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Trivium - Estudos Interdisciplinares
On-line version ISSN 2176-4891
Trivium vol.9 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2017
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2017v1p.115
ARTIGOS LIVRES
Pesquisa e formação em psicanálise na universidade: tensionamentos
Research and formation in psychoanalysis at the university: tensions
Carlos Henrique KesslerI; Isadora Arnt BessaII
IProfessor Adjunto do PPG "Psicanálise: Clínica e Cultura" e Diretor da Clínica de Atendimento Psicológico do Instituto de Psicologia (UFRGS); Dr. em Teoria Psicanalítica (UFRJ). Endereço: Av. Protásio Alves, 297 - 3º andar 90410-000. Porto Alegre/RS Telefone: (51)3308-2025. E-mail: carloshkessler@yahoo.com.br
IIGraduada em Psicologia da UFRGS; Bolsista de Iniciação Científica Voluntária entre 2010 e 2012. Endereço: Rua da Felicidade, 10, 93044-513 São Leopoldo - RS Telefone: (51)9914-7589. E-mail: isadora.a.bessa@hotmail.com
RESUMO
Como a psicanálise está situada nas universidades? Qual a possibilidade e quais os limites para alguém iniciante (tanto na pesquisa quanto na psicanálise) fazer pesquisa nessa área? Acerca desses temas, identificamos, no Brasil, duas vias principais: autores que não dão tanta ênfase aos impasses entre psicanálise e universidade, reconhecendo especial valor à universidade na formação em psicanálise; e autores que entendem a formação em psicanálise como condição prévia para trabalhar com dita pesquisa. Apesar da divergência, é consenso que a psicanálise encontra na universidade um lugar fértil para sua produção e questionamento. No que concerne ao jovem pesquisador, é interessante constatar uma torção nas relações de causa-efeito: por intermédio do envolvimento na universidade com a pesquisa em psicanálise, observamos ter sido possível produzir um encontro inaugural, que aponta na direção de uma formação analítica.
Palavras-chave: PSICANÁLISE; PESQUISA; FORMAÇÃO.
ABSTRACT
How is psychoanalysis situated in universities? Witch are the possibilities and limitations for a beginner (in both research and in psychoanalysis) to actually perform a research on this area of knowledge? Around this theme, it can be identified in Brazil two main lines: authors who don't emphasize the dilemma between psychoanalysis and university, recognizing special value to the university for psychoanalysis instruction; and authors who consider psychoanalysis instruction as a previous condition to enter into this research area. Despite possible contradictions, it is safe to say that psychoanalysis finds in the University a breeding ground for its production and discussion. Regarding the young researcher, we believe that a twist in the relations of cause and effect is interesting, making it possible to produce, by the involvement with research in psychoanalysis at the university, an inaugural meeting, which points to the direction of an analytical training.
Keywords: PSYCHOANALYSIS; RESEARCH; EDUCATION.
I - Introdução
O trabalho que vamos relatar a seguir é consequência do Projeto de Pesquisa desenvolvido entre janeiro de 2010 a janeiro de 2013, inserido num marco de pesquisa mais amplo, dedicado à investigação clínica na universidade com referência à psicanálise. O estudo teve início a partir de uma questão prática, a saber, a exigência de que todo o graduando escolha um Projeto de Pesquisa em andamento e busque inserir-se nele. A autora do presente trabalho optou, então, pelo projeto "Supervisão: báscula para a psicanálise em clínica na universidade", coordenado pelo autor.
Logo de início, esbarramos em uma questão paradoxal que envolve a psicanálise, particularmente na universidade: a necessidade de uma formação prévia para que se possa com ela trabalhar. Essa questão levou-nos a tomar como tema de investigação a própria possibilidade de propor uma pesquisa em psicanálise quando as condições que seriam necessárias para obter-se uma formação analítica não estão completamente constituídas.
A fim de abordar esse tema, optamos por realizar inicialmente um estudo bibliográfico acerca da metodologia de pesquisa em psicanálise, da relação entre a psicanálise e a universidade e, ainda, da própria formação em psicanálise. Articuladamente, estavam em produção, na mesma equipe de pesquisa, trabalhos de clínicos pesquisadores em diferentes momentos na universidade.
A seguir, apresentamos tanto o embasamento quanto o produto desse período de trabalho de pesquisa e investigação.
II - Discussão metodológica
Quando falamos em pesquisa, referimo-nos geralmente a estudos que buscam estabelecer normas, predizer e determinar regularidades. Estudos desse tipo constituem o método científico, o qual, segundo Galliano (1986), se baseia num conhecimento anterior e em leis e princípios já estabelecidos, assim como segue etapas, normas e técnicas também previamente estabelecidas.
Uma das principais características que uma lei ou teoria deve ter para ser considerada científica é a falseabilidade (Chalmers, 1993), isto é, a ciência parte do pressuposto popperiano de que se deve tentar resolver problemas por meio de hipóteses, as quais devem ser testadas através de observações ou experiências e, mais importante, formuladas de tal maneira que os resultados da experiência possam ser contrários aos previstos. Nesse caso, a hipótese será considerada falsa e outra hipótese terá de ser buscada.
Nesse sentido, a ciência não buscaria comprovar hipóteses, mas realizar testes, visando refutá-las. As hipóteses e teorias científicas devem, portanto, arriscar-se a ser refutadas. Gewandsznajder (1989) afirma que hipóteses que não podem ser experimentadas e, por conseguinte, refutadas, não fazem parte da ciência. Outras características das leis e teorias científicas são a racionalidade, a objetividade e a mensurabilidade (Galliano, 1986).
Já a pesquisa em psicanálise, por sua vez, não se interessaria pelo que há de comum, generalizável e replicável nos fenômenos, pelo contrário, buscaria apreender a dimensão do que é único e singular. Elia (1999) coloca que, devido ao modo como são feitas as interpretações psicanalíticas - baseadas na clínica -, não seria possível ao crivo científico refutá-las, o que seria considerado pela ciência uma falha na teoria psicanalítica.
Safra (1993) afirma que a psicanálise inaugurou uma nova maneira de fazer pesquisa, deixando de lado a separação nítida entre sujeito-objeto e levando em conta a participação do sujeito no fenômeno que observa. O fato de ser uma pesquisa que não se baliza pela metodologia tradicional, não a torna, entretanto, menos rigorosa. As reflexões feitas pelo pesquisador acerca do material clínico devem ser embasadas na teoria psicanalítica para que se realize uma pesquisa em psicanálise. Seu rigor e precisão seriam dados, principalmente, pela fidelidade aos princípios que norteiam a prática da investigação analítica (Safra, 2001).
A psicanálise lida com a contradição e com a incerteza. E mais do que isso, assume uma ideia de verdade não absoluta, ideia que não pretende uma totalidade (Kessler, 2009), diferentemente da noção de verdade que é assumida pela ciência, a qual busca a objetivação e a universalização.
Quando falamos em pesquisa científica e em pesquisa psicanalítica, portanto, referimo-nos a pesquisas que possuem objetivos e objetos distintos. O objeto da psicanálise não é passível de positivação, tal como o é o objeto da ciência. Como já afirmado em Kessler (2009), a psicanálise buscaria fazer a leitura da complexidade da experiência humana em si mesma, sem buscar, como fazem outras disciplinas do campo científico, reduzir, no limite, toda a leitura do campo subjetivo à biologia, à física e à química. Este autor também afirma que a psicanálise buscaria justamente aquilo que a ciência despreza, ou seja, interessar-se-ia pelo que não é regular, predizível, universalizável.
A pesquisa em psicanálise possui como objeto de estudo o inconsciente e, portanto, deve desenvolver formas de investigação adequadas ao seu campo específico. Lo Bianco (2003) apresenta algumas implicações metodológicas que surgem a partir do momento em que se tem o inconsciente como objeto de pesquisa: uma vez que este só se deixa circunscrever em análise, a pesquisa psicanalítica teria na clínica seu ponto de apoio principal; o analista/pesquisador seria objeto de pesquisa tanto quanto o analisante e suas produções inconscientes, pois estaria implicado de maneira indissociável do material que irá analisar; o procedimento de pesquisa dependeria da transferência (relação analista/analisante), a partir da qual o inconsciente emerge.
A autora propõe um método de investigação que se utiliza de um movimento de ida e vinda da teoria para a realidade surgida na clínica. Nesse movimento, delinear-se-iam os conceitos que, articulados, aperfeiçoariam a teoria. Ainda neste artigo, afirma que o pesquisador em psicanálise dos dias atuais estaria numa posição de herdeiro de um século de procedimentos investigativos que se seguiram aos de Freud e, portanto, seria uma importante condição de inserção que ele conhecesse a história da psicanálise e a história de como esta surgiu como disciplina, e que tivesse contato com o legado de seus autores.
Assim, a questão da pesquisa em psicanálise deve surgir da prática e da experiência clínica - lembrando que a implicação do pesquisador constitui esta prática - e é importante que se tenha uma articulação teórica consistente para interpretar os fenômenos e, se necessário, reformular conceituações.
III - Objetivos da pesquisa
Dado que a pesquisa psicanalítica possui uma metodologia que articula teoria e prática clínica em função da especificidade de seu objeto, o objetivo da pesquisa que efetuamos foi justamente verificar a possibilidade, bem como os limites, de se fazer pesquisa em psicanálise, quando um dos autores não possua previamente uma formação analítica e sequer, tampouco, uma experiência de prática clínica.
Tendo em vista as circunstâncias já situadas, o caminho que foi possível trilhar para trabalhar essa questão deu-se a partir de uma revisão bibliográfica, da reflexão do pesquisador/sujeito confrontado com o problema proposto. Assim, em consonância com o que resgatamos na literatura, a ida a textos de Freud, de outros psicanalistas e, particularmente, a pesquisa de artigos atuais que abordem o tema psicanálise, pesquisa e universidade - procedimento aliado ao debate com os demais integrantes que participavam da linha de pesquisa "Psicanálise e a Clínica na Universidade", à qual este projeto esteve inserido - seria a via privilegiada para iniciar a elucidação das questões propostas, ao permitir produzir em conexão com o debate já estabelecido pelos que nos antecederam na história da produção psicanalítica a esse respeito.
IV - Resultados
Identificamos em nossa pesquisa bibliográfica diversos elementos relevantes derivados do tema de nosso estudo, os quais caracterizamos nos itens a seguir:
IV.1 - Freud, a psicanálise e a universidade
No artigo Sobre o ensino da psicanálise nas universidades (1919[1918]/1976), Freud introduz uma discussão sobre psicanálise e universidade, apresentando justificativas para a incorporação da psicanálise na formação dos médicos. Para ele, a psicanálise auxiliaria os estudantes no esclarecimento do significado dos fatores mentais nas diferentes funções vitais, bem como das doenças e seu tratamento. Além disso, propôs que a psicanálise fosse uma introdução à psiquiatria. Desta forma, tornar-se-ia possível uma compreensão dos fatos observados para além da etiologia orgânica.
Ainda nesse artigo, Freud afirma que a universidade só teria a ganhar com a inclusão da psicanálise em seu currículo. A disciplina, entretanto, só poderia ser ministrada por meio de aulas teóricas, haja vista a dificuldade de experiências e demonstrações práticas. Quanto à pesquisa, Freud afirma que seria suficiente que os professores de psicanálise tivessem acesso a um departamento hospitalar de clientes externos e, eventualmente, internos que suprisse o material necessário.
Freud deixa claro, entretanto, que, seguindo essa orientação, o estudante jamais aprenderia a psicanálise propriamente dita (Freud, (1919[1918]/1976). Nesse sentido, a formação analítica não só se estenderia para além das aulas teóricas frequentadas e das pesquisas desenvolvidas na universidade, como prescindiria destas, visto que seria realizada nas sociedades psicanalíticas. A formação analítica se daria, então, segundo Freud, a partir do estudo teórico, da análise pessoal e da experiência prática supervisionada. Esses seriam os três elementos que, desde então, compõem o conhecido tripé da psicanálise.
IV.2 - O impasse entre a psicanálise e a universidade
Para iniciar nossa investigação, impõe-se começar pela questão da discussão sobre psicanálise e universidade. Ela é feita ainda hoje por muitos psicanalistas e é possível perceber divergências entre eles quanto ao tema.
Alguns autores atribuem uma importância maior à universidade no que diz respeito à formação em psicanálise. Roudinesco (2000) observa que, no Brasil, seriam as universidades (principalmente os departamentos de Psicologia), mais do que as instituições psicanalíticas, que preservariam a vanguarda do freudismo.
Souza (2001, p.7), seguindo a mesma linha, considera que, ainda que a universidade imponha limites ao alcance do ensino da psicanálise, é um fato que a universidade forma analistas, uma vez que
cada vez mais alunos, principalmente dos cursos de graduação de psicologia, fazem sua análise pessoal sem nenhum vínculo com qualquer instituição psicanalítica, prosseguem seus estudos cursando o mestrado e o doutorado e complementam sua formação com supervisões mais ou menos sistematizadas, grupos de estudos e trocas informais.
O autor entende, então, que a universidade forma analistas que não passam, necessariamente, por instituições psicanalíticas, não estabelecendo qualquer vínculo de afiliação com tais instituições, na medida em que frequentam de modo não sistemático os seminários abertos ou cartéis oferecidos por estas.
Esses autores, entre outros, não enfatizam tanto as decorrências do encontro entre a psicanálise e a universidade, atribuindo maior valor à última como elemento da formação analítica.
Já outra perspectiva que consideramos interessante, toma como ponto de partida o impasse existente entre os discursos universitário e analítico, tal qual propostos por Lacan (1992) no Seminário dos anos 71-2. Lacan vai propor os seguintes elementos para situar a forma fundamental dos discursos:
Um primeiro elemento, S1, o significante que intervém na bateria dos significantes, representando o sujeito; o próprio sujeito, $; o terceiro elemento, S2, como sendo a bateria dos demais significantes, previamente constituídos, integrantes da rede do saber. O sujeito dividido, $, surge no instante em que S1 intervém no campo já constituído dos outros significantes, S2. Desse trajeto, surge uma perda, designada como o objeto a, o quarto elemento destacado (...). Caracterizando os quatro lugares de sua estrutura de discurso, temos que acima, à esquerda, fica o lugar do desejo, mais tarde situado também como o do agente, da ordem, do mandamento do discurso. É o lugar do elemento dominante, que ordena e serve assim para identificar qual seja o discurso em questão. Abaixo deste, a verdade do discurso, sempre encoberta; acima, à direita, a posição do Outro (posteriormente, também do trabalho); e, abaixo deste, a perda, a forma de também nomear aquilo que se produz. Lacan (1992) vai propor sucessivos quartos de giro, alterando a posição dos elementos no sistema, mas sem desarrumar a ordem entre eles, o que vai constituir quatro possibilidades radicais de discursos... (Kessler, 2009, p. 29-30).
A partir dessa diferenciação entre os discursos, Figueiredo e Vieira (2000, p. 88) apresentam os fundamentos do ensino universitário:
O ensino universitário é o ensino de um saber constituído a partir das coordenadas cartesianas. E mais, o lugar de quem ensina é claramente definido, não pode haver inversões. O aluno, a rigor, não tem nada a ensinar, só a aprender. O mestre deve ensinar o que aprendeu. A pesquisa é um meio sujeito a regras precisas de produção de conhecimento. O pesquisador não é um aprendiz, é antes um mestre visando garantir seu saber, submetendo-o a certas leis de verificação inerentes ao modo de trabalho universitário, aos métodos científicos e às políticas institucionais que subsidiam e avalizam seus achados.
Mezan (1993), mesmo seguindo outra orientação - de Laplanche - concorda com a posição que até aqui levantamos. Ressalta que Freud, no artigo "Sobre o ensino da psicanálise nas universidades", pensa na universidade como num meio de divulgação da psicanálise e não como um ambiente propício para a investigação, visto que esta só se daria no âmbito de uma prática clínica cujo lugar seria o consultório. Para Mezan, falar de psicanálise na universidade não seria propor um atalho à formação do analista, embora isso não signifique que se trate de algo sem importância ou que não mereça a atenção de um psicanalista.
Como podemos observar, para abordar o tema de estudo deste trabalho, alguns autores partem do impasse existente entre os discursos universitário e analítico e consideram a formação em psicanálise uma condição para que se possa trabalhar com pesquisa em psicanálise. É importante deixar claro, entretanto, que o discurso universitário não se restringe à universidade, isto é, não está presente somente na universidade, assim como não é o único discurso existente nela. Discurso universitário e universidade não são, portanto, a mesma coisa.
IV.3 - Transmissão ou ensino: o que é possível na universidade?
Para refletirmos sobre a questão da pesquisa em psicanálise na universidade, temos que considerar, entre outras, questões acerca da psicanálise na universidade e da formação em psicanálise. Nesse sentido, a partir da diferenciação entre os discursos universitário e analítico, alguns autores questionam se o que estaria ao alcance da universidade seria da ordem de um ensino ou de uma transmissão da psicanálise.
Brauer (2001) concorda com a posição que sustenta que o que seria possível de se ensinar da psicanálise seriam seus fundamentos, algo que estaria totalmente ao alcance da universidade. O que se transmite, entretanto, seria da ordem de um estilo. Para a autora, não se trata apenas de ensinar os fundamentos da prática psicanalítica, mas de transmitir um estilo, "transmissão que se completa com uma conquista, um ato do analista. Ato de palavra, é preciso sublinhar, a sua clínica."
Rosa (2001, p. 10) diferencia o ensino e a transmissão da psicanálise, afirmando que a ênfase no debate teórico, que seria da ordem do ensino, pode dar a este um caráter de plenitude e a impressão de ser capaz de resolver todas as questões. Já a transmissão, colocaria em oposição o saber e a verdade, "o saber como o que se deve superar rumo à verdade própria". Nesse sentido, aponta que, para que se efetue a transmissão da psicanálise, o estudante deve incluir as suas questões e pensá-las a partir da psicanálise.
Escars (2006) aponta alguns elementos para pensar a transmissão da psicanálise na universidade, dentre eles a concepção de que uma transmissão ocorreria entre um emissor e um receptor, o qual seria chamado pelo autor de leitor. A forma como se daria a transmissão da psicanálise dependeria da suposição que o emissor faz do leitor, do destinatário desta transmissão. Se o destinatário for pensado como aluno que deve ser ensinado porque não sabe, a transmissão se daria a partir de formas didáticas escolares, com a pretensão de clareza e precisão. Se o destinatário for pensado, no entanto, como analisante, isto é, se o emissor supuser em quem ouve as aulas algum interesse por seu próprio inconsciente, a apropriação conceitual por parte do leitor pode ser favorecida.
Sá (2006) também entende que a transmissão da psicanálise na universidade dependeria da posição assumida pelo analista. Afirma que, se este permitir que algo do funcionamento do discurso analítico opere, criam-se as condições para um efeito de transmissão. Para Figueiredo e Vieira (2000), o ensino da psicanálise se fundaria mais sobre a experiência singular do trabalho analítico do que sobre a transmissão de seus conceitos.
Na mesma linha, Medeiros e Holanda (2009, p. 136) também entendem que a transmissão da psicanálise ultrapassa os limites do ensino teórico. Para essas autoras, a aplicação da psicanálise supõe um analista, ou seja, "um praticante submetido à causa do inconsciente".
O saber psicanalítico, portanto, não seria um saber que se transmite como qualquer outro; não seria um saber que se ensina, visto que requer, além da prática daquele a quem a psicanálise é transmitida, um posicionamento específico daquele que pretende transmiti-la.
A psicanálise na universidade esbarraria, então, em limites difíceis de superar, na medida em que a transmissão da psicanálise supõe um sujeito em formação (analítica), o que não pode ser uma exigência da universidade em relação aos alunos.
IV.4 - Pesquisa em psicanálise na universidade
Como já afirmamos anteriormente, a discussão acerca da formação em psicanálise e do encontro entre psicanálise e universidade é fundamental para que possamos abarcar nosso problema de pesquisa. Posto isso, abordaremos mais algumas colocações acerca da metodologia de pesquisa em psicanálise para, então, podermos pensar no que está ao alcance da universidade quando se trata desse campo de estudo.
Freud, no texto "Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise" (1912/1969), afirma que - embora não seja bom pesquisar um caso que ainda está em tratamento, em função de que isso poderia prejudicar seus resultados - pesquisa e tratamento estariam sempre articulados. A execução do tratamento só seria possível àqueles habilitados para fazê-la, a saber, aqueles que possuem formação analítica. A execução da pesquisa necessitaria, igualmente, deste requisito.
Seguindo essa proposição, Elia (1999) vai situar a transferência como uma condição essencial para que um tratamento inicie, mostrando que é pela via da transferência que o sujeito tem acesso ao saber do inconsciente. Nesse sentido, a metodologia de pesquisa em psicanálise deve incluir a transferência entre as condições estruturantes da pesquisa. Desse modo, como aponta o autor, a pesquisa em psicanálise tem na transferência o eixo de seus modos de execução.
Caon (1994; também em Iribarry, 2003) aponta que a situação psicanalítica de pesquisa retira seu modelo da situação psicanalítica de tratamento e, portanto, deve ser examinada a partir dela. Nesse texto, Iribarry afirma também que o pesquisador psicanalítico realiza sua investigação não apenas citando e recitando teorias para em seguida validar suas aplicações empíricas, visto que, além disso, ele busca problematizar um aspecto do campo psicanalítico e oferecer uma contribuição que não seja limitada pela confirmação da teoria.
Iribarry (2003, p. 129) propõe ainda dois dispositivos para a análise dos dados da pesquisa: a leitura dirigida pela escuta e a transferência instrumentalizada. Na leitura dirigida pela escuta, o pesquisador identifica, no texto transcrito das entrevistas e questionários respondidos pelos participantes da pesquisa, "contribuições singulares e diferenciadas daquelas que a literatura fornece, procurando identificar significantes cujo sentido assume o caráter de uma contribuição para o problema de pesquisa norteador da investigação". Na transferência instrumentalizada, o pesquisador relaciona seus achados com a literatura trabalhada, buscando elaborar impressões que reúnam as suas expectativas diante do problema de pesquisa e as impressões dos participantes.
A metodologia de pesquisa em psicanálise, segundo os autores estudados no presente trabalho, deve articular o estudo teórico à prática clínica do pesquisador. A questão é que, na universidade, a maioria dos alunos ainda não iniciou uma formação em psicanálise ou encontra-se no início dessa formação, fato que pode se tornar um impasse quando se trata de pesquisa em psicanálise na universidade.
Se existem, como já foi apresentado, desencontros entre os discursos universitário e analítico dentro da universidade no que diz respeito à transmissão de seus saberes, a questão da pesquisa em psicanálise na universidade deve igualmente esbarrar em divergências, visto que lida com um não saber não passível de transmissão através do discurso universitário. Da mesma forma, se o ensino da psicanálise se caracteriza por ser um ensino clínico, a pesquisa psicanalítica não poderia ser diferente. Isso não significa dizer que a pesquisa em psicanálise é meramente uma pesquisa clínica, mas que deve estar atrelada a esta em seu método investigativo.
IV.5 - Possibilidades
A partir da discussão feita até o momento, podemos pensar no lugar que a psicanálise ocuparia na universidade e em quais seriam as possibilidades que poderiam surgir a partir do encontro entre a psicanálise e a universidade.
Sá (2006, p. 81) entende que "a função da psicanálise na universidade seria a de reintroduzir no sujeito alguma questão em relação a seu saber, no qual certamente se conforta o seu não querer saber nada do inconsciente". Afirma ainda que "a incidência da psicanálise na universidade pode promover alguma descontinuidade na fixidez das estabilidades, dando ao sujeito a possibilidade de introduzir em seu fazer alguma diferença em relação ao comando habitual pelo qual é sustentado" (Idem, p. 95).
Kessler (2009) afirma que, se por um lado, a psicanálise desde Freud pode prescindir da universidade, por outro, esta faz parte dos poucos lugares onde a produção cultural no Brasil encontraria condições para elaboração atendendo a critérios mínimos de seriedade. Fator que poderia explicar a importância de os psicanalistas seguirem apostando no que se pode realizar na universidade. O autor aponta, ainda, que grande parte dos psicanalistas brasileiros estabelece contato com a psicanálise através da universidade, de modo que, mesmo que o que se pratica na universidade não possa ser qualificado de psicanálise, é importante reconhecer efeitos posteriores - clínicos e de formação - que repercutam as marcas da referência psicanalítica.
Entendemos que é essencial para a pesquisa em psicanálise supor um analista, o qual direcionaria a produção conceitual que surge na pesquisa a partir de um trabalho/experiência clínica. Dessa forma, a prática pessoal da psicanálise é elemento que deve compor o pesquisador em psicanálise e, sendo assim, a pesquisa em psicanálise só pode ser realizada por aqueles que possuem formação analítica. No entanto, é através da universidade - especialmente nos cursos de psicologia - que muitos entram em contato com a psicanálise, visto que o estudo teórico e os estágios em clínica em nosso contexto brasileiro proporcionam, muitas vezes, o início de uma formação psicanalítica.
V - Considerações finais
O debate entre psicanálise, pesquisa e universidade, como se pôde demonstrar, é bastante complexo e, ao tratarmos deste assunto, algumas questões são de extrema relevância, tais como a questão de como se dá o ensino da psicanálise na universidade; quais os elementos necessários para uma formação analítica; o próprio impasse existente entre o discurso universitário e o discurso do analista e, sobretudo, a discussão entre psicanálise e ciência. Consideramos que, embora tenhamos encontrado diferentes posições, é de comum acordo a todos os autores estudados nesta pesquisa que, por mais que exista um impasse colocado entre a psicanálise e a universidade, a psicanálise encontraria nesta última um lugar que possibilitaria a produção do discurso universitário e o seu questionamento.
Em relação à articulação pesquisa e formação, logo de início, esbarramos em condições prévias, relativas à formação analítica, apontadas como necessárias quando se trata de pesquisa em psicanálise, o que, num primeiro momento, parecia impedir a realização da pesquisa. O que pudemos apreender - a partir dos autores estudados e da própria implicação na pesquisa através do trabalho de orientação - é que, apesar das limitações existentes, foi possível trilhar um caminho marcado por alguns fundamentos da pesquisa em psicanálise. A própria implicação na pesquisa ajudou-nos a perceber que a escolha de trabalhar com um tema que envolvesse a psicanálise não foi uma escolha solta, foi ela mesma já consequência de uma trajetória atravessada pela psicanálise, já em andamento, mesmo por parte da pesquisadora iniciante.
Quanto ao trabalho de orientação, nós o pensamos em analogia com a hipótese apresentada em Kessler (2009): assim como a trajetória do supervisor pode possibilitar que um trabalho clínico se dê conforme a psicanálise, com o trabalho de orientação, pode-se tornar possível perceber a posteriori a constituição das condições para um início - ou sua sequência - de trajetória do orientando em direção à formação em psicanálise. Dessa forma, apesar dos impasses que a psicanálise possa encontrar na universidade, consideramos que é possível que se produza algum efeito de formação na universidade, respeitando os limites da posição em que se encontra cada pesquisador.
Assim, ainda que a pesquisa em psicanálise, por excelência, se complete no tripé da formação analítica, podemos pensar que o trabalho realizado na universidade a partir da psicanálise seria sempre uma pesquisa, desde o ponto em que se está. Nesse sentido, pode ser mais apropriado não utilizar uma perspectiva antagônica, na qual a formação antecederia necessariamente a pesquisa, tomando-as como polos contraditórios em tensão, uma alimentando a possibilidade da outra. Também é interessante aqui a utilização que Lacan faz de determinadas relações topológicas, por exemplo, com a fita de moebius (na qual a torção no extremo de uma fita coloca em continuidade os dois lados - formação e pesquisa, nesse caso - anteriormente opostos). Ao adotar uma ou outra destas perspectivas, formação e pesquisa entrelaçam-se, sem a necessidade - linear - de uma ser considerada pré-requisito da outra. Afinal de contas, ademais, a formação em psicanálise nunca se encerra.
Referências
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Recebido em: 06/05/2016
Aprovado em: 22/09/2016