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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.35 Belo Horizonte July 2011

 

 

A dor do luto e seu acolhimento psicanalítico

 

The pain of mourning and its psychoanalytical reception

 

 

Vera Esther

Sociedade Psicanalítica da Paraíba
Círculo Brasileiro de Psicanálise

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho versa sobre um caso clínico em que se acolhe o processo de luto de uma mãe que perdeu uma filha adolescente por suicídio. A principal postura de fundo, durante esse acolhimento, foi possibilitada principalmente pelo conhecimento antecipado da teoria winnicottiana mas cuja explicitação, no que tange à sua vinculação com este caso específico, foi facilitada após a interrupção da análise, sob a forma de après-coup da analista durante a escrita do texto.

Palavras-chave: Luto, Suicídio, Dependência, Caso clínico, Psicanálise.


ABSTRACT

The text presents a clinical case in which a psychoanalytical reception is provided for a mother who loses her adolescent daughter from suicide. The main background posture, during treatment, was made possible by previous knowledge of Winnicottian theory, but its explication, with regard to its appropriateness to this specific case, was facilitated after analysis was interrupted, as a form of deferred action, by the analyst, during the writing of the text.

Keywords: Mourning, Suicide, Dependency, Clinical case, Psychoanalysis.


 

 

Introdução

O caso clínico que este trabalho apresenta é o de uma senhora, que aqui chamo de Antônia, que me chegou ao consultório aos 49 anos de idade. O atendimento perfez um total de 350 sessões, durante um período de 2 anos. A interrupção foi por minha iniciativa, motivada pelo fechamento do consultório em virtude de mudança para uma cidade longínqua. Foi uma interrupção dolorosa para paciente e analista.

Enquanto durou, houve dois acontecimentos que, de modo dramático, funcionaram como eixos organizadores da análise: o primeiro foi uma tentativa de suicídio de sua filha do meio, de 18 anos de idade - a quem chamarei de Marta. Isto desencadeou eventos extremamente dolorosos na vida da paciente e deu origem a um périplo à busca de ajuda. A filha Marta ficou internada no hospital por 17 dias e, à saída,  não quis voltar para a casa dos pais. Desde a internação, Marta sequer permitia ser contatada pelos pais, e Antônia não atinava sobre as razões desse comportamento. O segundo acontecimento foi o suicídio mesmo, que Marta consumou oito meses após aquela primeira tentativa.

 

O primeiro eixo – a tentativa de suicídio da filha

Por ter sua chegada ao consultório impulsionada pela tentativa de suicídio da filha, ocorrida 4 meses antes, Antônia já adentrava o mundo dessa análise pela porta metafórica da morte: nem chegou, na verdade, a formular uma demanda própria de tratamento, vinha a reboque do que lhe recomendavam. Mas o impacto daquela tentativa foi muito forte: mais tarde, sucessivas vezes, Antônia se referia àquele acontecimento não como “tentativa”, mas como “o primeiro suicídio de Marta” – atos falhos esses que não eram percebidos por Antônia, nem apontados pela analista, esta à espera do que mais viesse a acontecer no decurso do tratamento.

Essa filha parecia ter sido marcada pela morte desde antes de nascer. Antônia relatou que estava grávida, quando, assistindo ao noticiário pela TV, presenciou reportagem sobre assalto a um estabelecimento bancário em hora de seu funcionamento ao público, no decorrer do qual uma pequena criança, no colo da mãe, foi atingida pelo disparo de uma arma de fogo. Essa criança, morta no assalto, chamava-se Marta e foi em sua homenagem que Antônia escolheu, ali mesmo frente à TV, o nome que seu bebê, já em gestação, viria a ter: Marta.

Postulei que houve, nesse episódio, uma identificação de Antônia com a mãe daquela criança, sentindo sua dor e tentando fazer com que ela não perdesse sua filha pequena: Antônia, simbolicamente, a abrigaria viva em seu útero, permitindo àquela pequena Marta continuar sua existência. Mas postulei, também, que houve uma identificação de Antônia com a própria criança morta, ao lhe prestar essa homenagem da forma que o fez: Antônia operou, no ato, uma regressão massiva e realizou uma incorporação simbólica dessa criança a seu próprio corpo.  Como Freud (1917) diz,

A identificação é uma etapa preliminar da escolha objetal, que é a primeira forma – e uma forma expressa de maneira ambivalente – pela qual o ego escolhe um objeto. O ego deseja incorporar a si esse objeto e, em conformidade com a fase oral ou canibalista de desenvolvimento libidinal em que se acha, deseja fazer isso devorando-o (i 1974, p.282).

No que se refere à própria filha, em sua existência real no útero de Antônia, houve alguns percalços: Antônia sofreu ameaça de aborto e, como suporte para a gravidez, voltou a morar na casa dos seus pais por algum tempo.  Com oito dias de nascida, Marta teve infecção no umbigo e quase morreu. Mas, ainda antes, quando chegou na maternidade, a médica de plantão demorou para atender Antônia – ela lembra que “precisou fechar as pernas para o bebê não sair”. Esse fechamento de pernas, como medida para retardar o nascimento, foi relatado mais de uma vez, fazendo Antônia se perguntar se essa era a razão dos problemas que Marta veio a ter.

Na sequência dessa dúvida, Antônia fala, não pela primeira vez, sobre o aborto do primeiro filho – ela achava que era um menino, que o marido queria que fosse – acontecido, conforme seu relato, aos quatro meses de gravidez. Antônia se internara no hospital por dores que sentira na barriga, mas durante a noite foi ao banheiro e, depois de usar o vaso sanitário, percebeu que abortara ali o feto. Deu descarga. Quando, depois, contou o que tinha acontecido, ninguém acreditou que tivesse abortado e fizeram-na passar a noite tomando soro para não abortar. Só o marido havia visto esse bebê na privada, mas não acreditou que seria o bebê abortado. “Bebê, não! Feto” – ela se corrige. Antônia disse guardar o exame que comprovou não ter mais nada na barriga, e que isso comprovava que ela abortara. Pergunto eu aos meus botões: “Uma gravidez ao contrário? Um exame que comprova o aborto, quando a praxe é comprovar a gravidez?”. Antônia se culpava muito por ter dado descarga sem antes chamar a enfermeira. Essa gravidez tinha um estatuto de realidade a ponto de Antônia, às vezes, me dizer que tinha tido quatro filhos.

Voltemos, agora, ao impacto da tentativa de suicídio de Marta na vida de Antônia. Como mencionado, um primeiro momento da sua análise foi pautado, até certo ponto, por essa tentativa, que representou uma morte simbólica de sua filha. Pauta essa que criava, no setting analítico, uma sombra de morte a rondar as histórias ali contadas por Antônia, quer se referissem exclusivamente à filha, quer a outras pessoas do seu círculo. Nesse contexto, em uma das sessões em que se lembrava de alguém que morrera prematuramente por câncer, Antônia disse textualmente: “uma sombra de morte me persegue”. E, na sequência, falou de seus antigos medos: de morte, de avião e de alturas, de elevador e outros ambientes fechados ... e de metrô – “por andar debaixo da terra”. Essa sombra da morte parecia ter um caráter claustrofóbico, uma angústia menos ligada ao recalque do sexual e mais à morte como castigo, talvez.

Nos seus relatos, havia, às vezes, um tom insípido, apresentando um cotidiano sem brilho, insosso. Além disso, era como se a Antônia faltasse percepção da extensão do dramático vivido: para alguns aspectos de sua vida, ela parecia estar alerta, mas para outros, contados de forma meio monótona, parecia estar como que anestesiada, sofrendo de embotamento afetivo. Isto não quer dizer que não houvesse, também, muitos relatos em que a claridade da vida afastava as sombras da morte e Antônia, de certa forma, brilhava no consultório. Principalmente durante os  primeiros 4 meses da análise, Antônia, às vezes, parecia jovem, talvez uma menina se descobrindo no espelho e gostando do que via. Seu rosto era forte e inquisitivo, e, se às vezes se mostrava marcado de incertezas radicais e agonias profundas, de quando em vez chispava um olhar eloquente, meio matreiro, a fazer brilhar os pedaços da sua história mais antiga, pedaços que me eram oferecidos, buscados por Antônia com ar de quem era despertada por uma curiosidade exploradora, reluzente, febril.

É importante que eu diga que houve uma transferência bastante positiva a nos ligar e que, de sua poltrona – ela recusou o divã, sempre – Antônia me fitava diretamente enquanto falava. Seus olhos às vezes pareciam faiscar em minha direção, às vezes era quase um flerte, mas, ao mesmo tempo, era uma sedução não-erótica, era uma senha de vida, de esperança.

E houve relatos, para os quais, por mais que eu me esforçasse, não parecia inicialmente haver, de minha parte, uma compreensão sobre qual poderia ser a racionalidade. Dentre esses, destaco agora o que chamo de “dependência de sustento”. E, como se verá a seguir, não se trata, aqui, da classificação diagnóstica que o DSM 4/ Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 4 (1994) faz de um transtorno de personalidade dependente.

 

Dependência de sustento: uma grande questão

Na sua primeira consulta, Antônia me informou de sua grande dificuldade financeira, quem pagaria o tratamento seria “sua família”. Família “de origem”, digo eu, mas, a Antônia mesma, essa categoria de entendimento parecia faltar. Era como se não houvesse muita importância em diferenciar entre “sua família” – composta por Antônia e seu marido, mais as 3 filhas, agora adolescentes, desse casal – e a família composta pelos pais de Antônia, agora idosos, com seus 12 filhos já adultos.

Antônia era uma filha casada que, de tempos em tempos, precisava ser amparada por seus familiares de origem. No momento atual, sua mãe e alguns irmãos estavam dividindo todas as suas despesas financeiras, e era com placidez que os beneficiários pareciam viver essa condição de vida. Antônia e seu marido não tinham trabalho agora, mas essa não era a primeira vez que isto acontecia, mesmo que o marido fosse, como era, detentor de formação universitária relativamente competitiva no mercado de trabalho; e, mesmo que Antônia fosse diplomada também em nível superior, na verdade, ela não chegara a fazer carreira profissional. Assim, de tempos em tempos, viviam em dependência aguda dos pais/irmãos, sogros/cunhados, avós/tios, mas a Antônia mesma isso parecia ter ares de irrelevância: pois embora ela expressasse, no geral, sofrimento por uma vida não-satisfatória, em nenhum momento uma luta real pelo fim dessa dependência financeira parecia ser uma questão a mobilizar Antônia; muito pelo contrário, havia até o que eu considerava um admirável senso de altivez nessa adversidade. Assim, Antônia parecia encarar com naturalidade que sua mãe lhe pagasse o aluguel e a escola particular de uma ou outra filha, que uma irmã pagasse o plano de saúde, que a Faculdade particular da filha mais velha ficasse a cargo de um irmão, que o tratamento psicoterápico de alguns ficasse por conta de outros e que as reivindicadas e autorizadas aulas de computação, de inglês, de natação e de dança fossem pagas por quem quer que fosse, desde que da família de origem de Antônia. A si mesma, ao seu marido ou à família de origem do marido, Antônia não cobrava qualquer função de provedores.

Por pseudo que fosse, que tipo de tranquilidade era essa, gerada no fulcro de tamanha dependência? Quando havia verbalização de algum sentimento, era a de indignação por entender que estava sendo injustiçada pelos pais e irmãos, sentidos como não lhe ajudando o suficiente em relação à filha que tentara suicídio. Talvez lhe escapasse que Marta, no auge de uma crise relativamente silenciosa, ao sair do hospital refugiou-se na casa de uma tia materna e, depois, na dos pais de Antônia, o que, de certa forma, sugeria que a resolução dos problemas da vida passava pela relação existente entre as duas famílias de Antônia - a nuclear e a de origem. Sugeria, também, uma certa  geografia, uma tópica, que levava a que me perguntasse sobre qual era o meu lugar em tal configuração.

Diga-se, de passagem, que a crise mais aguda que se abateu sobre a família de Antônia ocorreu quando seu marido, depois de meses desempregado, conseguiu trabalho em outra cidade, para a qual se mudou, acompanhado de esposa e filhas. O apartamento próprio já tinha sido vendido, a descapitalização familiar vinha acontecendo há certo tempo. A descrição que Antônia fazia desse período morando fora da cidade natal foi a de uma séria depressão, além de fobias muito claras. A solução foi, aos poucos, irem voltando, hospedarem-se, primeiramente, com os pais de Antônia e depois, ajudados no aluguel, morarem em um pequeno apartamento por perto.

A análise de Antônia foi criando uma estrutura em que se podia refletir sobre esse cotidiano, esse aqui e agora, mais do que uma liberdade de associação que levasse, de forma mais metódica, à exploração dos fenômenos inconscientes. Pois era massivo o peso de seu dia-a-dia, mesmo que camuflado. E me foi logo possível pressentir que era só a partir de aí, desse presente doloroso, que outros vôos poderiam ser construídos.

 

O setting analítico

A transferência positiva que aconteceu no setting serviu de pano de fundo para a sustentação de um clima ameno, de aceitação recíproca entre analista e paciente, de configuração de uma aliança terapêutica.

Por algum motivo que eu não sabia então explicitar, o fato é que eu me abstinha de questionar, de levantar dúvidas, muitas vezes de oferecer insights interpretativos, embora eu me disponibilizasse para apoio, solidariedade e desculpabilização. Era como se minha função ali fosse a de possibilitar a redução do sofrimento, mesmo que eu nem sempre soubesse dizer de onde ele realmente vinha. Ao mesmo tempo, era como se eu vivesse em estado de espera: eu apenas aguardava que Antônia se compusesse no interior do setting e, no seu tempo, pudesse comunicar algo sobre as raízes de sua camuflada aflição.

Isto não quer dizer que a história de Antônia deixasse de ter questões que me mobilizassem. Como já mencionei, algo que particularmente me intrigava era uma certa acomodação à dependência financeira, aqui e ali mesclada com cenas que eu entendia serem bastante humilhantes, mas nunca explicitadas por Antônia como tais. Ela parecia não se alterar quanto a essa dependência, embora eu hipotetizasse que havia outro tipo de sofrimento por ali soterrado. Será que essa placidez, aparentemente dessexualizada, poderia ser a da “bela indiferença” de que fala Charcot (apud FREUD, 1915, p.179)? Que segredo será que ali se escondia, o qual Antônia não estava disposta a revelar tão cedo? Minha atitude era, então, a de espera.

Algumas pistas importantes de entendimento só vieram a me ocorrer quando o tratamento já tinha sido interrompido (pelas razões mencionadas), quando eu já estava longe do setting e do olho da paciente a me fitar em busca de apoio. Foi na tentativa de escrita do caso, iniciada logo depois da interrupção, que essas pistas começaram a tomar forma, como se eu mesma, pela provocação da escrita, estivesse vivendo, no lugar de Antonia, um segundo tempo dessa análise, o de um après-coup. Assim, no início, senti dificuldades imensas quanto ao tom, ao estilo, aos aspectos redacionais e, acima de tudo, quanto à construção de sua inteligibilidade. Além disso, uma grande dificuldade que me parecia ridícula, mas que eu sentia como real, era quanto à nomeação da paciente, isto é, não havia jeito de eu me contentar com os pseudônimos que, na escrita, eu lhe atribuía. Muitas vezes, eu precisava re-escrever partes do texto ainda em construção e aproveitava para trocar o nome fictício que eu havia lhe dado na versão anterior.

Até que essa briga interna quanto à sua nomeação eventualmente me fez parar e pensar: por que isso? Qual o problema quanto ao nome? Foi aí que eu comecei a trabalhar com a hipótese de eu estar lidando com uma paciente que, tanto quanto sua filha, tinha problemas na área do próprio nome, isto é, na área da autonomia. Era como se essa paciente, sem nome ainda, estivesse por nascer, precisando antes ser gestada, depois nomeada, depois sustentada no seu “desenvolvimento emocional primitivo”, conforme palavras de Winnicott (1945).

Para mim, deixou, então, de haver surpresa no fato de que Antônia ainda dependesse tanto de sua família de origem, que sua família nuclear fosse tão amalgamada aos pais/sogros, irmãos/cunhados, avós/tios.  Como fazia um certo sentido, agora, que fosse a família de origem de Antônia – e não a sua própria, ou a família de origem de seu marido – que ocupasse o lugar de provedora do seu sustento e de seus dependentes. Nessas alturas, eu senti que sua vida estava estilhaçada, em cacos, distribuída pelas vidas dos seus irmãos e dos seus pais. E, se antes eu me perguntava qual o meu lugar nessa configuração, isso agora ficava mais claro: minha função era a de oferecer um setting que possibilitasse a Antônia recolher seus cacos, iniciar a retomada de um processo de diferenciação psíquica, interrompido lá atrás, cujo sintoma tardio era o de uma falta de autonomia, uma dependência aguda dos pais e dos irmãos. Foi aqui que renovei meu apego  à teoria de Winnicott e, a partir de então, fui re-ler o material clínico e começar tudo de novo. Era como se, no setting,  eu estivesse estado grávida de Antônia, a qual esperava de mim uma maternagem suficientemente boa.

 

O setting winnicottiano

Qualquer setting psicanalítico supõe um certo tipo de intervenção que não descure do ensinamento freudiano – este inclui métodos e técnicas de trabalho, além de uma certa perspectiva teórica, claro. Winnicott partia de Freud, aceitando sua doutrina. Mas sua história pessoal de vida e de trabalho possibilitou-lhe uma elaboração que não se prende estritamente à repetição do formulado por Freud. Por exemplo: a primazia que Winnicott dá ao ambiente humano, baseada no trabalho direto com bebês e com certos tipos de pacientes adultos, é um terreno que, digamos, Freud não necessitou priorizar (WINNICOTT, 1978, p.481).

Um dos conceitos próprios de Winnicott (1963) foi o da regressão à dependência. Aí se entrelaçam dois conceitos-chave, que marcarão um certo estilo de fazer clínica, de trabalhar no setting. Re-lembremos: (1) Dependência, no sentido dado por Winnicott (1963), é um estágio inicial no desenvolvimento do ser humano em que o mesmo depende de um ambiente facilitador para que possa sobreviver, existir psiquicamente. Há, de início, uma dependência absoluta, nos lembra Winnicott, que se caracteriza por um extremo desamparo físico e emocional, a ponto de não existir um bebê (conforme seu famoso aforisma), mas um par – mãe/bebê –, do qual o bebê nada sabe.  Depois, se tudo correr bem, progride-se para uma dependência relativa e, finalmente, se caminha rumo à independência (que tampouco é absoluta, Winnicott vem a acrescentar). (2) Regressão, para Winnicott (1963), é regredir àquela dependência. Nesse sentido, o conceito se apóia em Freud, mas difere do que Freud postulou (ver, para o que segue, Laplanche e Pontalis, 1992, p.441 – tanto no que se refere à  regressão tópica, quando Freud (1900) está explicando os sonhos (os pensamentos barrados do acesso à motilidade regridem ao sistema perceptual), quanto no que refere à regressão temporal libidinal, conforme os Três Ensaios (1905), isto é: a libido regressa a fases anteriores do desenvolvimento psicossexual infantil. Já em relação à regressão formal1, Winnicott (1954-5) a adota, mas acrescenta uma nuance – ele especifica que esses modos primitivos de funcionamento psíquico são os que existem no estágio de dependência a um ambiente-facilitador.

Esses conceitos, como se sabe, viriam a provocar mudanças na técnica clássica, no setting. É a dependência de uma mãe – a mãe-ambiente – que está em causa. O analista precisará, então, levar em conta a possibilidade desse funcionamento primitivo do paciente, que requer um ambiente adaptado às suas necessidades em termos do ego e do id. Note-se que, de início, Winnicott tende a considerar esse funcionamento regredido como afeto aos fenômenos da psicose, mesmo quando a classificação mais geral do paciente esteja no domínio da neurose. Nesse sentido, Winnicott (1978) vê a “doença psicótica como uma organização defensiva cujo objetivo é proteger o verdadeiro self” (WINNICOTT, 1978, p.471) e compreende, ainda, que “a psicose se origina num estágio em que o ser humano imaturo é inteiramente dependente do que o meio lhe propicia” (WINNICOTT, 1983, p.114). Mas, mesmo nesse início da vida, autores que aceitam esse conceito não o restringem à psicose. Fairbairn, por exemplo, escreveu ao próprio Winnicott, o seguinte: “Eu entendo que a regressão que você, no geral, tem em mente é a regressão psicótica. Mas eu passei a me interessar muito na regressão que tende a ocorrer em contextos de histeria. Esses casos requerem um bom tanto do que você descreve como ‘manejo’” (apud RODMAN, 2003, p.199, nossa tradução).

Para lidar com os fenômenos da regressão, a técnica analítica deverá tomar, no entendimento de Winnicott (1954-5) uma configuração distinta, na qual terão vez conceitos tais como os do citado manejo e o de sustentação (“holding”). Haveria, então, dois tipos de trabalho no setting, que são expressados por Safra (1995) da seguinte forma:

[Winnicott] discrimina duas dimensões no processo de análise: o trabalho interpretativo, como postulado pela técnica clássica, e o trabalho que dá ao paciente a chance de encontrar na figura do analista um objeto que supra as funções necessitadas para que o desenvolvimento psíquico possa se completar. Winnicott afirma que esses dois tipos de trabalho na análise não são incompatíveis entre si. Esses dois níveis podem acontecer durante o processo de trabalho com um mesmo paciente e até na mesma sessão (1995, p.26).

O entendimento que construí, em referência ao que acontecia no percurso de análise de Antônia, passa por esse registro: o do estabelecimento de uma relação transferencial em que Antônia me colocava no lugar de sua mãe, agora pronta a segurá-la (“holding”) e revesti-la narcisicamente, para que ela pudesse, por um lado, processar suas necessidades regressivas e, a partir de então, continuar seu processo de diferenciação psíquica; por outro lado, que ela pudesse trazer para esse setting analítico, as expressões da dependência que, por falta de um continente, haviam se espalhado por sua vida cotidiana como um sintoma.

 

O suicídio da filha: um segundo eixo do trabalho analítico

A análise de Antônia parecia estar se descolando daquilo que a levou ao consultório, vagamente entendido como ligado à tentativa de suicídio da filha. Eram, desde o início, duas sessões semanais e alguns progressos haviam sido alcançados: Antônia, por exemplo, já lidava melhor com a recusa (depois amenizada) que Marta lhe fazia e uma rotina nova parecia ir aos poucos se estabelecendo em sua vida. Nisto, Antônia se dividia entre o apartamento em que morava e a casa dos seus pais onde morava Marta, ocupando aí, em primeiro plano, o cuidado com essa filha.

Mas isso aconteceu até o dia em que recebi, de Antônia, um telefonema lancinante, enlouquecido de dor. Eram cerca de 9 horas de uma manhã, Antônia tinha ido visitar Marta, foi diretamente ao quarto que já parecia ser da filha, na casa dos avós maternos.  Antônia abriu a porta e ... presenciou a terrível, excruciante, trágica cena da filha morta, em um estado lastimável de exposição. A essa cena Antônia voltará muitas vezes, e a descreverá de diferentes maneiras, em que o real e a ficção alucinativa às vezes pareciam co-existir. Mas Antônia foi forte naquela manhã: primeiro avisou as pessoas que estavam na casa, fez telefonema chamando o marido, sentou e rezou enquanto alguma providência começava a se organizar. Cerca de uma hora depois, ela era trazida para o consultório, praticamente carregada nos braços de familiares. Note-se que, uma hora depois, talvez ela devesse estar partilhando sua dor com a mãe, as irmãs, o marido, as filhas, a família em geral. O recurso tão rápido ao profissional poderia sugerir que, na sua infância, a babá assumiu frequentemente o lugar da mãe (Antonia vez por outra já tinha mencionado, de modo meio superficial, a babá de sua infância).

Obviamente que o tratamento de Antônia, desse momento em diante, foi direcionado para a cicatrização de uma ferida inominável, tudo passou a existir em função da elaboração do impacto desse encontro que Antônia teve com a morte, talvez a sua própria, simbolizada agora na morte violenta da filha.

Seus olhos que, antes, podiam até ser flertantes, agora se enevoaram. Começava ali a necessidade de um período de luto mais intenso – digo “mais intenso” porque hipotetizo que esse luto começou bem antes da morte real de Marta. Creio que houve o que chamarei de “um luto por antecipação”, iniciado 8 meses antes, quando da tentativa de suicídio. Mesmo tendo Marta sobrevivido então, aquela tentativa colocara, de uma forma já violenta, a possibilidade da morte da filha no cenário em que Antônia se movia. Assim, não era à-toa que, ao longo do tempo, Antônia não deixava de se referir, em atos falhos, ao “primeiro suicídio de Marta”. Esse “luto por antecipação” era vivido como um estado de espera pela morte real, possível de acontecer a qualquer momento, como de fato acabou acontecendo.

Veja-se, então, o paradoxo com o qual se convivia no setting: por um lado, havia a possibilidade de encontrarmos a vida de Antônia, seu bem-vindo renascimento psíquico, configurando-se um estado de espera, de gravidez dessa nova Antônia, conforme mencionado antes. Mas por outro lado, havia a possibilidade de se encontrar o oposto da vida – no caso, a morte de Antônia através de sua filha, configurando-se, também, um estado de espera, mesmo que exorcizado, não bem-vindo – de novo, uma gravidez ao contrário, como aquela do primeiro filho abortado na privada, evacuado. Não é de causar surpresa o fato de que Antônia tenha lembrado, no enterro de Marta, daquele seu bebê – ou feto – que não chegou a nascer.

Esse estado entre a vida e a morte foi um palco em que não só um, mas muitos lutos precisavam acontecer.

 

Os lutos de Antônia

André Green (1988), em seu texto “A mãe morta”, diz: “Se tivermos que escolher um único traço para marcar a diferença entre as análises atuais e o que imaginamos ser outrora, é provável que concordaríamos em situá-la em torno dos problemas de luto” (GREEN, 1988, p.239). A respeito do título “A mãe morta”, o autor esclarece que não se trata da morte real da mãe, mas de uma “imago que se constitui na psique da criança, em consequência de uma depressão materna” (idem, ibidem). Green chega a postular um “complexo da mãe morta”, a se revelar na transferência. Na forma como ele explica esse complexo, parece-me estar falando do caso clínico de Antônia. Cito-o:

Quando o sujeito se apresenta pela primeira vez frente a um analista, os sintomas de que se queixa não são essencialmente de tipo depressivo. Na maior parte das vezes, esses sintomas refletem o fracasso de uma vida afetiva amorosa ou profissional, subentendendo conflitos mais ou menos agudos com os objetos próximos. Não é raro o paciente contar espontaneamente uma história pessoal onde o analista pensa consigo mesmo que lá, em determinado momento, deveria, ou poderia se situar uma depressão da infância que o paciente não menciona. (...) Quanto aos sintomas neuróticos clássicos, eles estão presentes, mas com valor secundário ou, mesmo se são importantes, o analista tem a sensação de que a análise de sua gênese não fornecerá a chave do conflito. Em contrapartida, a problemática narcisista está em primeiro plano, sendo as exigências do Ideal do Eu consideráveis, em sinergia ou oposição com o Supereu. O sentimento de impotência é claro. Impotência para sair de uma situação conflitiva, impotência para amar, para tirar partido de seus dotes, para aumentar suas aquisições, ou, quando isto ocorreu, insatisfação profunda frente ao resultado (Idem, 1988, p.246).

Green (1988) vai, em seguida, cunhar o conceito de “depressão de transferência” oposta à “neurose de transferência” – no contexto da qual o paciente vai realizar a repetição de uma depressão infantil. A partir daí, a hipótese que faço de Antônia ter sofrido uma depressão infantil vinculada a alguma depressão materna vem da forma como Antônia se referia à própria infância e à presença da mãe em sua vida: para assuntos mais complexos, não se podia contar com essa mãe – uma pessoa boa, mas “inocente”, “distraída”, “banda voou”, “ingênua”, enfim, uma mãe que também precisava ser protegida dos perigos dessa vida. Minha hipótese é, ainda, a de que uma depressão infantil de Antônia poderia estar, agora, associada ao luto, antecipado ou real, pela morte da filha.

Green (1988) chega a ensinar que, no caso de uma criança – para mim, a hipotética criança Antônia – se defrontar com uma depressão materna, não importam muito os motivos que levaram a mãe a se deprimir, há muitas possibilidades para que isso tenha  acontecido. Mas, “em todos os casos, a tristeza da mãe e a diminuição do interesse pela criança [que, então, vai acabar se deprimindo] estão em primeiro plano” (idem, p.247). Green (1988) julga “importante sublinhar que o caso mais grave [para a depressão materna] é o da morte de um filho com pouco tempo de vida” (idem, ibidem).

Aqui devo dizer que, após rever esse texto de Green (1988), o que fiz foi procurar, em minhas anotações do material clínico, qualquer referência à época em que a mãe de Antônia tivesse perdido bebês, pois eu lembrava de ela ter me relatado que a mãe tinha tido mais de 12 filhos, alguns não-sobreviventes à fase inicial de vida. E relendo as anotações, lá estava: entre o 4o e o 5o filhos, houve um bebê que só sobreviveu 24 horas, o mesmo acontecendo entre o 9o e o 10o. Antonia era a 9a criança, depois dela houve um natimorto, quando ela tinha cerca de 2 anos de idade. Teria, assim, a mãe de Antônia sofrido essa perda de modo intenso, captada pela pequena Antônia, ainda com poucas condições psíquicas de elaboração do que estava acontecendo à sua volta? Green (1988) ensina que há certos acontecimentos dessa natureza que precisarão ser reconstruídos pela análise, já que o conhecimento factual da criança será faltoso. 

De qualquer forma, aquele autor informa que o desinvestimento de um filho vivo por uma mãe enlutada provoca um trauma narcísico na criança, uma perda de sentido, pois essa criança não dispõe de meios nem para dar conta do que aconteceu com a mãe, muito menos para dar conta do que aconteceu com o amor que até então lhe era devotado. Essa criança passará a tentar várias estratégias de reação, mas, no final, seu Eu irá pôr em ação uma série de defesas, que Green (1988) explicita no seu texto.

Admito que não houve tempo, nessa análise, para investigar todas essas possibilidades. Mas fez muito sentido, para mim, a hipótese de Antônia ter sofrido uma depressão na infância, e da sua necessidade de processar um luto infantil pela morte de uma mãe provocada pela morte de seu outro bebê. Era um luto “embrulhado” em outro luto, que talvez tenha encontrado expressão – ou escoamento - na cena daquele mencionado assalto ao banco, bem como nos seus desdobramentos. Então, a cena do assalto ao banco, da qual resultou o nome dessa filha, foi uma reparação ou uma substituição. Por essa cena passam vários vetores.

Ainda no sentido da necessidade de um luto infantil, relato o pesar com que Antônia se referiu, em várias sessões, aos seus brinquedos de infância, deixados para trás pela mãe quando a família se mudou para uma casa nova, maior, mais moderna. Antônia tinha então 8 anos, mas não se refizera ainda hoje dessa perda.

“Oito anos” eram, também para Antônia, uma idade mítica (digo “também”, por causa do famoso poema de Casimiro de Abreu, intitulado “Meus oito anos”: “Oh! Que saudades que eu tenho/ da aurora da minha vida,/ da minha infância querida, que os anos não trazem mais!”).  Foi, por exemplo, até essa idade que Antônia teria dormido no quarto dos pais, expulsa agora pelo nascimento (e sobrevivência) de um novo bebê. Antônia ainda lembrava, triste, das piadinhas que os irmãos mais velhos faziam de sua condição de expatriada, dizendo-lhe que o recém-chegado ocuparia seu lugar, que se ela quisesse permanecer no quarto dos pais, teria que dormir debaixo da cama deles.

É bem possível que, no conteúdo específico de relatos sobre isso, inclusive quanto à idade a que se referem, estejam em questão certas lembranças encobridoras. Pois, nos primeiros 8 anos de vida de Antônia, existiram dois bebês (nasceram três, incluindo-se o natimorto), cada qual possivelmente ocupando o lugar do anterior no quarto dos pais. Mas isso nunca foi questionado por mim – creio que trabalhávamos no espaço transicional de que fala Winnicott (1951), onde paradoxos são aceitos. Assim, a realidade externa e a interna se encontravam. Por outro lado, essa possível mistura de datas a respeito de até quando Antônia dormira no quarto dos pais é um indicador de que ali havia problemas a serem pesquisados.

Eventualmente eu lhe fiz uma provocação, pontuando que, nesse período que dormira no quarto dos pais, ela teria presenciado cenas de conteúdo sexual entre os mesmos, já que fulano e sicrano, seus irmãos/irmãs tinham sido feitos. A provocação não rendeu coisa alguma, acho que a fiz em hora inoportuna.

Já em outra situação em que um material de ordem sexual despontava, senti que não era mesmo a hora de pontuá-lo. Foi também em relação à idade de 8 anos, quando ela se curou de uma persistente enurese: Antônia relatou que a família toda veraneava em outra cidade, duas empregadas novas tinham sido contratadas especificamente para esse veraneio. Foi quando Antônia, ao passar por elas enquanto arrumavam as camas, ouviu uma delas dizer para a outra: “mas, deste tamanho, e ela ainda mija na cama?” Antônia disse que a vergonha que sentiu foi tão grande, que se curou no ato. Quem sabe, pergunto eu, houvesse a necessidade de existir alguém externo à família para possibilitá-la crescer, sair da infância? Aquela cura, inclusive, foi relativa: no seu modo regressivo de agora viver, a enurese noturna se faz, de novo, algumas vezes presente.

A literatura fala muito de um luto que acontece na adolescência pela perda da infância, mas talvez fale pouco de um luto necessário, ainda na infância, pela perda, por exemplo, dos  anos anteriores ao ingresso na escola. Luto pela perda dos brinquedos mais precoces, primeiras possessões que a vida se encarrega de afastar de seus pequenos donos. Dentre esses, a boneca grande, de louça, linda, que o papai trouxe de uma viagem, parecia uma criança de verdade. Até que um dia, depois de muitos anos, a boneca começou a se desmanchar. A dor foi grande: a boneca estava morrendo.

As lembranças de mortes ocuparam amplo espaço nessa análise. A da avó materna, quando Antônia tinha 3 anos de idade, ainda era vívida: o corpo estendido numa cama alta, um pano amarrado no seu rosto, os adultos rezando ajoelhados na sala. Outras lembranças sempre vinham: as cruzes nas estradas, sinalizando mortes no local; a amiga da mesma idade que morreu na juventude; os parentes ou conhecidos que morreram por doença ou por acidentes de trânsito ... o aborto que Antônia sofreu de seu primeiro bebê ... Todas essas e outras perdas se subsumiam agora na morte da filha Marta, tão jovem, um bebê ainda.

 

A grande dor de Antônia ... e da sua analista

J. D. Nasio (1997), no seu livro “Da Dor e do Amor”, descreve o sofrimento de uma paciente, Clementina, que lutara para engravidar e que, 3 dias depois do parto, perdeu o bebê, Lourenço, sem Clementina saber por quê. Nasio até se surpreende que Clementina não tenha interrompido a análise, porque “sabia, por experiência, como a pessoa enlutada, abatida pelo golpe de uma perda violenta, recusa-se categoricamente a encontrar-se com aqueles que, antes do drama, estavam ligados ao desaparecido” (NASIO, 1997, p.11).

Nasio(1997) descreve a volta dessa paciente ao seu consultório, que foi praticamente igual ao que aconteceu com Antônia quando retornou ao meu.  Diz Nasio:

[Clementina estava] esgotada ... incapaz de se locomover sozinha ... tiveram que acompanhá-la até a sala de espera. Indo ao seu encontro, vi uma mulher transformada pela desgraça. Não era mais que um corpo impessoal, extenuado, esvaziado de qualquer força, agarrando-se apenas às imagens onipresentes do bebê, em todas as cenas em que ele ainda estava vivo. Seu corpo encarnava perfeitamente o eu exangue do ser sofredor, um eu prostrado, suspenso à lembrança muito viva do filho desaparecido; lembrança martelada por uma pergunta obsessiva: ‘De que ele morreu? Por que, como ele morreu? Por que aconteceu comigo?’ (idem, p.12)

Nasio (1997) continua, agora refletindo:

Sabemos que esse estado de dor extrema, mistura de esvaziamento do eu e de contração em uma imagem-lembrança, é a expressão de uma defesa, de um estremecimento de vida. Também sabemos que essa dor é a última muralha contra a loucura. No registro dos sentimentos humanos, a dor psíquica é efetivamente o derradeiro afeto, a última crispação do eu desesperado, que se retrai para não naufragar no nada. (idem, p.12)

Mas aqui me separo um pouco de Nasio. Ele encontrou uma Clementina agarrando-se a imagens de seu bebê de quando ele ainda estava vivo. Já Antônia me chegou ao consultório muito abalada pela cena trágica em que encontrou a filha morta por um suicídio anunciado. Neste caso, essa era uma cena inelutável, dura em sua crueza, traumática, a cena-síntese de uma dor. Que Antônia, de certa forma, tentava reproduzir para mim através de uma imagem exaurida, dobrando-se repetidas vezes sobre si mesma – isto é, levantando e abaixando a parte superior do corpo, buscando no meu olhar um suporte para não cair, não enlouquecer.

Essa descrição mais pelo corpo do que por palavras, pedia-me para ver, por ela, o que ela mesma não podia ver. Mas eu também iria precisar de certas mediações – o chão também me faltava pela dor que a notícia do suicídio me causou. Então, em algum momento mais tarde, precisaríamos, sim, de palavras que permitissem ver o que Antônia tinha visto e sentir o que ela tinha sentido, através de sucessivas aproximações.

A escrita do caso foi me trazendo lembranças importantes quanto aos meus próprios sentimentos em relação ao tema de uma grande dor e do luto.  Lembrei, assim, de meu encontro ao vivo com a escultura fenomenal do grande Michelângelo, La Pietá, vista apenas uma vez em minha vida, há muitos anos, mas que me causou um impacto até hoje recordado. A cena do Cristo morto no colo de Maria, a mãe fitando esse filho morto: essa cena em mármore branco me fez ficar lá, parada, grudada ao chão, igualmente sem palavras, sem quase respirar, em estado de sideração. 

Sentimento semelhante me causara a música-lamento de Chico Buarque, em que se perguntava: “Quem é essa mulher, que canta sempre esse estribilho?” Ao que a mãe, na música, responde: “Só queria embalar meu filho, que mora na escuridão do mar”. Quando essa música me atormentou o juízo, eu não sabia que se tratava de uma homenagem a Zuzu Angel, que procurava pelo filho desaparecido, morto pela ditatura.

Creio que essas lembranças apontam para uma identificação minha com a dor dessas mães, como se às mulheres, de um modo geral, pesasse a possibilidade tanto de gerarem filhos dentro de seus corpos, quanto de perdê-los absurdamente.

Desse modo, creio que essa identificação a priori pode ter pavimentado o caminho diário que fez Antônia em direção ao meu consultório. Sim, diário: a partir da visão da cena do suicídio da filha, Antônia foi atendida, por certo tempo, todos os dias da semana, incluindo sábados, domingos e feriados. Meu supervisor do caso um dia se exasperou comigo e disse: “7 dias na semana? Nem no tempo de Freud se fazia isso! Como está ficando a questão financeira?” Aproveito para dizer aqui que o pagamento que eu recebia estava dentro dos valores da clínica social da SPP, embora Antônia não tivesse me chegado por essa via. Toco nessa questão do dinheiro porque, para minha surpresa, isso apareceu na sessão que aconteceu pouco depois da visão da cena do suicídio de Marta. Uma das primeiras coisas que Antônia me disse, curvada, quebrando palavras, gaguejando em desespero, foi: “Não me deixe, por favor, não me deixe. Mesmo que eu não lhe possa pagar, você me atende? Pelo amor de Deus, você promete que continua me atendendo, mesmo que eu não possa lhe pagar?” E creio que a promessa de se fazer continuar existindo esse tratamento, fosse o que fosse, nos deu também segurança para seguir em diante. Aproveito para dizer que os pagamentos das sessões passaram por aflições, mas, no final, foram sempre honrados.

E agora retorno Nasio (1997). Ele diz naquele citado livro:

Todo o meu saber sobre a dor - naquela época eu já estava escrevendo esse livro - não me protegeu do impacto violento que recebi ao acolher a minha paciente logo depois [da morte do filho]. Naquele momento, o nosso laço se reduziu a podermos ser fracos juntos: Clementina, arrasada pelo sofrimento, e eu sem acesso à sua dor. Eu ficava ali, desestabilizado pela impenetrável infelicidade do outro. As palavras me pareciam inúteis e fiquei reduzido a fazer eco ao seu grito lancinante. Sabia que a dor se irradia para quem escuta. Sabia que, em um primeiro momento, eu tinha apenas que ser aquele que, só por sua presença – mesmo que silenciosa – podia dissipar o sofrimento ao receber as suas irradiações. E que essa impregnação aquém das palavras poderia, justamente, inspirar-me as palavras adequadas para expressar a dor e acalmá-la enfim (op. cit., p.18/19).

Nasio (1997) faz, naquele livro, o que ele chama de uma metapsicologia da dor, mas que, aqui, não poderei apresentar  – creio que serei salva pelo gongo, que me sinaliza que esse trabalho já está muito longo.

 

O trabalho do luto

O período seguinte à cena traumática foi praticamente dedicado ao apaziguamento da alma de Antônia, revolvida que fora pelo suicídio da filha.

Freud (1974) mesmo ensina que o luto não é uma patologia, mas que há um trabalho psíquico necessário, que o luto realizará. Em seu texto de 1917, Freud assim apresenta esse trabalho:

O teste de realidade revelou que o objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto. Essa exigência provoca uma oposição compreensível – é fato notório que as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem mesmo, na realidade, quando um substituto já se lhes acena. Essa oposição pode ser tão intensa, que dá lugar a um desvio da realidade e a um apego ao objeto por intermédio de uma psicose alucinatória carregada de desejo. Normalmente, prevalece o respeito pela realidade, ainda que suas ordens não possam ser obedecidas de imediato. São executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de energia catexial, prolongando-se psiquicamente, nesse meio tempo, a existência do objeto perdido. Cada uma das lembranças e expectativas isoladas, através das quais a libido está vinculada ao objeto, é evocada e hipercatexizada, e o desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas. Por que essa transigência, pela qual o domínio da realidade se faz fragmentariamente, deve ser extraordinariamente penosa, de forma alguma é coisa fácil de explicar em termos de economia. É notável que esse penoso desprazer seja aceito por nós como algo natural. Contudo, o fato é que, quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido (FREUD, 1974, p.277).

Antônia, em seu trabalho de luto, teve avanços e recuos. Às vezes me chegava ao consultório novamente carregada e, muitas vezes, foi parar no hospital para atendimento de emergência: mesmo que estivesse sob medicação, apareciam sintomas como dores de cabeça insuportáveis, vômitos, pressão arterial na estratosfera. Houve vezes em que, em uma mesma semana, foi hospitalizada 2 ou 3 vezes. Assim, houve dias em que temi por sua vida, um acidente vascular-cerebral poderia acontecer.

Eu não percebi, de imediato, que o hospital também era um locus de realização de seu trabalho psíquico, ela não ia lá só por causa da pressão arterial. Em uma vez, por exemplo, a queixa para buscar a emergência hospitalar era a de palpitações, dificuldade de respirar, os pés gelados. Quando foi examinada, o médico nada encontrou: a pressão estava a 12 por 8, o eletrocardiograma deu normal, a temperatura do corpo também. Antônia pede para o médico checar novamente, ele o faz e re-afirma que está tudo normal, mas Antônia continua a sentir os braços e os pés gelados. E Antônia diz que dá trabalho no hospital, não fica só, não aceita qualquer leito na emergência – há um, especialmente, no qual não se deita: ele foi ocupado por Marta, quando a família a levou para exames médicos, mas na verdade era por suspeita de que Marta tivesse ingerido algo, em nova tentativa de suicídio. E embora estivesse sempre precisando sair correndo para lá, Antonia dizia que tinha muito medo de hospital, achava que não ia sair viva.

Foi ligando seus relatos sobre as hospitalizações que postulei que Antônia estava revivendo cenas ligadas à morte, especialmente a do suicídio da filha. Assim, os braços e os pés gelados eram os de Marta, Antônia experimentava o que foi aquela morte. Eram, também, uma introjeção de Marta, o objeto perdido, o que permite que se diferencie entre depressão e luto.

As idas aflitivas ao hospital eram, também, uma tentativa de fazer Marta nascer novamente: em uma das hospitalizações, Antônia sentiu tanto calor que tirou a blusa, sentou-se na cama e pediu “a lata” (“Que lata?” Perguntei. – “O cesto de lixo! O cesto estava limpinho, com um saco plástico dentro”, respondeu).  Antônia, sentada na cama, abriu as pernas, colocou a lata entre as pernas e ficou vomitando dentro. A minha interpretação foi a seguinte: “Isso foi uma cena de parto! No hospital, com as pernas abertas, o cesto entre as pernas, vomitando dentro...”. Antônia só ficou me fitando como se precisasse pensar sobre o que eu tinha falado. Não recusou a interpretação.

Outras formas de lidar com o suicídio eram por intermédio do ódio a algumas pessoas, e da culpa que sentia por não ter conseguido impedir aquele desfecho fatal. Rezar, rezar muito, ir à igreja, tudo isso fez parte. E havia os sonhos. Muitos sonhos. Em alguns, surgia outra pessoa no lugar de Marta, como se, assim, Antônia tentasse aplacar os deuses, dando-lhe alguém em troca da filha. Em outros sonhos, substituía-se o suicídio por outro tipo de  morte – de assassinato a câncer – então, não era só a aceitação da morte que era difícil, Antônia tinha, ainda, que lidar com o fato de que era uma morte por suicídio. De um modo geral, Marta estava viva nos sonhos, embora soubesse, também ali, que ela já tinha morrido.

Quando fazia quase 1 ano que Marta havia morrido, houve um sonho em que Antônia apareceu grávida, estava feliz, alisava a barriga, o bebê se mexia dentro. Foi um período em que também, em vigília, seus olhos eram atraídos para bebês que circulassem por onde Antônia estivesse passando. Falando sobre esses bebês que encontrava, disse: “O que me faz lembrar de Marta não são os adolescentes que vejo, são os bebês, eles me tocam mais”. E um dia, refletindo sobre essa atração que começou a sentir por bebês, Antônia disse que, talvez, o que estava acontecendo era que ela, quem sabe, estivesse querendo ter netos ... ser avó.

Quem sabe haveria aí uma saída sublimatória? E então, novamente lembro o que Nasio (1997) diz sobre o luto. Reproduzo:  

A imagem do ser perdido não deve se apagar; pelo contrário, ela deve dominar até o momento em que – graças ao luto – a pessoa enlutada consiga fazer com que coexistam o amor pelo desaparecido e um mesmo amor por um novo eleito. Quando essa coexistência do antigo e do novo se instala no inconsciente, podemos estar seguros de que o essencial do luto começou (op. cit., p.13)

A instalação desse essencial começou a se mostrar na própria forma de Antônia se apresentar no consultório. Um dia, percebo, de maneira mais nítida, a luta que ela travava pela vida: eram pouco mais de 6 meses passados da data do suicídio, Antônia chega à sessão e me parece muito bem. Ela mostra os brincos, a sandália nova. Vejo também a roupa de cor bege claro que ela está usando – e aí me dou conta de que, até então, Antônia praticamente só usava roupa escura, embora não preta.

Mas esse re-início de vida vinha mesclado a dias de muito sono, muito choro. Uma vez, já terminada a sessão, Antônia, já do lado de fora da porta, desata a chorar. Recolho-a novamente e fazemos mais alguns minutos de sessão, até que ela possa ir, aliviada.

Os primeiros aniversários mensais da morte – até mesmo o aniversário da tentativa de suicídio – eram lembrados ativamente, com ida à igreja. Até que, no 6o mês, esse aniversário de morte coincidiu com o aniversário de 50 anos de Antônia. E aí ela quebrou aquela sequência de missas, não comemorou seu aniversário de vida, mas tampouco o da morte de sua filha. Eu não a parabenizei por não mais necessitar daquela obrigação ritual, mas admito que tive vontade de fazê-lo.

Com o passar do tempo, fui conseguindo iniciar uma redução no número de sessões semanais de Antônia, conforme metas que lhe propus e que ela foi aceitando a contragosto. Foi um trabalho equivalente a um desmame: primeiro, ensaiei com ela que ficasse sem vir aos domingos, depois também aos sábados, depois passamos para “apenas” 4 dias na semana. E menos que isso não consegui, embora eu quisesse chegar a um ponto, sem ter dito isso a ela, em que Antônia pudesse, então, vir ela mesma a pagar suas sessões.

No que se refere à quantidade de sessões semanais, eu lembro novamente de Winnicott, que diferencia desejo de necessidade. Assim, em carta de 1954 a Clifford Scott (transcrita em Rodman, 2003, p.198), Winnicott diz:

(...) Desde que comecei a experienciar regressões, eu tenho oferecido aos pacientes interpretações mais frequentemente  em termos de necessidade e, menos, em termos de desejo. Em muitos casos, parece-me suficiente dizer, por exemplo: ‘Nessas alturas, você precisa que eu te atenda neste fim de semana’. A implicação é que, de meu ponto de vista, eu poderia me beneficiar de um fim de semana, o que, indiretamente, ajudaria o paciente; mas, do ponto de vista do paciente, naquele momento particular não há nada que não seja  prejuízo, se existir um vácuo na continuidade do tratamento. Se, num momento como esse, o analista disser ‘Você quer que eu desista do meu fim-de-semana’, ele estará na pista errada e estará, de fato, errado”.  (tradução nossa).

Quando chegou o aniversário de 1 ano do suicídio de Marta, Antônia passou a sessão contando sobre as tentativas que fizera nos últimos dias, sem sucesso, de se desfazer de pertences de Marta. Mas se isso era algo que Antônia tinha extrema dificuldade de fazer, havia ali a expressão de um sintoma antigo: ela não conseguia se desfazer de muitas coisas das três filhas, inclusive dos seus brinquedos mais precoces, mesmo com autorização das mesmas. Ao final dessa sessão, já estávamos à porta de saída do consultório, mas ainda pelo lado de dentro, quando Antônia se voltou para mim e disse que, no dia 31 de dezembro daquele ano, ela gostaria de me dar um abraço por tê-la ajudado a atravessar tão bem esse ano da morte de Marta. Eu lhe disse que ela poderia me abraçar hoje (estávamos ambas em pé, próximas uma da outra). Abraçamo-nos, de maneira forte, emocionadas, lágrimas me querendo saltar para fora. No abraço, senti-a frágil, de um tamanho menor do que aparentava aos olhos.

 

Considerações finais

O trabalho do luto não tem tempo para terminar – o que se percebe é que outros temas começam, depois de certo tempo, a aparecer na análise. No caso de Antônia, o luto por essa filha pareceu simbolizar, com expressão máxima, todos os outros lutos que ainda precisa fazer. Confiei que ela pudesse continuar a fazê-los com a próxima analista, escolhida por Antonia a partir de 3 nomes que lhe indiquei.

Para minha surpresa, após meu retorno à cidade, depois de 2 anos morando fora, um certo dia encontro Antonia à porta do meu consultório, agora em novo endereço. Segundo me disse, ela tinha “intuído” que eu estava de volta, procurou por meses até conseguir me encontrar. Pedi-lhe que, primeiro, conversasse com sua analista atual. Ela o fez e retornou daí a uns dias, mas o que está acontecendo nesse novo período de análise fica para uma próxima oportunidade.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Vera Esther Ireland
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58038-100 – João Pessoa/PB
Tel.: (83)3247-1235 E-mail: veraireland@yahoo.com.br

Recebido: 01/03/2011
Aprovado: 29/04/2011

 

 

Sobre a Autora

Vera Esther Ireland
Psicanalista da SPP - Sociedade Psicanalítica Paraíba. Membro do Círculo Brasileiro Psicanálise. Psicóloga. Mestrado, Doutorado e Pós-doutorado em Educação. Professora aposentada (atualmente colaboradora) Universidade Federal da Paraíba.

 

 

1 Segundo Laplanche e Pontalis (1992), Freud (1900) acrescenta esta noção, em 1914, à Interpretação dos Sonhos,  entendendo a regressão formal como aquela em que os modos de expressão e de figuração habituais são substituídos por modos primitivos (LAPLANCHE; PONTALIS, 1992, p.441).