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Estudos de Psicanálise
Print version ISSN 0100-3437On-line version ISSN 2175-3482
Estud. psicanal. no.30 Belo Horizonte Aug. 2007
Psicanálise e trajetória de vida: intervenção na comunidade
Psychoanalysis and path of life: intervention in the community
Stetina Trani de Meneses Dacorso*; Equipe discente do curso de Psicologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora-MG**
Círculo Brasileiro de Psicanálise – Rio de Janeiro
RESUMO
O texto parte de questionamentos sobre a psicanálise aplicada fora do setting analítico. Usou-se conceitos da Análise Institucional e fontes orais, como trajetória de vida, para pensar um enquadre psicanalítico numa intervenção comunitária. O presente trabalho é uma tentativa de construir um enquadre numa intervenção comunitária, utilizando-se da psicanálise e do institucionalismo.
Palavras-chave: Psicanálise, Trajetória de vida, Fontes orais, Análise Institucional, Comunidade, Enquadre Psicanalítica.
ABSTRACT
The text starts for questioning about the use of Psychoanalysis out of the analytical setting. Concepts of Institutional analysis and oral sources as a life trajectory are used to think about a Psychoanalytical framing in a communitarian intervention.
Keywords: Psychoanalysis, Life trajectory, Analytical setting, Community, Oral sources, Institutional analysis.
Introdução
O mundo moderno carece de relações solidárias e fraternas. Fridman (2000) aponta para identidades fragmentárias, decorrentes da ausência de um parâmetro unificador das várias experiências e vivências. Estas são sentidas como desagregadas, gerando ansiedade e insegurança. Há o anseio e exigência de uma liberdade sem risco e sem angústia da escolha. É um eterno presente, com ênfase em experiências ardentes e imediatas. Ser moderno é não se preocupar com estabilidade, nem laços duradouros. A presença desses traços na cultura, produz uma ausência de credibilidade na continuidade das instituições e ambientes da ação social. Há uma apatia frente o sócio-político com exigências de proteção para experiências, sem o sentido de responsabilidade. Instala-se a ausência de cidadania, desrespeito ao direito do outro, falta de solidariedade com o laço coletivo, incluindo a comunidade e instituições onde se vive e freqüenta.
Neste coletivo provocador de angustia, foi solicitado à nossa IES uma “encomenda” de intervenção na escola do Bairro X, zona norte da cidade. A queixa: violência. Objeto de intervenção: escola. A justificativa é que, esta instituição é o núcleo atual e futuro das situações de delinqüência, necessitando de uma ação terapêutica, educativa e pedagógica. Usamos o termo “encomenda”, seguindo o institucionalismo, que aparece antes da intervenção, e é o pedido que provém de uma zona de poder, acompanhado de uma série de comentários sobre a problemática, no caso, a violência.
Na análise institucional se intervém pela encomenda, para possibilitar “demandas”, estas surgem do grupo que sofre a ação, sendo um esclarecimento sobre si mesma e aparecem de formas múltiplas e contraditórias.
Em outro momento, analisamos a efetividade da psicanálise fora do setting analítico. A queda dos discursos totalizantes e homogeneizantes abriu espaço para uma reavaliação da perspectiva ordeira. Comungando com esta perspectiva, trabalhamos com o enfoque que, fora do setting, não podemos contar com a neutralidade analítica ideal, nem com o uso da transferência enquanto ferramenta fundamental, e nem com dias e horários rígidos. O pagamento em moeda corrente – fora de cogitação – afinal, no caso específico, o trabalho é voluntário por parte dos discentes. Encerramos nossas considerações, reafirmando a palavra livre como nossa arma, se as instituições e comunidades conseguissem o espaço para se pronunciarem, algo se produziria, surgindo demandas.
Estando submetidos a IES propusemos objetivos para o projeto de extensão: possibilitar espaço para discussões, relatos e questionamentos por parte dos moradores sobre seu bairro, qualidade de vida, violência, convívio com vizinhos, poderes instituídos e solidariedade no coletivo.
Recorremos à Análise Institucional que utiliza da psicanálise para pensar as instituições. Tendo como objetivos: a) a auto análise – processo onde o grupo enuncia e fala, procurando um saber de sua própria vida, necessidades e demandas; b) a autogestão – é conseqüência do momento anterior, o grupo toma as rédeas de seu destino, é um produto do funcionamento da grupalidade.
Lourau (2004) apresenta um conceito significativo que é o de implicação. O autor analisa a implicação ligada às pesquisas de tendência psicanalítica, que requer a análise do saber conscientemente dissimulado, e do não saber inconsciente. Designa todas as determinações transversais ao local onde se aplicou a Análise Institucional, determinações em grande parte exteriores, estabelecidas para além do campo de intervenção, mas não externas ao local de trabalho. O autor se refere a instituições como a forma que tomam as forças sociais.
A Análise Institucional funda-se na possibilidade de uma anamnese coletiva, mediante a qual o grupo cliente e o staff sócio-analítico se projetam na gênese do que é ali instituído. A anamnese coletiva se apóia nas informações colhidas pela análise da encomenda, e na análise da demanda. É um saber social que nasce na e pela prática, construído e desfeito sob o efeito das lutas permanentes, a elucidação da transversalidade permite ao grupo saber do assujeitamento que lhe é imposto. Nos propusemos um desafio: ampliar este olhar para a comunidade, buscando uma intervenção institucional a céu aberto.
A Análise Institucional recebe várias influências, recusando-se a ter um mestre, constata que todo saber envolve um poder e que as elites tecnocráticas guardam o monopólio do saber que leva a uma paralisação de toda produtividade e desejos instituintes: explicações totalizantes e ditas universais servem para encobrir realidades específicas.
Ao optarmos por sair da práxis na escola e ir para comunidade precisávamos de uma técnica para intervir, investigar e pesquisar. A associação livre, baseada na metapsicologia serve como método e instrumento de pesquisa para o setting analítico não se adequando a uma situação de “psicanálise a céu aberto”. O instrumento de investigação teve que ser na forma de entrevista, não rígido e que nos desse acesso a percepções, idéias, lembranças, sentimentos. Unindo história pessoal, história da comunidade e relações interpessoais.
A história possui uma técnica de pesquisa chamada história oral e/ou fontes orais e/ou trajetória, testemunho de vida. Santos (2000) analisa que, quando os entrevistados constroem sua história de vida ou relato de suas lembranças, o fazem de forma bastante livre, sem se prender a uma organização cronológica. No ato de lembrar, utilizam significantes dos quadros sociais, que servem como ponto de referência. O tema central foi fornecido pelo entrevistador, porque guarda relação estreita com a questão da pesquisa. A dinâmica se efetiva em jogos de associações, uma lembrança encadeando a outra.
Para Thompson (2002), história oral é uma história construída em torno das pessoas, traz a história para dentro da comunidade, e extrai a história de dentro da comunidade. Propicia contato entre classes sociais e gerações, proporcionando a todos um sentimento de pertencer a determinado lugar e época. Por meio da história, as pessoas comuns procuram compreender as revoluções e mudanças por que passam em suas próprias vidas. No momento que, a experiência de vida das pessoas pode ser utilizada como matéria-prima, a história ganha uma nova dimensão. Com esta técnica o autor afirma que a comunidade merece confiança para escrever a própria história. Confiando nas suas próprias lembranças e interpretações do passado, em sua capacidade de colaborar e perceber a história, confiando, acima de tudo, em si própria, em sua própria fala. Assim, a história oral é uma técnica que pode ser utilizada em qualquer ramo, reunindo diferentes especialidades, envolvendo profissionais de diversas áreas. Uma ressalva a ser feita, é a credibilidade destas fontes por estar presente o fator da subjetividade, uma vez que a memória individual pode ser falível e fantasiosa. A argumentação de Thompson é que:
[...] como sabe qualquer historiador experiente, a simples afirmação ou contra afirmação de que fontes da história oral são fidedignas ou não, verdadeiras ou falsas, para este ou aquele fim, obtidas desta ou daquela pessoa, encobrem as questões de real interesse. A natureza da memória coloca muitas armadilhas para incautos, o que frequentemente explica o ceticismo daqueles menos informados a respeito das fontes orais. Porém, oferecem também recompensas inesperadas para um historiador que esteja preparado para apreciar a complexidade com que a realidade e o mito, o “objetivo” e o “subjetivo, se mesclam inextricavelmente em todas as percepções que o ser humano tem do mundo individual e coletivamente” (THOMPSON, 2002, p. 179).
O autor cita que recordar é um processo ativo e que, é essencial ter disposição para lembrar, pois a lembrança pode ser inibida pela relutância. Seja por fuga consciente a fatos desagradáveis ou “repressão inconsciente”. Para ele, é de especial interesse da psicologia fazer reviver essas lembranças reprimidas mediante a entrevista terapêutica.
A breve abordagem da história oral possibilita confirmar o caminho da interdisciplinariedade na tentativa de um enquadre para a psicanálise que atenda à particularidade deste ofício “sem divã”.
[...]. Deve dizer-nos não apenas o que pode dizer intencionalmente e de boa vontade [...] mas também tudo o mais que a sua auto-observação lhe fornece, tudo que lhe vem à cabeça, mesmo que seja desagradável dizê-lo, sem importância ou absurdo. (FREUD, 1928, p. 20),
Na psicanálise, o método e instrumento de investigação caminham juntos. O enquadre, fora do setting, não se iguala às sessões de análise por isso o nosso instrumento de pesquisa foi a entrevista. O instrumento tinha de ser uma entrevista. Fizemos um roteiro com dados a serem investigados, mas sem ter a forma de perguntas, algo que orientasse a equipe, sem aprisioná-la. No esboço, além das informações sobre idade, estado civil, tempo de residência na comunidade, há também sobre amizades e culto religioso no bairro; locais de lazer; viu-se e ouviu o que pensa sobre violência/delinqüência no bairro; se conhece a história do bairro e como a percebe. Enfim, buscando informações, lembranças.
René Kaes (2005), psicanalista que atua e teoriza sobre análise institucional, analisa que a psicanálise não dá conta dos sistemas sociais ou culturais enquanto tais, mas da matéria psíquica com a qual estes se constroem, e de suas funções na psique, assim, características de um agrupamento instalam modificações. Na natureza dos processos e formações psíquicas, a posição do sujeito, em sua história singular, será menos trabalhado na situação de grupo, e sua relação com o outro será mais trabalhada. Os sintomas são mantidos e produzidos pelos membros do grupo, pela função que realizam na vida psíquica de cada um deles, mas também simultaneamente, no processo grupal.
Começamos nossa ação ouvindo o Batalhão de Polícia Militar que atende às solicitações do bairro. Percebemos que, o índice era muito baixo no que se referiam a assaltos, roubos, violências física. A maioria das chamadas era de conflitos entre vizinhos, falta de atendimento em ambulatórios, conflito entre adolescentes. Quando ouvimos a escola, a violência apresentava-se de forma clara e óbvia, segundo os professores e coordenadores da instituição. A comunidade não se vê como a escola, mas se reconhece violenta.
Com a encomenda centrada na violência, preparamos um roteiro para o testemunho oral que incluísse relações afetivas, convivência, na percepção do bairro. O trabalho se desenrola há seis meses, havendo um contato com 70 famílias. Propusemos-nos a conversar com as famílias mais antigas do bairro. Percebemos que a comunidade se autodenomina violenta.
Contudo, apenas 10% dos entrevistados viram e testemunharam cenas de violência. O restante ouviu falar, apenas a comunidade foi construída pela prefeitura, com o intuito de fornecer moradia própria para pessoas de baixa renda. Muitos, para adquirir sua casa, saíram de imóveis pequenos e antigos da zona sul para este bairro, situado na zona norte. O imaginário de pobre e marginal é a forma como se vêem no bairro. Afastam-se dos vizinhos e não conseguem construir laços maiores, porque o estereotipo distância uns dos outros.
Com o tempo, a comunidade foi tendo sua população de adolescentes sem ter o que fazer, desempregados, alcoólatras, bagunceiros, aposentados e todos os outros tipos existentes em qualquer bairro. Os últimos atores, apontados como responsáveis pelo estigma do bairro, cujo sintoma – a violência –, são os posseiros e traficantes. Em muitos momentos os dois se condensam em apenas um: a violência é deles, está neles.
Enquanto o trabalho de intervenção foi se desenvolvendo, e as pessoas foram deixadas livres para falar de sua trajetória de vida na comunidade, logo, algumas demandas foram emergindo: realizar grupos com adolescentes, grupos com mulheres, desempregados. Os desejos foram surgindo: as buscas são para maior vínculo afetivo, troca de experiências, troca de saberes (receitas, tricô, TPM, etc.), possibilitar situações de comprometimento para os adolescentes. Lentamente surgem centelhas de uma comunidade – grupo que busca ser sujeito, auto-analisando-se.
Porém, existem resistências, muitos evitam ser entrevistados, não querem saber – vêem a equipe como invasores e curiosos, escapam dizendo que, já foram entrevistados. No início seguíamos a corrente de afeto: uma família indicava outra família amiga. Com o tempo este processo começou a retornar sobre si mesmo e fez-se necessário, ir em busca de outros contatos, quando começaram as resistências. E o real, de repente, emerge como em qualquer lugar: assalto ao ônibus com feridos, um motorista morto no assalto, briga violenta na praça com esfaqueamento. O estereótipo é confirmado, o imaginário é verdadeiro.
Nestes momentos, a comunidade se tranca em suas casas; portas e janelas fechadas, amedrontada, envergonhada. Assujeitando-se ao imaginário político-social e a situação do imprevisível da vida.
O trabalho está apenas no início, é um total de 3000 famílias. Nosso objetivo é um contato com pelo menos 20% a 30% desse grupo. Foram programadas devoluções parciais a cada 4/6 meses. A primeira está sendo preparada com fotos, frases da própria comunidade e possibilitando um espaço para discussão, buscando possibilidades para o uso e abuso da palavra livre, associações, percepções, recuperando a condição de cidadãos e sujeitos da própria história coletiva.
Referências
DACORSO, Stetina T. M. Projeto extensão comunitária de análise institucional. CES – JF apresentado em março de 2006. [ Links ]
DACORSO, Stetina T. M. Psicanálise e Psicanalista: Demandas, intervenções e questões. In: Estudos de Psicanálise 09/2005, nº 28. Classificação Capes/Anppep – Nacional B. ISSN: 0100-3437. Rio de Janeiro: Círculo Brasileiro de Psicanálise, 132p. [ Links ]
ETCHEGOYEN, R. Horácio. Fundamentos da técnica psicanalítica. Porte Alegre: Artes médicas, 1987. [ Links ]
FREUD, Sigmund (1938). A técnica da psicanálise. in Esboço da psicanálise. ESB. Imago. Rio de Janeiro. 1976, VXXIII. [ Links ]
FRIDMAN, Luis Carlos. Vertigens Pós-modernas. Ed.Relume-Dumará. Rio de Janeiro,2000. [ Links ]
LOURAU, René. Analista Institucional em tempo integral. São Paulo. Hucitec. 2004. [ Links ]
SANTOS, Antônio César de Almeida. Fontes orais: testemunhos, trajetórias de vida e história. Xérox cedido. 2000. [ Links ]
TEJERA, Marisa Estela. A questão do coletivo. 1992. Xérox cedido pela autora. [ Links ]
THOMPSON, Paul. A voz do passado. São Paulo: Paz e Terra. 2002. [ Links ]
Endereço para correspondência:
Stetina Trani de Meneses e Dacorso
Rua Padre Nóbrega, 35/201 - Paineiras
36016-140 - JUIZ DE FORA - MG
E-mail:stetinadacorso@ig.com.br
Recebido em 18/05/2007
* Psicóloga, Psicanalista C.B.P-RJ. Mestre em Psicologia, Professora titular do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora-MG.
**Equipe discente do curso de Psicologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora-MG: Dagmar A.Silva; Ellen A. R. Santos, Emilene O.Reis; Isabella R.Oliveira;Josiane A.Passarela; Laura G. A. Silva; Marcele O. Valente; Natália R . S. Pereira; Priscyla S. Gonçalves; Renata A. Souza; Taisa A.Serpa; Vanessa N.Ferreira; Luciana Alves Massi