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Estudos de Psicanálise
Print version ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.35 Belo Horizonte July 2011
"A vida se engole a seco": reflexões sobre a depressão na contemporaneidade
Life without hope: reflections about depression in contemporaneity
Rosa Maria Gouvêa Abras
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
A autora analisa as relações da depressão com a pós-modernidade. Conceitua depressão e depressividade estabelecendo as diferenças quanto ao funcionamento dos registros simbólico e imaginário. Estabelece a importância do discurso familiar e passagem para o pai na constituição destas patologias.
Palavras-chave: Pós-modernidade, Depressão, Depressividade, Discurso materno, Trauma.
ABSTRACT
The author analyses the relation between depression and post-modernity. She defines the concepts of depression and depressive condition, establishing the differences on the function of the symbolic and the imaginary registers. She also states the importance of the familiar discourse and the direction towards the father, seen in the constitution of such pathologies.
Keywords: Post-modernity, Depression, Depressive condition, Maternal discourse, Trauma.
Recente relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2009) coloca a depressão como a quarta doença contemporânea mais frequente e alerta que, nos próximos anos, a tendência é que ela venha a ocupar o segundo lugar. Isto quer dizer que, dentro de pelo menos dez anos, nós teremos uma verdadeira legião de deprimidos, zumbis pós-modernos, sujeitos incapacitados física e mentalmente para o amor e o trabalho.
Muito embora o homem contemporâneo tenha acesso, cada vez mais, aos bens de consumo e aos progressos da ciência e tecnologia, nunca o bem-estar esteve tão fora do alcance da humanidade. Tomemos como exemplo a internet. O relacionamento através das redes sociais não tem trazido uma melhora qualitativa nos vínculos pessoais. Pelo contrário, hoje se vê o fenômeno da "multidão solitária".
A depressão está se constituindo como a grande neurose contemporânea. Numa sociedade cada vez mais narcísica e consumista, onde o sofrer está fora de moda, o sujeito é culpabilizado por representar o fracasso ante o palco espetacular. O deprimido denuncia o que, na sociedade, não vai bem. A depressão requer um tempo e um espaço subjetivo de elaboração, tempo e espaço que não são mais concedidos pela sociedade do espetáculo e do consumo. Tudo hoje deve ser "light" e "fast". Novos ideais de saúde e bem estar não admitem mais a dimensão do sofrimento como condição básica existencial do ser humano. Numa sociedade cada vez mais narcisista, onde o sofrer esta fora de moda, o sujeito deve ser culpabilizado e, imediatamente, medicado.
"Com relação ao sofrer, especificamente, percebemos que uma cultura que tende a desprezar as dimensões simbólicas da vida, inerentes a todas as formas de criatividade – estas intrínsecas às possibilidades de enfrentamento de qualquer condição adversa e/ou de sofrimento –, busca, assim, aviltadamente agir nas dimensões do real destes afetos, o que implica um esvaziamento simbólico que redunda infinitamente em torno de um vazio, o que, por sua vez, configura o semblante de um mundo que apreendemos como depressivo." (Tavares, 2009, p.131).
A medicação excerbada resulta numa apropriação dos corpos e das subjetividades, na medida em que, por este viés, se concretiza o verdadeiro controle das individualidades. "... a dor do desamparo pode ser recusada pela transformação da alquimia dos humores." (Birman, 2006, p.54).
Os medicamentos são, muitas vezes, necessários, principalmente no caso de psicoses, mas o que ocorre, frequentemente, é uma banalização do diagnóstico de depressão e uma urgência em direção ao tratamento medicamentoso.
Nós, os psicanalistas, não somos adeptos da visão biologizante da subjetividade e, muito menos, acreditamos na felicidade via medicação. Pelo contrário, para nós, a subjetividade se estrutura na falta e, portanto, apenas o trabalho árduo de confrontação com a castração pode levar a uma mudança duradoura.
Freud coloca como objetivo de final de análise a capacidade de amar e trabalhar. Em um final de análise, se um sujeito não está livre de toda angústia, ele pode, pelo menos, lidar de forma menos conflitiva com suas questões. Seus objetos internos se mostram mais apaziguados.
O sujeito reconhece a falta (a castração), mas não se deixa mais paralisar por ela. Se o final de análise tem a ver com a capacidade de amar e trabalhar, isto só pode ser conseguido graças ao atravessamento da fantasia. O sujeito pode, a partir daí, lidar criativamente com seus fantasmas e exercer um maior poder sobre a economia do prazer e do gozo.
Segundo Henry Ey (1965, p.208), psiquiatra e psicanalista, notamos que o deprimido está saindo da crise quando ele recupera o apetite e diminui a insônia. Acrescentamos que ele se mostra, então, mais apto para o jogo e para o lúdico. Na análise se instala, finalmente, a associação livre.
Voltando ao alerta da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2009), observamos que, juntamente com os drogaditos, os "panicados" e os miseráveis, os deprimidos se tornaram agora os grandes excluídos da sociedade. Temos de nos colocar a trabalho. Para mim é uma oportunidade de continuar uma linha de pensamento que venho desenvolvendo desde a década passada. Em 1999, juntamente com a colega Nina Rosa Sanches (ABRAS; SANCHES, 1999), escrevi o artigo "Os Sobreviventes; reflexões para uma clínica contemporânea". Neste artigo falávamos sobre a clínica atual, sobre os pacientes turbulentos e atuadores, assim como aqueles pacientes deprimidos, que chegavam aos nossos consultórios com este rótulo e já medicados. Nós dizíamos que estes pacientes não sonhavam, não faziam atos-falhos e não fantasiavam. Na maioria das vezes , apresentavam um tipo de pensamento operatório bastante semelhante aos pacientes psicossomáticos.
Tanto tempo depois daquele trabalho, o que mudou? Os medicamentos estão mais numerosos e potentes, já se fala na descoberta do gene causador da depressão; as pessoas consomem mais e, no entanto, continua chegando aos nossos consultórios este contingente de mortos-vivos pós-modernos.
Hoje pensamos que, mesmo as atuações violentas dos pacientes turbulentos, se apresentam como defesas contra o afloramento da angústia e da depressão. Para ilustrar o que estou falando, apresentarei uma breve vinheta clínica:
O paciente tem 43 anos. Trabalha muito, come muito, fuma e bebe muito. O sexo é compulsivo e sem prazer. Sonha que ele e a analista estão atravessando uma ponte para chegar ao ponto de ônibus. Sente angústia porque ao lado da ponte tem um abismo muito profundo. No caso do paciente, não há depressão manifesta. Ela está defendida ainda pelas compulsões e atos-sintomas.
Mas do que se trata na depressão? Sabemos que a depressão é desencadeada por uma perda real ou imaginária, perda de um objeto ou de um ideal. Segundo Freud (1996), em seu artigo "Luto e Melancolia", a depressão ocorre quando o trabalho do luto não chega a bom termo. Freud (1997), anteriormente, escreveu o "Rascunho G". Segundo o modelo ai descrito, a depressão é uma hemorragia interna, que ocorre quando a excitação sexual física não encontra o seu correspondente psíquico. O pensamento de Freud é válido até hoje, pois na depressão há perda simbólica e pobreza imaginária. A hemorragia interna impede o paciente de pensar, de fantasiar e de se relacionar com o mundo dos objetos. O deprimido gasta o pouco de energia que lhe resta tentando estancar a hemorragia. A deficiência dos sistemas simbólico e imaginário leva ao discurso monótono e esvaziado de afeto. Ao mesmo tempo, a deficiência do simbólico e do imaginário deixa o sujeito mais vulnerável e desamparado frente ao real traumático.
Tenho pensado que a depressão é mais severa e mais duradoura quando existe previamente um fundo, um núcleo de depressividade. Vamos ilustrar:
Paciente do sexo feminino de 40 anos. Em um curto período de tempo sofreu severas perdas e ficou muito deprimida. Os familiares levaram-na ao psiquiatra... Respondeu muito bem aos medicamentos. Tempo depois, iniciou sua análise. Está em constante progresso.
Sente-se melhor, retomou sua vida afetiva e profissional. Suspeitei, inicialmente, de uma defesa maníaca, mas os ganhos têm-se mostrados significativos. Ela relata que foi uma criança feliz e que sua mãe sempre dizia que ela era a alegria da casa.
Por que algumas pessoas, mesmo tendo sofrido pesadas perdas, conseguem se recuperar onde outras eternizam o sofrimento?
Outra paciente de 40 anos apresenta uma longa história de depressão. Os remédios não fazem efeito. O psiquiatra já avisou que vai "jogar a toalha". Durante as sessões percebo que ela quer, inconscientemente, que eu desista dela. Apesar de ser uma pessoa bonita, inteligente e interessante, não arruma um namorado e não se recupera de um divórcio ocorrido há mais de 10 anos. Passa por apertos financeiros e não consegue gostar da sua profissão. Queria ser engenheira, mas sua mãe lhe disse que esta era uma profissão muito masculina. Relata que foi uma criança melancólica, que nunca acreditou em Papai Noel. Ela me disse certa vez: "Relacão sexual é dois pedaços de carne atritando." Neste caso, há humor depressivo desde a infância e uma forte identificação com a mãe mártir e submissa.
O que quero dizer é que a depressão se instala em um fundo de depressividade. Quando este não existe, frente a uma perda a pessoa fica triste, fica com raiva, mas faz o luto.
A obsessividade também é freqüente nestes pacientes e familiares. Alguns autores chegam a falar em "estrutura obsessivo-melancólica". Se a depressão é reação a uma perda mal elaborada, a depressividade é um defeito, um "deficit", que corresponde ao disposicional das séries complementares. Agora chegamos a um ponto importante: o discurso familiar como gerador da tendência a depressividade. Há famílias depressivas. Neste aspecto, é como se a depressividade fosse uma doença hereditária. Trata-se de um tipo peculiar de discurso que veicula uma mensagem que atravessa gerações e que, na maioria das vezes, é transmitido pelo discurso materno: "A vida se engole a seco", dizia sempre a mãe de uma paciente. "O que tem de ser feito, tem de ser feito". Não há nada que possa ser suavizado. É um mandato superegóico. A agressividade se volta contra o próprio Eu.
Um paciente, que alcançou durante sua análise grande sucesso profissional graças ao seu talento e seu esforço, dizia da sua incapacidade de ficar feliz e desfrutar do que conquistou. Ele se lembra de uma situação da infância. "Eu estava alegre, cantando e correndo pela casa, quando minha avó me falou: ‘Cuidado, passarinho que canta muito é sinal de bodocada’".
A mensagem depressiva é, também, paranóide. Tudo de bom tem mal atrás.
Uma paciente relata que comprou uma casa nova. Chamou sua mãe e disse: "Olha mamãe como o quintal é grande e como bate sol. É ótimo para secar roupas." A mãe retrucou: "É minha filha, você vai ver quando chover."
A mesma paciente conta para a mãe que arrumou uma empregada nova: "Ela é tão boazinha, organizada, prestativa e cozinha bem." A mãe responde: "É minha filha, vassoura nova varre bem."
Além do discurso familiar depressivo, observamos, ainda, tendo em mente o disposicional nas séries complementares, que este tipo de paciente foi, durante algum tempo da sua infância, altamente investido. Este investimento foi, por algum motivo, interrompido. Andre Green nos fala da "Mãe morta". Trata-se da mãe que viveu um luto prolongado ou um processo depressivo e, por isto, se afastou emocionalmente da criança.
Penso também que algo pode ter ocorrido na passagem da mãe para o pai. Este não investiu "o filho". Um paciente relata: "Meu pai não foi sensibilizado pela paternidade. Ele não tinha prazer de ficar comigo. A única coisa que eu aprendi com ele é que um homem deve ser provedor."
Roland Chemama em seu livro "Depressão, a grande neurose contemporânea", diz que no deprimido teria ocorrido uma foraclusão do falo. É o que explica as perturbações na vetorização do tempo e a extensão do desinvestimento narcísico. Chemama (2007) fala que o deprimido depende da imagem do pai e esta se acha, em nossa estrutura social, profundamente degradada. A depressão está relacionada ao valor fálico; a questão do tempo está ligada à relação problemática com o próprio significante, à medida que é o significante que dá à coisa sua dimensão temporal. Na depressão há um tipo de recusa da realidade, medo do futuro, desinvestimento do desejo e paralisia da ação. Para o autor, a análise poderia servir de suplência a esta foraclusão do falo. Esta análise deve ser inventada. "Ser ouvido, estabelecer um endereçamento a um outro mais verídico, pode estabelecer uma reação do deprimido com o mundo, pois a analise é um tipo de laço social."(CHEMAMA, 2007, p.19).
Antes de terminar, gostaria de falar, ainda que brevemente, sobre a questão da transferência. Se toda demanda é demanda de amor, no caso do deprimido ela é exorbitante e ambivalente. Acolher, sem responder a demanda, torna-se um desafio constante para o analista.
Se a análise caminha bem, se o paciente está transferido, observa-se que ele já pode jogar. Como dissemos anteriormente, surgem a associação livre e os sonhos. Nos casos bem sucedidos, muitas vezes, o paciente abre mão da medicação inclusive com o aceite do médico.
O deprimido está todo o tempo colocando à prova o investimento do analista. Ele quer testar o limite, quer saber até quando o analista agüenta. Este tipo de paciente apresenta tendência à Reação Terapêutica Negativa. Sem esperança e sem utopia, ele corrói o desejo de analista. Sem esperança e sem utopia, o deprimido faz o analista se confrontar todo o tempo com a impotência e o fracasso.
Por este viés podemos pensar aquele famoso paciente de Freud, o Homem dos Lobos. Freud (1996) em momento algum nos dá o diagnóstico. Ele apenas diz que houve uma neurose obsessiva na infância que se curou espontaneamente e que deixou uma seqüela. Que seqüela é esta? Ele não diz. Podemos pensar em uma certa depressividade? Vale lembrar que o Homem dos Lobos, antes de procurar Freud, tinha passado um tempo internado no hospital de Kraepelin devido a uma crise de depressão. Freud recebeu o Homem dos Lobos com muito prazer. Achou-o inteligente, culto e educado. Parou a análise de Helen Deustch para colocá-lo em seu lugar. Após quatro anos de tratamento marca a data do término, alegando que o paciente estava instalado na passividade. Poderia o Homem dos Lobos ter sido este tipo de paciente sem esperança e sem utopia que corrói a contratransferência?
Com os pacientes deprimidos crônicos em análise, o analista pode correr o risco de tentar provar que a vida é bela ou, simplesmente, por cansaço, desinvestir e abandonar o paciente. Estas duas condutas devem ser evitadas. O analista não deve ser cooptado pelo mortífero e pela desistência.
Para finalizar, devemos ouvir as palavras dos grandes mestres. Winnicot dizia: "Quando inicio uma análise, quero levá-la até o fim e continuar vivo". Lacan apenas nos diria: "Não ceder do seu desejo."
Referências
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Endereço para correspondência
Rua Alagoas, 1270/301 – Savassi
30130-160 - BELO HORIZONTE/MG
Tel.: (31)3227-9514
Recebido: 23/02/2011
Aprovado: 15/04/2011
Sobre a Autora
Rosa Maria Gouvêa Abras
Psicóloga. Psicanalista. Membro Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.