SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue34From the illusions salesman to the dreams predatorThe nature of evil in intergenerational transmission author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

article

Indicators

Share


Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.34 Belo Horizonte Dec. 2010

 

 

Vicissitudes do adolescer na psicose: limites e possibilidades

 

Adolescent vicissitude in psychosis: limits and possibilities

 

 

Maria Teresa de Melo Padilha1

Círculo Psicanalítico de Pernambuco

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de fragmentos de uma história clínica, a autora aborda algumas particularidades do adolescer na psicose. Para tanto, na singularidade do caso em questão, são enfatizados quatro aspectos: os rituais, os jogos, a relação do paciente com o corpo e com a escrita. É abordado, assim, o modo pelo qual esse adolescente, em análise, caminha rumo a uma estabilização.

Palavras-chave: Adolescência, Psicose, Estabilização.


ABSTRACT

According to fragments of a clinical history , the author discusses some peculiarities of the process of being a teenager in psychosis. For this, because of the singularity of the case, she emphasizes four aspects of it: the patient's relationship with the "games", his rituals, his relationship with his body and his relationship with the writing. Thereby, she analyzes the way this patient performs his passage through adolescence towards stabilization.

Keywords: Adolescence, Psychosis, Stabilization.


 

 

Tem dias em que eu prefiro ser
só uma sombra, uma silhueta,
sem forma, sem definição, sem traço.

 

Esta epígrafe, de autoria do paciente do qual vou lhes falar, um jovem, atualmente com 22 anos, cuja análise foi iniciada aos 17, parece implicar uma recusa e coloca-nos no cerne de uma questão essencial: Quem sou eu? Ou, mais precisamente, quem sou eu para me assegurar do gozo que me diz respeito?

A tentativa de responder a essa pergunta acompanha os sujeitos por toda a vida e, tal indagação, como sabemos, só pode ser respondida parcialmente, mantendo, portanto, seu caráter enigmático. É certo, porém, que ela se inscreve de maneira privilegiada na encruzilhada da adolescência, quando o sujeito é convocado a se autorizar a uma posição, estando esta relacionada com o próprio corpo, com a diferença dos sexos, com o encontro com o outro sexo, com a finitude, com as relações com os pares, com os ideais sociais, enfim, com tudo aquilo que define o lugar de um ser no mundo. Tempo, portanto, que impõe ao adolescente o 'dever fálico', como diz Chassing (2004), com todas as alegrias e pavores que lhe são próprios.

Dois anos antes de iniciar sua análise, meu paciente, a quem chamarei Quixote, apresentava tendências depressivas, manifestando, segundo informações dos pais, uma espécie de atração pela morte. Embora esta fosse particularmente referida ao fato de Quixote ter passado uma faca nos pulsos, fazendo cortes nos braços, tal atração se fazia presente desde a infância, manifestandose na preferência por certo estilo de música, nos temas das redações e dos desenhos, chegando a chamar a atenção dos professores.

Mas foi a partir dos 15 anos que Quixote passou a fechar-se num mundo só dele, fazendo frequentemente retiros espirituais, evitando contatos sociais, afastando-se dos amigos, chegando a ficar dias dentro do quarto, fazendo jejum e sem tomar banho. Além disso, era comum passar horas jogando no computador. Tais comportamentos se fizeram presentes durante o período inicial de sua análise.

Essa fase foi precedida por um período, segundo os pais, de muita 'trela'. No início da puberdade, Quixote mentia muito, fazia pequenos furtos em lojas e supermercados, era muito agressivo tanto em casa quanto na rua, urinava no elevador do prédio em que morava, faltava às aulas e tinha sérias dificuldades na aprendizagem.

Durante a infância e início da adolescência, Quixote passou por diversos processos terapêuticos, sempre interrompidos por sucessivas mudanças da família decorrentes de transferências de trabalho do pai. Durante a última intervenção terapêutica, anterior ao início de sua análise comigo, surgiram as já mencionadas tendências depressivas. Desde então, em certos momentos, passa a falar de maneira figurada, divagando, o que dificultava seu contato social e seu desempenho escolar que fora sempre precário. Às vezes saía de casa, ficando horas perambulando pela rua e fazendo referências a grandes nomes da história. Planejava sair sem destino, afirmando ter uma missão a cumprir.

O pai de meu paciente manifestava a dúvida quanto a ser mais indicado que Quixote fosse atendido por um terapeuta, um homem, frisava. Quando indagado acerca disso, fala da sexualidade do filho sobre a qual pairava a suspeita da virgindade, a preocupação com a ausência de namoradas e a existência de amores sempre platônicos. Lembra que, numa certa ocasião, Quixote pediu dinheiro para ir a um bordel dizendo que ia "virar homem", tendo voltado bastante deprimido, estado que manteve durante muitos dias.

Na época em que iniciou a análise, Quixote dizia ter perdido a fé. Em que ou em quem? Eu me indagava. Certo dia perguntou ao pai: "Pai, por que há só um caminho?" Esta pergunta me fez lembrar daquela supostamente dita por Cristo crucificado: "Pai, por que me abandonaste?"

Filho mais velho de três irmãos, era Quixote quem, segundo a mãe, tinha com ela uma "relação especial". Poucos dias antes de eu ter recebido o telefonema da mãe solicitando uma consulta, Quixote havia lhe dado uma pedra que, segundo ele, representava ambos, mãe e filho, pedindo que ela guardasse como lembrança. Tal fato é interpretado pela mãe como uma despedida. Penso ter sido essa interpretação o que desencadeou a procura pela análise.

Entre os vários caminhos possíveis para abordar uma questão tão ampla e complexa, a do adolescer na psicose, optei, nas particularidades do caso em questão, por desenvolver quatro aspectos que se articulam intimamente e que me parecem essenciais: os rituais, os jogos, a relação com o corpo e a relação com a escrita.

 

Os rituais

Tentarei me aproximar da significação do processo adolescente, trazendo algumas contribuições da Antropologia no que se refere à iniciação ou ritos de passagem próprios de outras culturas, para articular, posteriormente, alguns aspectos da difícil construção feita por Quixote nessa travessia que exige o abandono do mundo infantil e a separação dos objetos originários, especial-mente da mãe, para entrar no mundo dos adultos. A elaboração desse luto é referida por Freud ao ressaltar que o trabalho psíquico imposto ao adolescente para alcançar a lei do desejo encarnada no tecido social requer a ultrapassagem da lei ancorada nas figuras parentais.

Os relatos etnográficos revelam um número imenso de detalhes que permeiam os rituais, entre os quais destaco alguns pontos. As cerimônias que iniciam as crianças e os púberes são quase sempre secretas, imprimem feridas no corpo do iniciado, produzindo aí uma marca, cuja significação se relaciona com a morte e com a ressurreição, sendo o isolamento também frequente e acompanhado de tabus no que se refere à alimentação e à sexualidade. A partir desses rituais,

...os iniciados morrem para a infância; as mães os choram como choram pelos mortos: não os recuperarão jamais como eram antes da iniciação... muitas vezes durante as cerimônias, os sacerdotes mostram lanças ensangüentadas que dão testemunho de se haver efetuado um corte: rompe-se bruscamente o parentesco com a mãe na qualidade de filho, passando esse jovem a ficar vinculado com os homens da tribo (TUBERT, 2000, p.25).

Voltando ao caso, destaco que uma das tentativas de isolamento efetuadas por Quixote ocorria através de enclausuramentos em mosteiros, nos quais ele permanecia dias sem falar, com grandes restrições alimentares e de movimentos, permanecendo a maior parte do tempo, deitado, no escuro. Levanto a hipótese de que esses enclausuramentos representavam uma tentativa de ritualizar sua passagem pelo adolescer.

A fragilidade imaginária e, sobretudo, simbólica não lhe permitia compartilhar os rituais construídos pela nossa cultura e, particularmente, pelo seu grupo de pares. A tentativa de construir um lugar e uma pertinência no grupo, por sua vez, parece ter sido efetuada de maneira tumultuada no período das 'trelas', quando, por meio da imitação dos colegas e de condutas transgressivas, buscava conquistar uma tipificação viril. Conforme mencionamos anteriormente, essa fase deu lugar a uma forma particular, solitária e extremamente sofrida de construir sua travessia, na qual é inevitável o confronto com o real. Não podendo fazer um corte simbólico, torna-se preciso fazê-lo no corpo.

O encontro com o vazio, até então adiado pelo narcisismo e pela promessa mantida na infância, predispõe o adolescente ao acting out. A ausência do gozo esperado coloca-o à prova e um dos caminhos pode ser buscá-lo de forma direta. Refiro-me aqui aos cortes nos braços. Esse ato é mencionado por Quixote no início de sua análise como consequência de sua "curiosidade de saber... como era a dor". Aproveito a escansão da frase e lhe sublinho a curiosidade de saber. Para saber, era preciso sentir no corpo. Esse acontecimento, silenciado durante muito tempo, volta posteriormente a partir da lembrança da letra de uma música de Renato Russo: "Enquanto eu me corte, eu me esqueço de mim." Nesse tempo de sua análise, de certa forma, seu discurso muda. Já pode falar de outras dores, referindo sua imensa confusão, sua insegurança, seu sentimento de fracasso, sua baixa estima e a angústia imensa que o inundava a ponto de se cortar, como também bater com muita força a cabeça na parede, afirmando não saber por que isso lhe acontecia. Momento de pura angústia que, como ele próprio dizia, "nada podia conter, nem a música, nem os livros, nem a poesia", recursos que ele utilizava na tentativa de se acalmar. Momento em que era invadido por um gozo que resistia a qualquer tentativa de simbolização.

Dessa maneira, tentava controlar o incontrolável, de um lado, a força da pulsão, e, de outro, o mundo da realidade com suas imposições implacáveis, tais como: passar no vestibular, tirar carteira de motorista, arrumar uma namorada, iniciar a vida sexual. Essas exigências eram extremamente ameaçadoras, pois ele não sabia o que fazer diante delas.

 

Os jogos

A busca constante pelos "games", hábito que manteve durante o período inicial de sua análise e dos quais me falava freqüentemente, envolvia Quixote num mundo imaginário de lutas, batalhas e guerras e parecia estar a serviço de encobrir o vazio simbólico com o qual se confrontava. Entretanto, a sustentação imaginária parecia falhar, o que me era demonstrado pelo nível de angústia com o qual relatava os embates travados nos jogos, marcados por múltiplos caminhos em meio aos quais poderia chegar à vitória. Mas um pequeno deslize, por sua vez, o levaria à morte.

Seu relato detalhado acerca dos ataques, defesas, do dilaceramento dos corpos, acompanhado de um misto de prazer e horror, me sugerem que Quixote se confrontava com as imagens do computador num tempo real. Para Melman (2003, p.75-76),

...o tempo real consiste em ser o testemunho bruto e súbito de um acontecimento que não foi anunciado e precedido por nenhum discurso... Essa possibilidade de assistir aos eventos em tempo real é muito semelhante à experiência do traumatismo... É uma experiência que está muito próxima da cena de horror.

Suponho também que sua experiência de iniciação sexual tenha tido esse caráter traumático, algo que naquele momento não pode ser inserido numa cadeia simbólica. Quando é possível falar desse acontecimento na análise, dá ênfase ao horror que o paralisou e o impediu de transar. Esta tentativa fracassada de inserção na vida sexual, não se inserindo em nenhum discurso, provoca angústia e fantasias de morte. Passa, então, a se deparar com o olhar do Outro, fazendo uma solução paranoica à qual recorre em muitos momentos da análise: "Sinto-me como se tivesse um abacaxi na cabeça, todas as pessoas olham para mim". Quando, na plateia de um show ou de uma palestra, afirma que o cantor ou o palestrante o olha fixamente, notando que era o único que não aplaudia. Em meio a esta interpretação, pensa: "Por que ele me olha? Será que ele quer transar comigo?" Nesse contexto, ser olhado causa mal-estar e denuncia a falta da função fálica. Para fugir do olhar do Outro, só havia um caminho, a morte.

Abordando a questão do desencadeamento da psicose na adolescência, Freire (2000, p. 163) coloca que,

o ato sexual, para um sujeito que não passou pela castração, torna-se mortífero, posto que um dos dois terá que ocupar o lugar de Objeto para Outro não barrado, e não um semblante de objeto para um sujeito desejante. Assim para o jovem psicótico, o ato sexual se mostra destruidor, razão pela qual muitas vezes o pré-psicótico, sobretudo do sexo masculino, prefere manter-se em contatos homossexuais, evitando assim defrontar-se com Outro sexo, por saber ser esta uma experiência que o pegaria totalmente despreparado, sem amparo de qualquer saber pacificador.

Dadas as particularidades de sua posição subjetiva, era difícil para Quixote situarse de um dos lados da sexuação e ter em seu pênis um órgão do qual pudesse gozar.

O fracasso de seu primeiro encontro sexual, para além do caráter traumático que possa ter tido em si mesmo, se insere numa cadeia de outros fracassos: as paixões não correspondidas, os primeiros 'foras', uma reprovação escolar, reprovação no vestibular e reprovações em exames psicotécnicos que o impediam de tirar a carteira de motorista. Circunstâncias diversas que tinham em comum a reprovação e a não autorização.

 

A relação com o corpo

Uma das dimensões da dor ressaltada por Freud no que diz respeito ao tempo do adolescer refere-se ao corpo e suas transformações, sendo o sentimento de estranheza, daí decorrente, a porta de entrada para a angústia. O sofrimento e a dor se destacam na perspectiva em que sofrer/morrer é ser destacado da própria imagem. Este é um ponto central no que se refere ao adolescente, à relação com o seu corpo e com o corpo do outro sexo, que remetem ao desejo e à castração. Nascer em um corpo não especularizável, que possa então representá-lo, tornando o corpo próprio, constitui um grande desafio com o qual o adolescente tem que se confrontar. Esta construção se mostrava particularmente difícil para Quixote, dada a falta de apoio da função simbólica da castração.

Entre muitas outras coisas, grande parte do mal-estar mencionado por Quixote era ocasionado por sua relação com o corpo. Em uma de suas sessões, diz ter tido um sonho estranho, um sonho que havia "sonhado em partes," como se fossem vários momentos da sua vida, partes da sua história, "minha vida em pedaços diferentes e em corpos diferentes". Esse sonho traz associações do seu processo terapêutico anterior no qual desenhava e mostrava os desenhos à terapeuta, afirmando ficar angustiado diante deles, nunca ficava satisfeito. Olhava e achava incompleto, sem detalhes, pobre, não conseguia passar para o papel o que queria.

Quando lhe pergunto sobre o que desenhava e lhe destaco a discordância entre o que queria transpor para o papel e o que conseguia, isto é, a discordância entre o ser e o parecer, diz: "era eu mesmo, e a sensação era a mesma que sinto quando me olho no espelho. Já tentei me desenhar muitas vezes, o semblante fica perfeito, mas os membros parecem quebrados, não consigo nem olhar". Conta então que a terapeuta lhe perguntava acerca de seus desenhos: "é isso, é aquilo?" Ao que ele respondia: "mais ou menos", não gostava de lhe dizer isso, mas dizia, porque não tinha outra resposta. Indago-lhe sobre o que não gostava, e ele responde: "do mais ou menos", porque lhe sugeria indefinição, insegurança, era como se não fosse nada. Faço aqui uma pequena digressão para ressaltar que em vários momentos de sua análise, a propósito das mais diversas situações, ele referia a si próprio, dizendo: "sou neutro, inexisto existindo, para mim tanto faz, minha opinião é não ter opinião, eu boio, deixo a água me levar".

Na sessão anteriormente relatada, associa o nada ao vazio, "é como se não fosse nada, nem mais nem menos, um vazio, um zero". Então, questiono: "e o zero, é vazio?" Responde que não sabe, mas acha que é um ponto de transição. "Talvez não seja vazio", refere-se à cadeia dos números naturais afirmando que depois do zero, tudo muda. A essa altura, lembro-me da colocação de Octave Mannoni (2004, p. 30):

Os pássaros quando estão na muda são infelizes. Os humanos também mudam no momento da adolescência, suas plumas são plumas emprestadas, e se diz freqüentemente que o adolescente que começa a perder suas antigas identificações, adquire um ar emprestado, daí as dificuldades de identificação a si, através das identificações a outros e o quanto é difícil que ela seja confortável.

Talvez então o incômodo com o 'mais ou menos', não ser nada, não existir, ser e não ser o outro, ser e não ser si próprio. Na sessão seguinte, ele me trouxe um poema de Clarice Lispector intitulado "Se eu fosse eu".

A neutralidade à qual Quixote se refere pode ser relacionada aos impasses em que se encontra a respeito da sua sexualidade e de seu sexo. "Sou neutro". O 'mais ou me-nos', isto é, nem mais nem menos, nem homem nem mulher ou ainda, mais e menos, homem e mulher, remete a uma diferença que é obturada. As respostas para tal impasse precisam vir de outro lugar que não do imaginário. Mais do que é habitual na adolescência, Quixote não sabia o que fazer diante disso. Perguntava-me onde fica a sexualidade de um jovem que não fala de sexo. Seus ensaios quanto à entrada nesse tema se fizeram inicialmente por meio de seus relatos acerca dos namoros impossíveis, de suas paixões silenciosas, dos primeiros foras e do primeiro encontro malsucedido com o Outro sexo. O corpo, entretanto, parecia em silêncio, até que um dia sou surpreendida com a seguinte afirmação: "Estou sentindo meu corpo, estou com muitas dores nas costas, sentindo umas pontadas." Digo-lhe então que seu corpo não está morto, ao que responde em tom de brincadeira: "É... acho que estou ficando velho." Nas sessões sucessivas, outras dores aparecem, provenientes de diferentes partes do corpo. O mais interessante se dá quando, numa determinada sessão, ele chega me dizendo: "Tenho um cabresto no pênis, vou fazer uma cirurgia," o que, de fato, resulta numa cirurgia de fimose para, segundo ele, tirar o "freio" do pênis.

Obviamente, essa operação da realidade não substitui as operações lógicas necessárias ao adolescente para que possa servir-se de seu corpo. O que fazer quando o corpo não está marcado pelo simbólico e o imaginário desliza? O corpo em psicanálise é o corpo erógeno e, portanto, tirar o freio do pênis requer um trabalho psíquico extrema-mente complexo. "O significante separa o gozo do corpo, o gozo que era do corpo passa a ser a satisfação de uma pulsão. Aprisionado no gozo do Outro, o que fazer com a fonte e a pressão que incidem sobre o corpo, onde não há metaforização?" (DIAS, 2000, p. 142).

 

A relação com a escrita

Situado num tempo e posição especiais, aquele que adolesce, remetido a um tempo original de falta, é levado a criar maneiras pelas quais possa responder às exigências que lhe são impostas, dentre as quais se destaca a tentativa de representar a sexualidade. Trata-se, portanto, de inventar para recriar uma falta que remete a uma redistribuição de gozo, uma resposta, justamente aí, nesse ponto em que o sujeito é interrogado sobre seu desejo.

Ao falarmos das particularidades dos rituais empreendidos por Quixote, ressaltamos o papel desempenhado pela dor, tanto aquela relacionada à abstenção e à privação, como também a dor causada em seu corpo, por meio da qual ele buscava um saber. A questão para ele era saber, entre outras coisas, quanto de sofrimento poderia suportar para libertar-se das impurezas do mundo profano, para então reencontrar-se com Deus. Deus-pai. A dor expressa, nesse contexto, um limite. Este é referido por GARCIA (2000, p. 160), ao destacar que:

...a dor está a priori na entrada do humano na linguagem, na medida em que, apesar da busca de ligação, da busca de representação, há algo que não faz ligação. O ritual de iniciação, como o próprio nome diz, vem ritualizar, fazer passar novamente, pela entrada no mundo da linguagem; vem consagrar o início como ruptura, perda que não se faz sem dor.

No limite, Quixote encontra a letra. Além do agir sobre o corpo, faz uso da escrita como tentativa de representar o irrepresentável, recurso para fazer ligação, escreve poesias. Diante dos sentimentos de incompletude, estranheza, diante da inconsistência do Outro e, consequentemente, da sua própria, enfim, da dor e da angústia que o assolavam, Quixote escrevia sobre o isolamento, a fé, Deus, o sistema social, a natureza, a alienação, a vida, a morte e o amor, este, sempre impossível entre um homem e uma mulher. Encontra a letra, tal qual é definida por Lacan, como a dobradiça da passagem do ser ao campo do significante, com suas duas faces, uma voltada para o real e a outra para o Outro do significante; a primeira do lado do corpo, no qual, literalmente, ele tenta imprimir uma marca, um traço, fazendo cortes pelo corpo, e a segunda, do lado do simbólico, buscando criar uma estrutura de ficção que o ajudasse a subjetivar uma perda: "Pai, por que me abandonaste?" Considero os dois movimentos como duas faces da mesma questão, a necessidade de inscrição decorrente dos momentos de passagem.

O recurso da escrita, utilizado por Quixote, como se sabe, bastante comum entre os adolescentes, era anterior a sua entrada em análise, mas foi a partir de então que ele passou a falar do que escrevia, fato que me faz pensar acerca de uma possível mudança de endereço. A princípio, dizia escrever para ninguém, outras vezes, que escrevia para si mesmo. Na análise, pela transferência, é a mim que ele passa a endereçar os seus escritos. Durante um longo período de seu processo, me atualiza sobre o que havia produzido entre uma sessão e outra. Os temas referidos a partir da poesia vinham, como ele próprio dizia, "em pedaços, com frases soltas, pouco compreensíveis", mas, gradativamente, foram produzindo um efeito de significação, recaindo este inicialmente sobre sua perda de sentido na vida.

Abrimos, assim, caminhos outros que têm podido, pelo menos por enquanto, não levá-lo à morte, seja pela mortificação ou mesmo pela passagem ao ato, o suicídio, fantasma da mãe e nem à homossexualidade, fantasma do pai. Penso que seu escrito foi a base sobre a qual um discurso vem se estabelecendo, engendrando um sentido que o tem orientado melhor em sua relação com o outro, permitindo assim, uma solução mais eficaz do ponto de vista do laço social.

Alvarenga (2000, p.20), em um comentário a respeito das estabilizações possíveis na psicose, menciona que o escrito pode obter "o lugar de um S1 a partir do qual uma cadeia pode ser construída, cadeia que faz algum tipo de laço com o Outro." Ressalta ainda que "a escrita das letras do psicótico não é em si mesma um significante estabilizador, a não ser que suporte sobre si um significante produzido pelo sujeito, e que tenha um endereço."

Aquilo que Quixote escrevia, a princípio, em segredo; passou a ter um destino, sendo inicialmente falado a mim e, posteriormente, a alguns professores da Universidade que o classificaram de romântico. Cabe ressaltar que essa classificação apaziguou uma indagação insistente que ele me dirigia: "O que tenho? Qual é o meu diagnóstico, sou louco?"

Quixote segue em sua travessia, já teve sua primeira namorada e conseguiu a autorização para dirigir. Tomar, entretanto, as rédeas da sua vida tem sido um ensaio difícil, com avanços e recuos. Até bem pouco tempo, diante de certas injunções, o Outro ameaçava desaparecer e ele prenunciava a entrada numa crise. Atualmente, encontrase mais estável.

A escrita de poesias já não se faz tão presente na vida de Quixote, sua inserção no mundo acadêmico tem requerido dele um outro tipo de escrita que o confronta tanto com a necessidade quando com o desejo de se fazer compreender. A avaliação e o olhar do Outro o ameaçam e o angustiam, mas já não o paralisam.

O fato da escrita, na análise de Quixote, ter tido, até então, um papel fundamental, me leva a questionar acerca da produção deste texto. Abordar o que impele um analista a escrever e, mais precisamente, a escrever sobre determinados temas ou determinados pacientes, transcende ao que me proponho no momento. Gostaria apenas de enfatizar que, no limite, também eu me reporto à letra, para, quem sabe, ajudar a representar algum ponto desse enigma que quer se inscrever.

 

Referências

ALVARENGA, E. Estabilizações. In: Curinga: há algo novo nas psicoses. Belo Horizonte: EBP, 2000. n.14, p.18-23.         [ Links ]

CHASSING, L. "Mais tarde" é agora. In: CORRÊA, A. I. (Org.) "Mais tarde" é agora! Ensaios sobre a adolescência. Salvador: Ágalma, 2004. p.37-45.         [ Links ]

DIAS, S. O esquizofrênico: entre o real do corpo e o Outro do significante. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE E SUAS CONEXÕES, 2000, Rio de Janeiro, O adolescente e a modernidade (Anais). Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000, Tomo II, p. 140-152.         [ Links ]

FREIRE, M. O desencadeamento da psicose na adolescência. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE E SUAS CONEXÕES, 2000, Rio de Janeiro, O adolescente e a modernidade (Anais). Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000, Tomo II, p. 159-168.         [ Links ]

GARCIA, A. A dor do adolescer. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE E SUAS CONEXÕES, 2000, Rio de Janeiro, O adolescente e a modernidade (Anais). Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000, Tomo III, p. 157-163.         [ Links ]

MANNONI, O. A adolescência é analisável? In: CORRÊA, A. I. (Org.). Mais tarde ... é agora! Ensaios sobre a adolescência. Salvador: Ágalma, 2004. p. 19-34.         [ Links ]

MELMAN, C. Novas formas clínicas do terceiro milênio. Porto Alegre: CMC, 2003.         [ Links ]

TUBERT, S. O enigma da adolescência: enunciação e crise narcísica. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICANÁLISE E SUAS CONEXÕES, 2000, Rio de Janeiro, O adolescente e a modernidade (Anais). Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000, Tomo III, p. 23-39.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Tito Rosas, 113/1202 – Parnamirim
52.060-050 - Recife/PE
E-mail: mariateresapadilha@yahoo.com.br

Recebido: 01/10/2010
Aprovado: 28/11/2010

 

 

1 Psicóloga e psicanalista em formação no Círculo Psicanalítico de Pernambuco. Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco.

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License