tendo como objetivo principal tratar acerca do engajamento em ocupações significativas para os participantes da pesquisa.
Os escritos do diário de campo resultaram em cartas, tanto de chegadas quanto de partidas relacionadas as participantes da pesquisa, que foram atreladas ao que se denominou por teia conceitual contendo referências acerca dos assuntos destaques nas cartas que emergiram durante os atendimentos. Com Ametista, surgiram como destaque: dor total, dor social, controle de sintomas, ocupar-se de suas AIVD; dificuldade de exercer seu papel ocupacional enquanto mãe, enquanto com Esmeralda os destaques foram: abandono conjugal; espiritualidade assim como em suas ocupações significativas voltadas a sua funcionalidade e atividades de vida diária.
Participaram da pesquisa duas mulheres adultas na faixa-etária entre trinta e quarenta anos, vivenciando o processo de finitude, em cuidados paliativos oncológicos e sem proposta de tratamento modificador do curso da doença, que serão identificadas por nomes fictícios, tendo em vista a preservação de suas identidades, sendo elas: Ametista e Esmeralda. A pesquisa ocorreu entre os meses de julho a outubro de 2020, na Clínica de Cuidados Paliativos Oncológicos II, no hospital Ophir Loyola no estado do Pará, sob a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa tendo como número do parecer: 4.159.404.
Resultados e Discussão
CARTA DE CHEGADA DE AMETISTA
Ametista e eu iniciamos nossos encontros, meus olhos e ouvidos se fecharam a todo e qualquer estigma que escutei antes de entrar no setting. Esse é o nosso segundo encontro, e o primeiro em que de fato paramos para nos conhecer e iniciar atendimento. Ametista é oriunda daqui da capital Belém, mais precisamente da periferia, bairro da Sacramenta, não tem emprego formal, mulher negra e mãe solo de três crianças e dedica boa parte de sua vida a igreja e ao cuidado dos filhos.
Nesse primeiro momento, me ocupei de observá-la, ouvir, avaliar e investigar suas ocupações de interesse, e seu histórico ocupacional. Ametista me trouxe demandas físicas, de rotina e principalmente emocionais, uma paciente com episódios constantes e persistentes de dor, "minha dor não passa" a frase que fora dita repetidas vezes durante nosso atendimento. Felizmente, nesse atendimento ela sorria, Ametista, já é conhecida por seus gritos de dor. Noto outra similaridade ao de outras mulheres a quem já prestei meus cuidados: Ametista também faz parte da estatística de mulheres abandonadas por seus companheiros durante o tratamento.
Com ela tenho a ligeira impressão de que o vínculo poderá levar mais tempo para ser estabelecido, mas ela tem o próprio tempo, todos temos o nosso, e por enquanto caminharemos até aonde ela permitir. Sua autonomia deve valer, infelizmente, sua independência está prejudicada.
Ametista também, assim como os demais pacientes que atendo, está vivendo um importante e difícil momento em sua vida, o caminhar rumo ao não viver, ao morrer, que são perspectivas diferentes, mas que podem se complementar. Tarefa difícil, árdua, exige coragem tanto de quem caminha, quanto para quem assiste.
Espero ser digno de estar ao seu lado nessa oportunidade que ela me concede, de acompanhar sua finitude.
CARTA DE PARTIDA DE AMETISTA
Quando as pernas deixarem de andar, caminharemos pelas memórias.
Quando as pernas deixarem de andar e os olhos pararem de ver, caminharemos pelas memórias e estas serão nítidas.
Quando as pernas deixarem de andar e os olhos deixarem de ver e os ouvidos deixarem de ouvir, caminharemos pelas memórias e estas serão nítidas e vozes esquecidas contarão tudo de novo (MARQUES, 2012, p. 9).
Ametista, escrevo minha singela carta de despedida sentado aqui no posto da CCPO2, um tanto incrédulo, chateado, porém tentando lidar com o ocorrido.
Nessa última semana, houveram tantas perdas, digo, partidas e até confesso que não contava com o imediatismo da sua. Penso que no fundo nos ocupamos também nesse processo, de alimentar esperanças, tenho me ocupado de alimentar esperanças possíveis de que vocês possam: Ir para casa; de que possam conviver o tempo existente com qualidade de vida junto à família; e que possam ser protagonistas dos seus processos de chegar e partir; ou mesmo de acertar arestas deixadas pelo caminho, se assim sentirem vontade.
Ontem, dia sete de setembro, o dia da partida, sem imaginar que isso aconteceria, me ocupei de estar feliz, de priorizar minha ocupação lazer, de estar cercado das pessoas que amo e de me sentir vivo. Pois agora escrevendo para você, penso reforço que estar vivo é importante, todavia se sentir vivo é necessário! E ontem eu me senti assim. Espero de coração que Ametista tenha experimentado por diversas vezes essa sensação durante sua breve vida.
Ametista deixava claro que queria me viver mais, e acredite: eu também gostaria que houvesse mais dias para você, dias saudáveis e felizes exatamente como você desejava, infelizmente não aconteceu. Pude perceber durante esse processo Ametista se ocupou de tentar, resistir, de suportar, ocupou-se ser mãe, lembro claramente do relato em que ela: "prefiro estar dormindo sob os efeitos da morfina do que lidar com o fato de que meus filhos passam necessidade em casa sem que eu possa fazer absolutamente nada." Eu não me atreveria a fazer qualquer juízo de valor em relação a esse sofrimento, apenas tomei conhecimento e silenciei, mas essa fala ainda ecoa em mim.
Ametista também se ocupou, de acreditar, viver o processo. Nós novamente nos ocupamos de cuidar e tentar fazer o que você pudesse desempenhar seus papeis ocupacionais de forma autônoma e independente até onde fosse possível.
Me despeço hoje, pois não imaginei que nosso último contato seria na última sexta-feira. Me despeço da pessoa querida, que iria realizar as oficinas com os demais pacientes; me despeço da mulher que sempre brincou e me recebeu bem durante as visitas, e que dizia: "Meu sono passa quando converso contigo e isso me faz bem, me deixa animada". Me despeço daquela que acreditava fielmente em sua recuperação. Digo até adeus para Ametista, mulher negra, periférica e mãe solo de três filhos. Espero que seus familiares, e principalmente seus filhos encontrem o conforto necessário.
Daqui, sigo no compromisso do cuidar, e alimentar a esperança no que é possível, e tentando cuidar de todos os outros que virão depois de você.
Bom descanso.
TEIA CONCEITUAL: O COMPROMISSO DO CUIDAR
Muitos justificam seu desejo de estar ao lado de uma pessoa que está morrendo assim: "Quero ser voluntário para ajudar as pessoas a morrer; quero fazer Cuidado Paliativo para ajudar as pessoas a morrer; quero estudar tanatologia para ajudar as pessoas a morrer." Mas é bem o contrário disso. Preste atenção: se você quer ajudar as pessoas a morrer, então vá buscar outra coisa. Vá vender cigarros, álcool, drogas. Vá compartilhar violência e tristeza. Isso ajuda as pessoas a morrer (Arantes, 2016, p.102).
No processo de escrita nascida do cotidiano com Ametista foram possíveis destacar os seguintes pontos: dor total, dor social, controle de sintomas, ocupar-se de suas AIVD e as dificuldade de exercer seu papel ocupacional enquanto mãe. No primeiro momento, percebi que o vínculo Terapêutico Ocupacional poderia levar mais tempo do que eu previa, o que me fez atentar e observar como prosseguiríamos ao decorrer dos atendimentos.
Em nosso início de processo, as fortes dores referidas por Ametista, dificultaram o andamento de algumas intervenções, visto a indisponibilidade devido ao quadro álgico, Lohman, Wilson e Marston (2017) ressaltam que:
Uma parte importante dos cuidados paliativos é o enfrentamento da dor crônica e severa. A dor tem um impacto profundo na qualidade de vida e pode ter consequências físicas, psicológicas e sociais. Ela pode gerar uma reduzida mobilidade e consequente perda de força, a comprometer o sistema imunológico e interferir na capacidade de uma pessoa de comer, concentrar, dormir e interagir com os outros (p. 193).
A dor de Ametista seguiu persistente em seu cotidiano até seus últimos dias, dor física, social, sendo mãe solo, periférica e em condições socioeconômicas precárias. Ametista em seu processo de finitude encontrava outra preocupação além de sua partida iminente, que permeavam sua vulnerabilidade econômica e social juntamente com a de seus filhos, causando mais sofrimento a mesma. Frossard (2018), ressalta que é possível compreender a dor social pela ótica da neurociência como a que é resultante da perda de relações ou rejeições próximas. Sendo a mesma uma experiencia desagradável atrelada ao dano real ou potencial resultantes de rejeição social, exclusão, avaliação social negativa ou perda (Eisenberger, 2012).
Enquanto Terapeuta Ocupacional atuante em cuidados paliativos, é preciso estar atento aos sintomas apresentados pelos pacientes, Costa e Othero (2014), discorrem sobre o controle dos sintomas tal qual a prevenção como uma espécie de "núcleo duro" da assistência em cuidados paliativos, ao relacionar prevenção e controle dos sintomas. Twycross (2000) pontuou que o paciente deve ser auxiliado na realização de seu potencial dentro de suas possibilidades, enfatizando o fazer, objetivando a promoção de autoestima e dignidade, trazendo a compreensão de que manter a autonomia e a independência são aspectos fundamentais quando se fala de reabilitação, sendo assim objetivos importantes na assistência em cuidados paliativos (Gomes & Othero, 2016).
CARTA DE CHEGADA DE ESMERALDA
Todo mundo ama um dia/ Todo mundo chora/ Um dia a gente chega/ E no outro vai embora/ Cada um de nós compõe a sua história/ E cada ser em si/ Carrega o dom de ser capaz/ E ser feliz... (Sater & Teixeira, 1990).
Esmeralda e eu, nos reencontramos na clínica de cuidados paliativos dois- CCPO2 e a primeira impressão de que já havíamos estado juntos em outros momentos foi recíproca e ocupou meus pensamentos. Terei talvez, poucas primeiras impressões sobre esse primeiro encontro e muita curiosidade sobre de que modo vamos nos ocupar nesse processo, e sober como Esmeralda conseguirá manter-se em seu processo de finitude, enquanto eu, buscarei entender seu processo, ouvir acolher tentar conforta-la nesses próximos dias incertos e cheios de informações.
Nascida na cidade de Vigia de Nazaré, aqui no estado do Pará, mulher negra, 38 anos, sem filhos e quem em nosso primeiro atendimento me traz uma enxurrada de informações carregadas de sentimentos:
"Amigos, só Deus e alguns parentes da gente"
"Os amigos se afastam da gente"
"Hoje me sinto satisfeita com as experiências que vivi, se eu pudesse ter uma segunda chance viveria somente para Deus"
Entre essas falas, relatos fortes de abandono, relação fragilizada com a mãe biológica, com amigos, abandono parental, abandono conjugal, e sim, infelizmente Esmeralda entrou para a estatística de mulheres abandonadas por seus companheiros durante o processo de adoecimento e finitude, durante esse primeiro momento me ocupei de conhecer, ouvir, acolher e digerir todas as informações.
De início, busco de imediato, entender que precisarei lembrar sempre que nesse barco sou tripulante, sou contribuinte. Esmeralda comanda seu barco, esse é o seu momento de navegar pelo rio da finitude, do meu lugar enquanto tripulante espero não ser insuficiente nesse processo. Seguiremos nos próximos dias navegando e aguardando as surpresas desse caminho. Imagino que o encontro de nossas vidas nesse momento tão ímpar não será simples obra do acaso, temos a contribuir um com o outro.
Que venham os próximos momentos.
CARTA DE PARTIDA DE ESMERALDA
Partidas inesperadas podem ter seu lado bom.
Esmeralda inesperadamente pode ver o sol, pode respirar o ar para além dos biombos e cortinas que separam os leitos da CCPO2. Diferentemente do que eu imaginava, minha carta de partida para ela será uma carta de alta hospitalar, talvez um até breve, imagino também, que nessa viagem posso ter chegado ao meu destino, daqui em diante, no rio da finitude, Esmeralda tocará seu barco fora do alcance do meu radar. E está tudo bem.
Hoje, vinte e cinco de setembro de dois mil e vinte, Esmeralda tomada pela autonomia que felizmente conseguimos preservar e da qual ela faz valer muito bem, conseguiu sua alta hospitalar e seguiu para casa. Confesso que temo pelos próximos dias, embora saiba para onde essa viagem irá, as formas, e significados no decorrer desse caminho são muito singulares.
Sigo para o seu leito, dou início as orientações para o pós alta, reforço tudo o que trabalhamos com relação as suas Atividades de Vida Diária, sobre sua rotina ocupacional, oriento a cuidadora principal que também é tia, pela qual Esmeralda declara amor e muita gratidão. Ao encerrar o atendimento, retornei para o posto da clínica, e por certo momento me pus a refletir sobre nosso encontro que provavelmente se encerrava naquele dia.
Me despedi de Esmeralda, mulher jovem, cheia de objetivos que clamava a Deus por uma nova oportunidade, por uma segunda chance. A paciente que me mostrou de forma pura durante a pesquisa o quanto nossas atividades básicas são importantes, do autocuidado, alimentar-se, relembrar sabores e afetos.
Esmeralda ocupou-se te ser forte, persistente, tentou tudo o que pode em busca de sua segunda chance, do meu local, de quem assiste, vive e tenta contribuir com o navegar pelo desconhecido me ocupei de dedicar-me, estou contente com o que fizemos até aqui.
Despeço-me de Esmeralda, mulher negra, que me relatou abandono desde a infância, abandono conjugal após a descoberta da doença, despeço-me da mulher que ama a comida da avó materna, da pessoa que se sentia à vontade para falar sobre suas dores e perspectivas.
Os caminhos, formas e como será o desenrolar da finitude até o grande dia, ainda seguem sendo mistério para todos nós, inclusive para ela, torço e me ocupo também de esperar e que seja de forma tranquila, e que não falte a ela, paz e serenidade para abraçar o novo.
Por hora, ficamos com o sabor da despedida boa, a ida para casa, para o lar e ao encontro dos amores que ela cultivou até aqui, desejo a ela, cuidado, conforto e coragem, e que mantenha consigo, viva, a autonomia que preservamos até aqui.
Foi uma honra fazer parte do seu navegar.
TEIA CONCEITUAL: SOBRE O NAVEGAR
Não tenho medo da morte/ Mas sim medo de morrer/ Qual seria a diferença/ Você há de perguntar/ É que a morte já é depois/ Que eu deixar de respirar/ Morrer ainda é aqui (Gil, 2008).
Navegar pelo rio da finitude com Esmeralda, fez com que feridas não tratadas pudessem ser vistas e validadas. Nesse processo de escrevivência, encontramos destaques pontuais com relação a: abandono conjugal; espiritualidade assim como suas ocupações significativas voltadas a sua funcionalidade e atividades de vida diária.
Presente em outro caso nessa pesquisa, o abandono conjugal, fez parte da realidade de Esmeralda em seu processo de finitude, Karimi et al. (2018), falam sobre o receio de perder o apelo sexual, pontuando sobre relatos do medo existente da perda dos companheiros. Sabe-se que, um quantitativo importante de mulheres apresenta angústia, ansiedade, má comunicação além de abandono físico e emocional, que potencializam fragilidade e sofrimento nessas mulheres (Hubbelinghg et al., 2018).
Muito embora as dificuldades, e talvez por meio delas, das falas e vivências com Esmeralda foi possível perceber o quanto a mesma ocupou-se de vivenciar a sua espiritualidade. Através de uma ótica da Terapia Ocupacional, os temas religiosidade e espiritualidade são vistos como componentes do cotidiano do sujeito, terapeutas ocupacionais podem proporcionar a seus pacientes subsídios para o exercício dessa ocupação se assim for significativa, potencializando assim a promoção de saúde e bem-estar (Wilcock & Townsend, 2014).
Ainda com relação a Terapia Ocupacional, ao abordar espiritualidade e religiosidade, Elmescany e Barros (2015), mostram que a Terapia Ocupacional com foco na espiritualidade identifica ações, atividades ou práticas espirituais, nas quais o paciente tem necessidade de realizar conforme seu propósito de vida e favorecer espaço de vivência da espiritualidade e de realizações de atividades que proporcionem ao paciente estar em contato com seus valores e crenças, numa reflexão sobre ideias e projetos de vida e espiritualidade (p. 18).
Outras ocupações significativas de Esmeralda estavam diretamente ligas a sua autonomia e independência, Minosso (2012), afirma que o declínio de funcionalidade e autonomia podem levar a depressão, gerar sobrecarga aos cuidadores, aumento da utilização dos recursos do sistema de saúde que podem ocorrer graças a necessidade de institucionalização do paciente.
O comprometimento funcional somado a perda de autonomia afeta significativamente o exercício das Atividades de Vida Diária (AVD) de pacientes oncológicos. Pois de acordo com Okamura (2011), muitos pacientes com câncer experimentam prejuízos adversos em seu cotidiano ou sequelas associadas ao tratamento ou quando atingem o estágio terminal de sua doença.
No que tange a funcionalidade, autonomia e independência nas ocupações, Esmeralda, necessitava adaptar suas AVD, que são realizadas por um indivíduo para o cuidado com seu próprio corpo, sendo: mobilidade funcional; banhar e tomar banho; vestuário; deglutir/comer; higiene pessoal; cuidados com equipamentos pessoais; usar o vaso sanitário e realizar higiene intima; alimentar-se, sendo essas atividades parte das ocupações humanas (American Occupational Therapy Association et al., 2015).
Sendo essas ocupações trabalhadas e vividas durante o processo de finitude de Esmeralda tanto no hospital, quanto orientadas para o pós-alta. De acordo com Christiansen e Hammecker (2001, p.156 citado por American Occupational Therapy Association et al., 2015, p.19); as AVD podem ser conhecidas por atividades pessoais da vida diária (APVD) ou atividade básica da vida diária (ABVD) sendo ambas atividades fundamentais para viver socialmente tendo em vista que permitem o bem-estar e a sobrevivência básica.
Terapeutas ocupacionais compões a equipe de especialistas na avaliação da função com atenção ao paciente na capacidade de gerenciar AVD. Essa avaliação holística rotineiramente leva em consideração cada indivíduo, deficiências, seu ambiente, nível de motivação e relações de apoio, juntamente com seus objetivos e prioridades pessoais (Tiberini; Turner & Talbot-Rice, 2018).
4. Considerações Finais
Nessa estrada não nos cabe/ Conhecer ou ver o que virá/ O fim dela ninguém sabe/ Bem ao certo onde vai dar/ Vamos todos/ Numa linda passarela/ De uma aquarela que um dia enfim/ Descolorirá… (Fabrizio; Morra; Toquinho & de Moraes, 1983).
Este artigo abordou a temática do Ocupar-se nas chegadas e partidas, bem como suas afetações e ressonâncias em cuidados paliativos, a pesquisa também buscou através das cartas resultantes dos diários de afetações, realçar as ocupações desses indivíduos ativos e participativos no processo de chegar e partir durante a finitude.
Enquanto cartógrafo, me ocupo exatamente de tratar acerca do epilogo dessas histórias, nossas histórias cruzadas e encerradas sobre as ordens do tempo que é soberano. Ametista e Esmeralda, foram ainda que em seus processos de finitude, fontes de potência de vida e inspiração para essa pesquisa, para reflexão profissional, pessoal e implicação do pesquisador.
Durante o processo pode-se observar o quanto as ocupações são fundamentes no processo de viver, ainda que se esteja vivendo o processo de partir. a ocupação é o elemento ativista da existência humana e está em tudo o que o indivíduo se dedica a realizar.
Assim sendo, espera-se que essas escrevivências aliadas as teias conceituais, possam contribuir com o ensino e a pesquisa em cartografia, Terapia Ocupacional e Cuidados Paliativos.
Agradecimentos
Agradeço todas as pessoas que me permitiram participar de um dos momentos importantes em suas vidas, o momento de partir. Vocês me deixaram lembranças que servem de ensinamento para a minha jornada, sou grato aos meus pais, meus irmãos, avós, meus ancestrais e meus amigos. E principalmente, grato a Exu, a ele pedi para aqui estar, e a ele também dedico o êxito de aqui chegar, te dedico, senhor dos caminhos.
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Endereço para correspondência
Odair José Mendes Souza Junior
E-mail: odairsouzajunior258@gmail.com
Recebido: 30/04/2021
Revisado: 07/07/2021
Aceito: 01/07/2021
Publicado: 08/10/2021
1 Odair José Mendes Souza Junior: ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7114-7670