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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.35 Belo Horizonte July 2011

 

 

É possível haver a transferência analítica em uma instituição de saúde mental?1

 

Is it possible that analytical transference occurs in a mental health institution?

 

 

Sonia Guiomar Martins Seixas

Círculo Psicanalítico da Bahia
American Association for Psychoanalysis in Clinical Social Work

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo tem como finalidade aprofundar os conhecimentos relativos à transferência e às suas vicissitudes em atendimentos psicanalíticos em uma Instituição de Saúde Mental do SUS, a partir da experiência da autora, uma assistente social psiquiátrica em formação psicanalítica, profissional efetiva da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia, lotada naquela Unidade de Saúde Mental, onde exercitou a sua prática clínica, sob supervisão entre 1991 e 1996. Entre 1997 e 2003, atuou como integrante da equipe do Núcleo de Psicanálise. Diferentemente dos tradicionais consultórios, onde o psicanalista e o analisante possuem a determinação a respeito da condução do trabalho, o analista faz a seleção da sua clientela, bem como o analisante tem um contato direto com o analista, sem intermediações. A instituição aparece como legítimo espaço de tratamento e, ao mesmo tempo, deixa dúvidas a respeito das possíveis interferências na relação transferencial. Vale ressaltar que a prática naquela instituição de saúde mental, apoiada na psicanálise, proporcionou um riquíssimo exercício da clínica, dirigida à demanda do sujeito, que trazia no seu discurso a sua realidade de vida nos mais diversos contextos, o que valida a necessidade do analista em conhecer e reconhecer as diversidades  multiculturais existentes.

Palavras-chave: Transferência, Psicanálise, Instituição, Saúde Mental.


ABSTRACT

The present paper aims at deepening the knowledge on the transference and its variations on the psychotherapeutic services on a public Mental Health Hospital in Salvador, Bahia, Brazil form the experience of the researcher, a psychiatric social worker and psychoanalyst, in this institution. The study was carried out during the researcher’s training in psychoanalysis. She did her clinical training in psychoanalysis under supervision between the years 1991 and 1996. After that time she worked as a psychoanalyst, full member of the sector of psychotherapy in that Mental Health Institute between 1997 and 2003. In conventional offices, the psychoanalyst and his patient have the determination about the conduction of treatment, where the psychoanalyst makes the selection of his patients, as well as the patient has a direct contact with the psychoanalyst, without any interference. In Mental Health’s Institutions, the institution appears as a legitimate treatment space and, at the same time, raises questions about the possible interference in the relationship transference. It is noteworthy that the practice of psychoanalysis in this institution provided a rich clinical practice, addressed to the person’s inner world, while individual being, in his speech that brings the reality of his life in various contexts, which validates the psychoanalyst need to know and recognize the existing multicultural diversity.

Keywords: Transference, Psychoanalysis, Institution, Mental Health.


 

 

"Tanto a descoberta freudiana quanto a contribuição lacaniana não são particulares,
mesmo porque Freud dividiu o seu patrimônio intelectual com as suas pacientes
e Lacan com Freud, mas aqueles que puderam conviver com a pessoa de Freud
e a pessoa de Lacan, são privilegiados e tanto mais se enriquecem, quanto mais dividem,
com os seus contemporâneos as experiências que tiveram com eles.
Não se tem o domínio sobre a criatividade, mesmo porque o prazer de criar
é maior que o prazer de possuir o objeto criado.
Não é a toa que os artistas vendem as suas obras."

Luiz Carlos Nogueira

 

Introdução

O presente estudo teve como "cenário" uma instituição de saúde mental do Sistema Único de Saúde do Estado da Bahia, o SUS, onde a autora, uma assistente social psiquiátrica, em formação psicanalítica, exercitou a sua prática sob supervisão no período compreendido entre 1991 e 1996. É importante relatar essa experiência, pelo fato daquela instituição ser considerada como uma "escola", com uma grande diversidade de pacientes, no que concerne às classes econômico-social-cultural, à etnia, ao gênero e credo, dentre outras, o que, sem dúvida, possibilitou um privilegiado exercício da prática clínica. Essa experiência foi exercitada no ambulatório de adultos, na sua maioria, portadores de transtornos neuróticos.

A teoria e a prática da psicanálise foram destacadas naquela instituição no início da década dos anos 90 (século XX), quando um diretor, médico e psicanalista, ao assumir o cargo, criou o denominado "Núcleo de Psicanálise", com o apoio e a participação dos profissionais dos diversos setores daquela unidade de saúde mental.

As atividades do "Núcleo de Psicanálise" consistiam em apresentações de trabalhos teóricos e estudos de casos clínicos, relatados por colegas e convidados das instituições psicanalíticas da Cidade de Salvador. Os participantes tinham a oportunidade de observar as entrevistas feitas com os psicóticos que agudizavam e, portanto, se encontravam em regime de curta internação, que durava, em média, quinze dias.

Aos "aspirantes a analistas" foi oferecida a oportunidade de exercitar a clínica em um ambiente menos tradicional da psicanálise, com uma volumosa demanda de pacientes.

Vale ressaltar que havia a exigência da análise pessoal, estudo teórico, bem como da supervisão por parte de um analista reconhecido pela comunidade.

 

A transferência em Freud

Do ponto de vista histórico, a transferência nada mais é do que o inconsciente. Freud concebeu a sua importância para o processo analítico, esclarecendo que se tratava de um fenômeno banal, automático, que acoplava o passado e o presente por meio da sobreposição do objeto original do passado ao presente.

As inserções da transferência e da associação livre permitiram que Freud pudesse marcar a diferença existente entre a psicanálise e o método catártico de Josef Breur, médico e fisiologista austríaco, e com a hipnose de Jean-Martin Charcot, médico e cientista francês. Ambos os métodos tinham como princípio a sugestão.

Através do relato de J. Breuer, acerca do primeiro caso dos estudos sobre a histeria, destacando a sua paciente cognominada de Anna O. em 1882, Freud passou a indagar sobre esse fenômeno, que viria a ser reconhecido como a transferência.

Breuer sempre quisera acreditar, contestando a opinião de Freud, que o elemento erótico de Anna O. estava singularmente ausente. A luz lhe veio de fora através da voz de sua mulher, Mathilde, interessada demais no assunto, para não apreender que o desejo epistemofílico não era o único a acender os cuidados tão fartamente aprovisionados por Breuer à sua paciente. Deste modo, eis que o tratamento supostamente assexuado desembocou, de repente, para Breuer no drama conjugal, passando inesperadamente do desconhecimento ao pavor; sem nenhum preâmbulo, ele deu um fim abrupto ao tratamento.

No dia seguinte, Anna O, tomada pelas dores de um parto fantasioso, chamou-o com urgência e o recebeu com as palavras: "Ele está chegando, o filho de Breuer". O que seria preciso comprovar é claro, mas o suposto pai retirou-se definitivamente, decidido a não saber de mais nada... de tal modo Breuer descobriu a transferência sem conseguir levá-la em conta (SOLER, 2006, p.10).

O conceito de transferência define um conjunto e uma ordem de fenômenos que o funcionamento do psiquismo humano torna forçosos; Freud estabelece a causa desses fenômenos inconscientes e do seu código: "Saber que o sujeito sabe sem saber" (DORGEUILLE, 1984, p.261).

Vejamos como a dialética desses "fenômenos inconscientes" é delineada pelo próprio Freud, que os denomina de "um estranho estado de espírito", através do qual se sabe de uma coisa e, ao mesmo tempo, é claramente impossível compreendê-la, a menos que a própria pessoa tenha vivido essa experiência. Discorrendo, então, a respeito de um exemplo confessado da sua própria experiência de vida, Freud nos diz que vira alguma coisa que não combinava com a sua expectativa e, apesar disso, não consentiu que nada alterasse o seu objetivo, muito embora tenha reconhecido que aquilo que vira, tivesse elementos suficientes para fazê-lo desistir de avançar. Admite que algo passara desapercebido da sua consciência e, sequer um sentimento de repugnância havia se manifestado, razão pela qual acredita que nenhum "efeito psíquico" tenha sido produzido e, concluiu da seguinte forma: "Fiquei preocupado com essa cegueira de quem vê e, que é tão surpreendente nas atitudes das mães para com suas filhas, dos maridos com suas esposas e dos governantes para com seus súditos" (FREUD [1893-1895] 1980, p.165).

Ao falar do amor de transferência, Freud assegura que a circunstância analítica induz o analisante ao chamado "enamoramento" e não a pessoa do analista.

No estudo "A Dinâmica da Transferência", Freud ([1912] 1980) afirma que, se a necessidade que alguém tem de amar não encontrar a sua satisfação na vida real, é possível que esse sujeito se aproxime de novas pessoas com "idéias libidinais antecipadas", como se houvesse um investimento na libido em estado de espera, para ser direcionado ao analista, acrescentando que esse fenômeno pode ser reconhecido conscientemente, como também por tudo que se tornou inconsciente através do recalque.

No mesmo estudo Freud ([1912] 1980) fez importantes afirmações, inclusive a respeito da necessidade do entendimento por parte do analista, com relação à impossibilidade de compreensão do emprego da transferência como resistência, caso centralizasse o pensamento na transferência: "Há que se saber distinguir uma transferência positiva de uma transferência negativa, os sentimentos afetuosos dos hostis e controverter separadamente os dois tipos de transferência" (FREUD, [1912]1980, p.140).

A transferência positiva encontra-se nos sentimentos afetuosos que chegam à consciência, bem como em um prolongamento desses sentimentos que vão ao inconsciente. A manifestação de uma transferência negativa é, na realidade, um acontecimento que faz com que o paciente deixe o tratamento em situação estável ou agravada.

A transferência se estabelece não somente pelas idéias que chegam à consciência, mas por aquelas idéias retidas ou idéias inconscientes. A luta entre o médico e o paciente, entre o intelecto e a vida instintual, entre a compreensão e a procura da ação, é travada quase exclusivamente no fenômeno da transferência (FREUD, [1912] 1980, p.143).

Em "Recordar, Repetir e Elaborar", Freud ([1914] 1980, p.193) retomou a temática da transferência como resistência, observando que, enquanto o tratamento visava à descoberta de situações patogênicas passadas, a transferência operava como resistência para impedir a reativação e a atualização das recordações. A partir desse entendimento, torna-se mais claro o conceito de transferência como resistência.

Aparentemente, a teoria da transferência estaria formada até o escrito "A Dinâmica da Transferência" (FREUD [1912] 1980), bem como com o estudo "Recordar Repetir e Elaborar" (FREUD [1914] 1980).

Em "Além do Princípio do Prazer" Freud ([1920] 1980, p.32), vai afirmar que a transferência é conduzida pela compulsão à repetição e, nesse caso, o ego a reprimiria para favorecer o prazer. A idéia de arrolar a transferência à resistência, naquele momento, foi abandonada, passando Freud a se referir a "um fenômeno a serviço da pulsão de morte", através do qual a necessidade de compulsão à repetição definiria a transferência, à proporção que situasse o impulso, que tenderia a repetir as situações passadas.

É importante perceber que o conceito de repetição não estaria relacionado a algo ocorrido na realidade da vida do sujeito, porém relacionado à realidade psíquica e, aos desejos e às fantasias inconscientes.

Corrêa (1996) afirma que, apesar de ter sido adotada corretamente por Freud, a transferência foi posteriormente induzida a extremos na técnica, chegando ao cúmulo de se tornar uma espécie de indicador obrigatório no trabalho de alguns psicanalistas, que marcavam a sua ocorrência em pleno tratamento, como uma espécie de tema interpretativo (CORRÊA, 1996, p.58).

 

A transferência em Lacan

O conceito de transferência sofreu uma transformação de Freud a Lacan. A compreensão freudiana de transferência como deslocamento de afeto e repetição, foi subvertida por Lacan que, a partir daí, produziu uma topologia baseada em uma concepção estrutural, conduzida pela lógica da linguagem, fazendo com que a transferência fosse considerada a mola mestra da psicanálise, da cura e o princípio do seu poder.

O analista é aquele a quem o sujeito dirige a sua demanda de amor e possui um lugar específico, em virtude do fato de que ele, supostamente, detém o saber sobre o desejo do analisante. Portanto, esse lugar é ocupado pelo significante da transferência, que é representado pelo S.s.S., o sujeito suposto saber. O sujeito suposto saber não é a pessoa do analista, mas sim um efeito do discurso.

A composição da circunstância analítica coloca, em primeiro lugar, o analista em posição de ouvinte do discurso. Ela incita no analisante um apelo a um discurso livre de julgamentos de valores, ou seja, à regra fundamental da psicanálise, à associação livre, mesmo que essa associação não possa ser considerada absolutamente livre, por estar rodeada de leis essenciais. A palavra em si mesma é hipnótica e o fato de consentir em se fazer ouvir já é uma perda do livre arbítrio.  Lacan sempre perseverou que o ouvinte, a sua resposta, o seu apoio, a sua interpretação, determinam o sentido do que é dito e a própria identidade de quem fala. Aí encontramos aquilo que foi designado por ele de: "o poder do analista sobre o sentido" (MILLER, 1992).

Mendonça sublinha que no sentido linguístico da língua alemã, a palavra transferência tem significado análogo ao termo transmissão, motivo pelo qual Freud se valeu do termo "pensamento". A partir de 1919, Freud irá associar a transferência à provocação (por parte do analista) do amor de transferência e Lacan retoma essa questão expondo que ambos seriam pertinentes ao discurso do analista, pois, na transferência trata-se da atualização do inconsciente que, conforme Freud é onírico e pulsional e, conforme a teoria Lacaniana é simbólico por ter a linguagem como condição (MENDONÇA, 2009, p.131).

O silêncio do analista é vital para que seja dado o espaço ao desdobramento da palavra. Não se deve precipitar em satisfazer a demanda do analisante, que é: quem sou eu? qual é o meu desejo? o que eu quero de verdade?

Assim como Freud, Lacan considerava o tempo um dos vetores extremamente importantes, por ser constitutivo da transferência: "O tempo é, em si mesmo, uma modalidade da transferência, uma variável interpretativa" (MILLER, 1992, p.88).

Segundo Castro (2005), Lacan avaliava que o fenômeno da carga imaginária exercia na transferência o papel pivô. Passados dez anos profere que este papel – pivô – situa-se no sujeito suposto saber. Coloca, portanto, a transferência no registro imaginário. O Caso Dora foi considerado o marco para que Freud reconhecesse o papel do analista, assegurando que é o desejo do analista que estimula e apóia a circulação da transferência, que, por sua vez, apresenta continuamente o mesmo sentido de advertir o analista nas suas ocasiões de desvio do centro do seu papel, ou seja: "um não agir positivo, com vistas à ortodramatização da subjetividade do paciente". Lacan (1998, p.225) faz uma articulação entre o registro simbólico e o gozo, e ambos sustentam a elaboração, desde quando exista o SsS, condição essencial para que haja a transferência. A transferência é a condição fundamental para que uma análise se estabeleça. Tanto o sujeito quanto o analista estariam implicados, cabendo ao analista ocupar o lugar de semblante do saber e de causa do desejo do analisante.

A transferência é tida como um fenômeno ligado ao desejo. É possível a ocorrência da transferência em contextos não analíticos, mas é impraticável o evento de uma análise sem a transferência.

Transversalmente ao desejo do Outro, o sujeito poderá reconhecer o seu desejo. Nessa condição, existe o arrolamento ao Outro e Lacan ajuíza o inconsciente, tomando como ponto de partida a histeria, a partir do encontro do desejo do Outro. Aparece, então, o conceito de "histerização" como uma condição da análise, uma vez que a histeria é apresentada como portadora de um saber sobre o significante que, por sua vez, desaguaria em uma elucidação vinda do inconsciente.

Observamos, portanto, no último ensino de Lacan, que é possível dizer que a transferência é o sustentáculo do sujeito suposto saber.

Nos anos setenta, há uma mudança de paradigma: não é a relação entre o sentido e o real, mas o limite é a isenção do sentido e do real.

A transferência necessita do amor do analisante pelo seu inconsciente, para que passe a existir o inconsciente transferencial, que dá a entender a articulação, da relação simbólica entre S1 e S2, o crédito de que o sintoma pode ser lido, já que somente por meio da transferência o sintoma pode se amarrar ao inconsciente.

Através do amor, haverá a possibilidade de que o inconsciente exista como saber. Competirá ao analista responder a esse amor com o objeto da pulsão, de forma que venha a ordenar o inconsciente, para que seja produzido o seu furo, como o lugar do sobressalto, que faz funcionar as estruturas, que sem o formato da organização tenderiam ao fechamento do lugar em que se aguça a procura incessante, para soldar a fenda que lhes é constitutiva pela linguagem.

 

O que teria sido cognominado de contratransferência?

Na nossa observação, Freud não elaborou uma teoria da contratransferência, referindo-se, pela primeira vez, à palavra contratransferência em 1910, descrevendo-a como uma resposta emocional do analista às incitações que partem do paciente e da sua transferência.

Em "As Perspectivas Futuras da Terapêutica Psicanalítica" Freud (1980, p.130) chama a atenção para as limitações da própria neurose do analista e para a necessidade de o analista superar os seus "pontos cegos", apontando para uma solução que veio a reforçar no seu artigo "Análise Terminável e Interminável" ([1937] 1980):

Nenhum psicanalista avança para além do quanto lhe permitem os seus próprios complexos e resistências internas; e nós, conseqüentemente, advertimos que seja iniciada a sua prática por meio da sua auto-análise, aprofundando-a continuadamente, enquanto permanecer realizando as suas observações nos seus pacientes (Freud, 1980, p.130).

Ao reconhecer que a análise resulta de uma comunicação importante e encoberta por mensagens inconscientes, como parte essencial do processo analítico, Freud afirma que:

...o analista deve tornar o seu próprio inconsciente, um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente, acentuando que deveria se ajustar ao paciente como um receptor que se ajusta ao microfone transmissor...  (FREUD, 1980, p.154).

Segundo Corrêa, a contratransferência era descrita como conseqüência de uma espécie de sintonia ao nível do Eu, ou como realimentação da transferência anterior do analista e foi revista à medida que o analista passou a realizar um trabalho, dando primazia ao inconsciente (CORRÊA, 1996).

 

A transferência na instituição

"Nas instituições onde doentes dos nervos são tratados de forma não analítica, podemos observar a transferência com a maior intensidade e sob as formas mais indignas, chegando a nada menos que servidão mental e, ademais, apresentando o mais claro colorido erótico" Freud (1980, p.136).  

Naquela instituição de saúde mental, onde a psicanálise havia conquistado um importante lugar, através da fundação do "Núcleo de Psicanálise"do qual fiz parte no período 1997-2003, a rotina dos atendimentos acontecia da seguinte forma: o paciente chegava para a entrevista preliminar de posse do seu cartão de aprazamento com o nome do aspirante a analista, registrado pelo serviço de triagem.

O Same – setor de arquivos médicos – enviava o prontuário para que as anotações das produções dos profissionais fossem feitas, cabendo a cada aspirante a analista registrar os atendimentos, para fins de estatística da produtividade na instituição e, ao mesmo tempo, à sabedoria e à ética para a preservação dos conteúdos sigilosos das sessões.

Surgiam interrogações a respeito da transferência e, muitas vezes, a questão crucial vinha à tona: a transferência seria com o aspirante a analista ou com a instituição? Esse questionamento se devia tanto às questões burocráticas, como também à rotatividade de profissionais por remoções de unidade, aposentadorias e mortes.

Os pacientes permaneciam na Entidade, sendo "remanejados". No tocante ao remanejamento dos pacientes, destacamos um fato ocorrido em uma das nossas experiências clínicas, a partir do falecimento de um psicanalista. Uma parcela dos seus pacientes foi distribuida, para que cada um de nós, "aspirantes a analistas e sobreviventes", déssemos a continuidade. É bem verdade que nem todos os pacientes permaneceram e muitos deles evadiram-se.

Recebemos a parcela dos pacientes que nos coube, dentre eles uma moça, que segurava o seu cartão de aprazamento com muito cuidado. Falava que aquele cartão "jamais seria substituído porque era a única maneira que tinha para guardar a memória do terapeuta morto", mas falava da necessidade que sentia de ser escutada "naquele momento".

Comparecia assiduamente às sessões e o seu discurso girava em torno do seu ex-terapeuta. Verbalizava muito, chorava, relatava os sonhos que tinha com ele. Sabíamos que a paciente estava enlutada e que não caberiam intervenções porque seriam inúteis ou prejudiciais ao seu estado, uma vez que não se tratava de uma patologia, mas da sua reação singular à perda do seu terapeuta. Sendo assim, com o tempo, o luto tenderia a ser elaborado (FREUD, 1980).

Foi possível constatar que essa afirmação estava correta porque, certo dia, a paciente nos perguntou se seria possível trocar o seu cartão de aprazamento e o nome do ex-terapeuta pelo nosso, porque havia se dado conta de que de "nada adiantaria permanecer com aquele nome e com aquele cartão". Através desse pedido da paciente, percebemos que algo acontecera, ou seja, havia ocorrido a sua mudança de posição na relação transferencial. Atendemos ao seu pedido e solicitamos ao Same a troca do seu cartão de aprazamento, com o nosso nome como sua terapeuta.

Algo curioso acontecia com uma parcela dos indivíduos que procurava o Núcleo de Psicanálise: apesar de chegarem espontaneamente ao atendimento, desistiam no início do tratamento, sob a justificativa dos seus receios de possíveis preconceitos e "danos morais", ocasionados pelo "estigma da loucura", caso continuassem freqüentando aquela Unidade de Saúde Mental. O Núcleo absorvia tanto um contingente de psicóticos em tratamento psiquiátrico ambulatorial, como também no regime da curta internação, na terapêutica dos chamados "psicóticos agudos". Nesse caso, a partir da argumentação dos desistentes, pode-se observar claramente o "peso institucional" interferindo na transferência e, favorecendo a resistência.

Outra possibilidade de encontro entre o terapeuta e paciente acontecia através de encaminhamentos internos dos demais profissionais de saúde mental, especialmente do psiquiatra assistente, que desejava que o seu paciente, independentemente da sua estrutura clínica, tivesse, além do remédio, a escuta.

Diante da acumulação do tratamento psicanalítico e medicamentoso, Freud fez a seguinte advertência aos médicos, que praticavam a psicanálise: "Se, no decorrer da análise, o paciente necessitar temporariamente de um tratamento médico é muito mais sensato o médico psicanalista encaminhá-lo a um colega médico não psicanalista" (FREUD, 1980, p.180). 

Em alguns casos, o paciente comparecia regularmente às sessões, produzia, mudava a sua posição subjetiva diante da sua queixa, mas no seu discurso apareciam os remédios, os ajustes das doses e as trocas de medicamentos como os fatores unicamente responsáveis pela sua "melhora" e, não raras vezes, se surpreendia com o questionamento da terapeuta com relação ao lugar da escuta nesse contexto.

Por se tratar de uma clientela constituída por adultos, pertencente às diversas camadas sociais, era comum surgir uma espécie de "demanda social", que consistia em um apelo à terapeuta para as soluções concretas e materiais, como empregos, benefícios oferecidos pelo Governo, bem como as "respostas certas" para essas respectivas demandas. Como essas expectativas eram inevitavelmente frustradas, uma vez que não compete à psicanálise responder à demanda do paciente, alguns evadiam, o que, sem dúvida, nos levava a refletir a respeito do esclarecimento de Lacan, sobre a necessidade do domínio da identificação da aparência implícita da demanda, que fica encoberta para o próprio sujeito, necessitando da interpretação e, aí, inevitavelmente se tropeçaria em uma ambigüidade (LACAN, 1992, p.1980).

Corrêa adverte que é importante lembrar que o neurótico pode ter como mais confortável a posição de dependente, possuindo quem lhe cuide, do que enfrentar as dificuldades (Corrêa, pág.59, 1996). Suplementamos essa questão com uma estimulante observação de Freud: "um bom número de pessoas que têm, na enfermidade, a sua fuga não suportaria o conflito e sucumbiria rapidamente ou acarretaria perdas maiores que a sua própria doença, admitindo que as neuroses possuam uma espécie de dispositivo protetor e conciliador diante das normas da sociedade" (Freud, [1910] 1980, p.135).

 

Fragmentos de casos clínicos

É de fundamental importância para essa investigação, a elucidação, na medida do possível, da relevante questão da transferência em um contexto específico, trazendo à lume o relato de alguns casos clínicos trabalhados pela autora, que ofereçam um depoimento ilustrativo da realidade objetiva e da subjetividade, acondicionando os possíveis achados nesse percurso de articulação da teoria à prática da psicanálise.

 

Fragmentos de caso clínico I

Recebemos para as entrevistas preliminares um sujeito encaminhado pelo psiquiatra do ambulatório com diagnóstico de "síndrome de pânico" e, por essa razão, aposentado pelo INSS.

Esse sujeito já tinha uma situação "definida" do ponto de vista do diagnóstico psiquiátrico e a sua aposentadoria lhe proporcionava uma situação social e econômica confortável, até certo ponto.

Na primeira entrevista, o paciente pergunta incisivamente à terapeuta: "falar adianta?".

Ele relatava as agressões físicas e verbais à sua esposa e "incontrolável repulsa" que sentia pelo seu único "filho homem", que nascera mulato, diferente da sua "cor negra".

Duvidava da sua paternidade, enquanto a sua esposa, uma mulata, se oferecia para fazer o exame de DNA sob o argumento de que "o filho homem teria puxado a ela, enquanto que a filha mulher nascera com a cor da pele do pai".

Estaríamos diante de um sujeito que não conseguia se reconhecer nesse "filho homem", que teria ferido o seu narcisismo e "lhe roubado a mulher"?

Certo dia, surpreendeu-se diante de uma importante auto-descoberta revelada através do seu próprio discurso e a terapeuta retorna à sua pergunta inicial: "falar resolve"? O paciente responde afirmativamente e sorri.

Compreendemos desse modo, a ênfase dada por Freud ao poder da palavra com relação à movimentação dos afetos (Freud, [1915-17] 1980, p.29).

 

Fragmentos de caso clínico II

Chega para a sua primeira entrevista uma jovem de, aproximadamente vinte anos, irmã caçula de uma prole de oito órfãos de mãe, "a qual a paciente não chegara a conhecer". Fora levada à instituição pelos irmãos mais velhos, preocupados com a sua incapacidade de produzir, "até mesmo de cuidar do pai moribundo acamado em casa e dos afazeres domésticos".

A paciente comparecia regularmente às sessões e, no seu discurso notadamente regressivo, costumava se intitular "prematura" e afirmava ter "repetido a 5ª série quatro vezes". A cada comemoração social, trazia para a terapeuta um cartão, geralmente grande e todo escrito, com o próprio punho, com palavras que expressavam amor e gratidão pela terapeuta e encerrava sempre da seguinte forma: "São os votos da sua paciente de hoje e sempre", e assinava o seu nome completo.

Passados alguns anos, com a continuação do tratamento, observamos um comparecimento menos assíduo às sessões e, a ausência dos cartões de felicitações, o que nos levou a pensar que, através da relação transferencial, a paciente teria mudado a sua posição subjetiva.

O analista deve estar atento à atemporalidade do inconsciente e da sua importância, para que o sujeito se "familiarize" com a resistência e consiga elaborá-la e superá-la. Esse aspecto é fundamental a fim de que os processos analíticos bem sucedidos não sejam impedidos de avançar satisfatoriamente, sob a falsa impressão de estarem na direção oposta à direção da cura.

"A questão da ética para o analista é decidir em que momento a análise começa, pois justamente no ponto em que supostamente ela estaria terminada, é o seu começo" (MILLER, 1983, p.99).

 

Fragmentos de caso clínico III

Atendemos a um homem jovem, casado, cuja queixa persistente era o casamento.  A mulher o "extorquia", sendo a causadora dos seus transtornos, a única filha, uma criança com oito anos de idade, era "um problema": dava-lhe muito trabalho, e deixava-o "exausto."

Em uma determinada sessão, após uma fala instigante a esse respeito, a terapeuta fez a seguinte interpretação para o paciente: "engane-me que eu gosto" e encerrou a sessão.

Essa interpretação banal causou mal estar à terapeuta, que não conseguia se conformar. Teria saído do lugar que deveria ter sustentado? Algo intrigante havia acontecido naquele momento. Na semana seguinte, ele comparece à sessão e diz: "estou ali-viado... sabia que não conseguiria enganar... você sabia o tempo todo do que eu estava falando,... é isso mesmo, tenho um caso com um homem há alguns anos, casei para fugir das discriminações, mas não estou suportando essa vida dividida e, o pior, é que eu não me aceito".

O saber construído em só - depois é o que inaugura uma temporalidade, fundando um antes, que então já passou e passa-se outra coisa. As diversas retificações subjetivas oferecem a possibilidade de um novo posicionamento do sujeito, que num momento inesperado vai poder dar o salto que lhe permite "aprender" o que sempre soube no seu saber inconsciente (ALVES E SAAD, 2009, p.73).

É impossível negar que a terapeuta também experimentou a sensação de alívio, através de uma interpretação que considerara surpreendente e "inadequada", para a qual não tinha uma previsão do seu efeito, até o retorno do paciente em "só - depois".

 

Fragmentos de caso clínico IV

Recebemos um jovem encaminhado pelo setor de psiquiatria do ambulatório. O seu prontuário trazia uma curiosa observação escrita pelo seu médico psiquiatra: "nunca o vi psicótico, apenas relatos por parte da sua mãe e acompanhante responsável pelo paciente de crises de agitação e desorientação em casa". Observamos, portanto, que o seu diagnóstico psiquiátrico se encontrava indefinido.

Ele comparecia regularmente às consultas psiquiátricas, segundo os registros do médico no seu prontuário e, aparentemente, usava a medicação conforme a prescrição.

O paciente passou a ser assíduo e pontual freqüentador das sessões. Tratava-se de um jovem cuidadoso e visivelmente preocupado com a sua aparência e com sua higiene pessoal. Verbalizava espontaneamente e, quando indagado da razão de estar freqüentando aquela unidade de saúde mental, ele referiu-se ao "adoecimento" depois de ter sido acusado "injustamente" de haver estuprado "algumas crianças ameaçando-as com o revólver de brinquedo" e aguardava o julgamento em liberdade, podendo ser preso a qualquer momento.

Continuava freqüentando as sessões assiduamente. O seu discurso bem articulado girava em torno dos cuidados que prestava à família, especialmente à sua mãe e dos cuidados dela para com ele, a quem dizia "obedecer".

A suspeita do diagnóstico diferencial da aspirante a analista apontava para um sujeito perverso, que buscava naquela Unidade e nos atendimentos dos profissionais de saúde mental, uma espécie de "cumplicidade", para amenizar, de alguma forma, a sua pena por ocasião do julgamento, o que acabou por acontecer. O paciente foi condenado e encaminhado para um presídio comum, conseguindo, em seguida, a sua mudança para a casa de Custódia, anteriormente denominada de Manicômio Judiciário, graças à documentação expedida por aquela instituição de saúde mental.

Os psicanalistas lacanianos advertem que, contrapondo-se declaradamente ao lugar de "suposto saber" característico da transferência neurótica, a transferência perversa desafia o saber do analista e, na fronteira, recusa-o enquanto outro, expondo a tentativa do perverso de renegar a lei do pai, para substituí-la pela lei de seu próprio desejo, como assinala Guy Rosolato (FERRAZ, 2005, p.110).

 

Exposições finais

Por tudo quanto foi estudado nesse "cenário", moldado às condições culturais e históricas, que dominaram um certo tempo e lugar, as questões relativas à teoria e ao exercício da prática clínica da psicanálise citadas no presente estudo são inesgotáveis, especialmente no que se refere à transferência.

Essa questão dinâmica e complexa abre um tema para estudos posteriores, que visem a construção de espaços semelhantes ao "Núcleo de Psicanálise" daquela instituição de saúde mental, nos quais possa circular a psicanálise, essa "centenária senhora que melhor poderá ajudar a identificar o sofrimento psíquico, por acolher a angústia" (PIMENTEL, 2005, p.97).

No tratamento analítico, os mitos costumam ser tombados por idealizações desfeitas, a partir das re-significações, decorrentes do discurso do paciente e das conseqüentes interpretações do analista, intermediadas pela relação transferencial, que visam à atualização do inconsciente.

Na presente conclusão desse artigo, procuramos expor o belo, o bem- sucedido, bem como as dificuldades, que convocam o analista a por em exercício a capacidade criadora como uma característica do seu desejo no manejo da transferência, interpretando com o uso de palavras acessíveis o discurso dos analisantes com um vocabulário limitado, devido ao baixo nível de escolaridade, fazendo com que ilustrações possam vir a ser canalizadas em interpretações. E, acima de tudo, reconhecer que não poderá ser o detentor do saber da verdade do sujeito sobre si mesmo, o que, provavelmente, virá à sua consciência em um tempo submerso na atemporalidade do inconsciente.

A presente investigação apontou, em diversos momentos, a existência da interferência da Instituição na relação transferencial, mas, por outro lado, nos provou a existência da possibilidade de exercer a psicanálise, longe das elites e mais próxima da realidade de vida, de uma população demandante de escuta, deixando para o analista a empreitada de identificar e manejar os pontos de interferência burocráticos e institucionais, caso a caso e, acima de tudo, se dedicar à direção do tratamento, procurando sustentar o lugar ao qual se propôs, através da formação permanente, que se constitui na análise pessoal, no estudo teórico e na supervisão.

 

Referências

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Endereço para correspondência
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Ed. Atlantis Multiempresarial – Itaígara
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Tel.: (71)3359-3131
E-mail: soniamseixas@yahoo.com.br

Recebido: 14/03/2011
Aprovado: 26/04/2011

 

 

Sobre a Autora

Sonia Guiomar Martins Seixas
Psicanalista. Membro Efetivo do Círculo Psicanalítico da Bahia. Assistente Social Psiquiátrica. Membro Pleno da American Association for Psychoanalysis in Clinical Social Work, USA. http://www.aapcsw.org/

 

 

1Agradecimentos a Lucy de Castro pela sua co-participação no trabalho monográfico intitulado: "A transferência em uma instituição pública de saúde mental", que deu origem ao presente artigo.