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Estudos de Psicanálise
Print version ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.34 Belo Horizonte Dec. 2010
O coelho de Alice: considerações acerca do tempo na psicanálise
The rabbit of Alice: considerations about time in psychoanalysis
Vanessa Campos Santoro1
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Através de um fragmento de caso clínico, a autora tece considerações acerca do tempo na psicanálise. Da mesma forma que o Outro primordial antecipa às pressas um sujeito no real fragmentário do corpo do bebê, o analista aposta que advirá o sujeito do inconsciente nas escansões significantes. Antecipa no ato analítico, um efeito de sujeito produzido no só-depois, e espera, sem pressa, que o sujeito ocorra nos intervalos, nos tropeços, na surpresa e nas quedas.
Palavras-chave: Antecipação, Transitivismo, Tempo lógico, Sujeito do inconsciente.
ABSTRACT
The author makes considerations about the time in psychoanalysis based on a clinical case. Like the Primal Other that quickly anticipates a subject at the baby’s body, the psychoanalyst believes that the subject of the unconscious will arise between the significant intervals. It anticipates, at the analytic act, an effect of subject at the only-after, and waits, without hurry, the subject to occur in the gaps, in the false step, in surprise and in the fall.
Keywords: Anticipation, Transitivism, Logical time, Subject of unconscious.
Se o tempo de uma análise é o da transferência que se conta em tempos lógicos, a esperança com a qual contamos é a de um percurso coordenado aos vetores componentes do ato analítico.
Nilza Erickson
Ai os meus bigodes... É tarde, é tarde até que arde...
Ai, ai, meu Deus, alô, adeus, é tarde, tarde é tarde.
Não, não, não, eu tenho pressa, pressa...
Ai, ai, meu Deus, alô, adeus, é tarde, é tarde, é tarde.
(Fala do coelho branco em Alice no País das Maravilhas)
Uma analisante, Alice, seis anos, nos diz: "Não me empurra, quero meu tempo. Até você...", quando ao término das sessões, a analista a convida a guardar os brinquedos. A constituição do sujeito se dá a partir do Outro. A relação mãe ou Outro primordial e bebê remete-nos a duas noções básicas em psicanálise, o tempo e o corpo, através de dois conceitos fundamentais: o transitivismo e a antecipação.
Desde Wallon (1965), estuda-se o transitivismo entre crianças pequenas, quando, por exemplo, uma bate na outra e choram as duas. O afeto impulsiona a mãe a fazer uma hipótese sobre o machucar-se de seu filho, dando significação e corpo. Esse afeto vem de um real que o bebê não pode compreender e nem falar, daí se identificar com o que a mãe fala sobre isso e assim se descobre um corpo doendo. A hipótese de saber da mãe sobre o afeto experimentado no corpo do filho se articula com o desejo da mãe, que retorna como uma demanda do filho para ela. É como se o bebê pedisse para sua mãe ler para ele sobre um saber que ele próprio não tem, mas experimenta no real de seu organismo; através do transitivismo, a mãe lhe dá possibilidade de simbolização, colocando-se no lugar do filho para exprimir o que ele deveria sentir.
Diante da imaturidade orgânica do bebê, há a antecipação de um investimento em uma imagem corporal total pelo Outro primordial. O bebê tem que fazer um movimento diante da interrogação "o que querem de mim?"; a qual se situa entre a suposição do que o Outro vê nele e o que supõem que o Outro terá querido dele. O tempo entre esses dois pontos fará o bebê se precipitar em adivinhar o que o Outro espera dele. Portanto, o bebê necessita do tempo da pressa para realizar sua antecipação e necessita do Outro para saber sobre seu corpo.
Nessa alienação fundamental, qual o lugar do pai? A função paterna, como terceiro elemento entre desejo materno e corpo do bebê, tem também o seu tempo de aparecer, criando brechas e fendas, marcando a separação benéfica e salvadora do fazer-se Um com a mãe. Da mesma forma que o Outro primordial antecipa um sujeito no real fragmentário do corpo do bebê, o analista aposta que advirá o sujeito do inconsciente nas escansões significantes. Antecipa no ato analítico um efeito de sujeito produzido no só -depois e espera, sem pressa, que o sujeito ocorra nos intervalos, nos tropeços, na surpresa e nas quedas.
Que tempo é este?
Pensamos no tempo lógico apresentado nos Escritos, em "O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada";. Lacan (1998, p.204) nos diz que "Mostrar que a instância do tempo se apresenta de um modo diferente em cada um desses momentos é preservar-lhes a hierarquia, revelando neles uma descontinuidade tonal, essencial para seu valor";.
Cada uma dessas divisões do tempo lógico tem uma função, e cada um desses momentos é reabsorvido na passagem pelo seguinte. O valor de verdade da conclusão do tempo lógico depende dos outros dois tempos. É uma certeza antecipada por um ato que se funda em instâncias temporais.
Segundo Freud, em O Inconsciente,
Os processos do sistema inconsciente são intemporais, isto é, não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo, não têm absolutamente qualquer referência com o tempo. A referência ao tempo vincula-se, mais uma vez, ao trabalho do sistema consciente (FREUD, 1976, p.214).
Lacan, ao considerar essa atemporalidade vai, nos falar do tempo do inconsciente como um tempo lógico e na lição de 15/06/1955, do Seminário O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, diz que fez o tempo lógico expressamente para distinguir o imaginário do simbólico.
Temos três aspectos a considerar no tempo lógico: o instante de ver, o tempo de compreender, o momento de concluir. O ato é necessário para que a dedução seja feita. O tempo lógico não é, portanto, uma lógica do tempo e, sim, uma lógica do ato determinada pelos tempos.
Segundo Porge (1994), a noção do tempo para a psicanálise não se limita ao só -depois. Além da sincronia e da diacronia, Lacan acrescenta a pressa. Unindo lógica e tempo, ele aponta duas escansões. No só -depois verifica alguma coisa que é atingida antes mesmo de poder ser verificada. É a verificação da antecipação da verdade. Conclui o autor que há um espaço entre a verdade e sua verificação, espaço que se reduz à dimensão temporal da pressa.
Lacan desenvolveu a noção de antecipação: é a precipitação do sujeito diante do Outro. "...O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação"; (LACAN, 1998, p.100).
No texto "Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e Estrutura da Personalidade"; (1960), ele veicula um esquema imaginário e ilusório na formação do eu e na antecipação de sua imagem pelo Outro, simbólico. Então, se no primeiro texto, a antecipação é da ordem do imaginário, no segundo, existe também uma antecipação simbólica. A função da pressa é decisiva no estádio do espelho. Essa pressa instaura outro tempo para a psicanálise, o tempo da suposição entre a precipitação e sua verificação.
Bernardino (2004) nos diz que devemos considerar mais algumas variantes em relação ao tempo na infância. Há um tempo do estabelecimento da estrutura, sincrônico, que implica a inscrição ou não do Nome do Pai, tempo lógico, que depende das condições particulares de cada um perante o encontro com a linguagem. Existe um organismo submetido às contingências reais de um crescimento, que dá suporte imaginário ao sujeitoque pode ou não advir. É nos hiatos desses tempos que o sujeito pode emergir ou não.
Há, nesses momentos, a necessidade de um remanejamento da significação do falo de acordo com diferentes faltas, tendo como consequência que a inscrição significante necessita de confirmações posteriores procedentes de um agente maternante portador de significantes e, mais, que há uma abertura para a palavra e seus efeitos durante essas suspensões.
Voltemos a Alice que no País das Maravilhas vai atrás do enigmático coelho branco de fraque e cartola buscando significações e cai no real, sustentando-se pelas fantasias. O coelho lhe aparece e escapa, sempre correndo, de relance, como o obscuro objeto de desejo.
Quanto à analisante Alice, do alto de seus seis anos, repete comigo, na transferência, a história dos empurrões que leva na escola para aprender a ler e em casa para acompanhar e corresponder a todas as atividades que lhe são impostas pelos pais.
Em um sonho, Alice me conta "sonhei que uma vaca brava corria atrás de mim. Queria me pegar e me escondi embaixo do seu divã. Quase que ela me pega...";.
Pressionada pelo olhar do Outro no instante de ver, inscreve um significante que paralisa o tempo de aprender. Busca significados para tanta pressa do Outro que a quer diferente e faz sintoma no tempo de compreender. Pega uma borda do divã, o escondidinho, onde brinca, elabora suas inibições, sonha e ri das vacas bravas, que descobre estarem dentro dela mesma.
A analista faz a mediação das pressões externas da família e da escola, para que Alice possa, a seu tempo, desvencilhar-se do sintoma que a paralisa e que adveio quando o pai a colocou numa escola bilíngue para ser alfabetizada. E principalmente o "até você!..."; a analista escuta dentro de uma perspectiva ética do que o Outro quer de mim e retorna para a analisante seus próprios significantes que vão ajudá-la a trabalhar, debaixo do divã, no tempo lógico da análise, sem pressa e sem coelhos.
Referências
BERNARDINO, L. M. F. As psicoses não decididas da infância: um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004. [ Links ]
FREUD, S. [1915]. O inconsciente. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XIV, p.185-245. [ Links ]
LACAN, J. [1949] O estádio do espelho como formador da função do eu. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 96-103. [ Links ]
______. [1945] O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 197-213. [ Links ]
______. [1960] Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: Psicanálise e estrutura da personalidade. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 653-691. [ Links ]
______. [1954-55]. O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. [ Links ]
PORGE, E. Psicanálise e tempo: o tempo lógico em Lacan. Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 1994. [ Links ]
WALLON, H. (1934). Los orígenes del carácter en el niño. Buenos Aires: Lautaro, 1965. [ Links ]
Endereço para correspondência
Rua Levindo Lopes, 333/1008 - Savassi
30140-170 - Belo Horizonte/MG
E-mail: vansantoro@uol.com.br
Recebido: 17/09/2010
Aprovado: 23/11/2010
1 Psicóloga, psicanalista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.