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Boletim de Psicologia

Print version ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.57 no.127 São Paulo Dec. 2007

 

IN MEMORIAM

 

 

Saudades de Maria Amelia Matos

 

Remembering Maria Amelia Matos

 

 

Gerson Yukio Tomanari*

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 

Escrever sobre Maria Amelia Matos é muito especial. É prazeroso ser tomado pelas lembranças que o tempo está se incumbindo de filtrar e sintetizar. Dá orgulho identificar e reconhecer as marcas que ela imprimiu no que sou. Mas é também muito sofrido por toda a saudade que vem à tona.

Maria Amelia teve uma carreira impressionante, cuja importância para a Psicologia, em particular para a Análise do Comportamento, ainda é inestimável. A trajetória acadêmica de Maria Amelia e as suas contribuições encontram-se registradas em outros textos (Morais, 1999; Tomanari, 2005; 2006). Na homenagem que faço agora, não vou seguir exatamente por esse caminho. Ainda que se cruzem, vou trilhar memórias da convivência com ela.

Ao menos dois fatos fornecem razões muito especiais para que essa homenagem conste do Boletim de Psicologia. Maria Amelia contribuiu ativamente para a Sociedade de Psicologia de São Paulo, tendo participado da sua diretoria na função de vice-presidente entre 1980 e 1981. Além disso, foi neste mesmo periódico, há 26 anos, que Maria Amelia publicou um dos textos mais brilhantes da sua carreira, “A ética do exercício de controles aversivos” (Matos, 1981).

Nesse texto, Maria Amelia faz uma revisão sobre os principais resultados de pesquisas que investigaram os efeitos do uso de controles aversivos em animais de laboratório. Ao mesmo tempo em que discute supressão, punição, esquiva, coerção, ansiedade, desamparo, Maria Amelia faz uma cortante análise das condições de vida em nossa sociedade. Magistralmente, ela insere a genialidade política de Chico Buarque ao longo do texto. Em torno de problemáticas sociais, a obra é um retrato de Maria Amelia na convergência de conhecimentos científicos e artísticos, razão e emoção.

Por que falar sobre controles aversivos? Porque “a minha gente hoje anda falando de lado, anda olhando pro chão... (Apesar de você)” (p. 126), disse Maria Amelia recorrendo a Chico Buarque. Porque é preciso tratar de “eventos que, se não resolvidos, poderão, em nós fazer com que ‘...do medo crie-se o trágico...’ (Rosa dos Ventos)” (p. 129).

Para exemplificar situações em que “o medo já passou por essa transformação”, Maria Amelia diz:

“um outro exemplo, não tão distante no tempo, nem tão dramático, mas justamente por isso mais cruciante em sua banalidade burocratizada: o serviço militar. No mundo inteiro, jovens são recrutados, isto é, afastados de suas famílias e de seus trabalhos, para comporem um grupo a ser treinado nas artes marciais. E ocorre, esquizofrenicamente, também em tempo de paz, com a justificativa de que se trata justamente de um recurso para preservar e defender esta paz. Uma paz de medo, de silêncios, de comportamentos suprimidos. Diante desse exemplo de um “pileque homérico no mundo”, adiantaria ter boa vontade apenas? (Cálice)” (p. 129) “Desde há algumas décadas atrás, e por muitas décadas agora, o terrorismo intelectual vem destruindo as pessoas e suas obras, vem destruindo as suas crenças em outras pessoas e seu respeito por si mesmas. Eu me refiro ao fascismo, e não apenas, italiano; ao stalinismo, e não apenas, russo; ao macchartismo, e não apenas, americano; ao estadonovismo, e não apenas, getulista.” (p. 129).

Maria Amelia tinha um forte compromisso com o Brasil. Concluído o doutorado na Columbia University, ela recusou oportunidades de trabalho nos Estados Unidos para se dedicar à docência em nosso país. Ela tinha plena consciência, naquele momento, da importância das suas contribuições para a construção da Psicologia brasileira.

Maria Amelia era uma pessoa de princípios muito firmes e coerentes. Corajosa, não parecia ter medo de explicitar e defender muito fortemente as suas posições. Foi também uma das pessoas mais afetuosas que conheci. O abraço dela era eloqüente e, quem um dia o recebeu, sabe do que estou dizendo. Era um abraço grande, inteiro, honesto, verdadeiro, protetor.

A personalidade forte da Maria Amelia freqüentemente intimidava muitos. Mas a interação com ela se incumbia de revelar a sua humildade e o seu senso de justiça para reconhecer argumentos competentes e válidos. Nesse caso, ela era perfeitamente capaz de reconsiderar as suas posições. É verdade, fazê-la ouvir talvez exigisse alguma destreza. Entretanto, essa postura fazia exercitar a capacidade de argumentação clara, lógica e objetiva do interlocutor. Às vezes penso que esse jeito impaciente de agir era produto de uma destacada rapidez de pensamento. Era preciso ter fôlego para acompanhá-la.

Ri muito com a Maria Amelia. Ela foi minha professora na graduação no IPUSP e, lembro-me bem, havia um colega de turma que gostava de brincar com ela. Quando chegávamos para a aula de laboratório, ele cumprimentava Maria Amelia aos berros em pleno corredor do Bloco 10, pegava-a pela cintura e a levantava diversas vezes. Gargalhávamos todos. O carinho da Maria Amelia com os alunos de graduação não tinha igual.

Ri muito da Maria Amelia. Personalidade única, uma vez eu perguntei a ela o porque de ela ter colado vários adesivos nos vidros e na lataria do carro. Os adesivos eram todos da sua cadela de estimação, a Sheep, uma Sheepdog (claro!) de pêlos sempre impecavelmente limpos e penteados. Eu pensei que a resposta seria óbvia: uma manifestação de orgulho e amor pelo animal de estimação. Eu estava errado. Aqueles adesivos eram para ajudá-la a localizar o carro no estacionamento.

Entender a Maria Amelia permitia emocionar-se com ela. Numa das vezes, estávamos na Biblioteca do IPUSP onde ocorria o velório da Profa. Lígia Amaral, a minha sogra, a quem Maria Amelia mantinha uma especial admiração. Na ocasião do falecimento da Lígia, Maria Amelia estava em tratamento quimioterápico. Naquele dia, ela fora ao IPUSP por outras razões e acabou por saber casualmente do acidente e do falecimento da amiga. Ela foi à biblioteca. Aproximou-se do caixão fechado, tirou um lenço do bolso e começou a passá-lo sobre a tampa como se a acarinhasse. Dessa vez não questionei. Ela provavelmente diria que estava tirando manchas de dedos, limpando o caixão.

Maria Amelia marcou profundamente as pessoas que souberam ter o prazer da sua convivência. Saudades.

 

 

Maria Amelia Matos (1939-2005)

 

REFERÊNCIAS

Matos, M. A. (1981). A ética do exercício de controles aversivos. Boletim de Psicologia, 33, 125-133.

Morais, S. T. P. (1999). Professores universitários e psicólogos contam suas vidas. (Vol. IV, entrevista 29). Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo.

Tomanari, G. Y. (2005). Maria Amelia Matos (1939-2005): generosidade, competência, liderança. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21, 255-256.

Tomanari, G. Y. (2006). We lost a leader: Maria Amelia Matos (1939-2005). The Behavior Analyst, 29, 109-112.

 

 

Recebido em 10/10/07
Aceito em 15/10/07

 

 

* Endereço para correspondência: Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo - SP. CEP: 05508-900.

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