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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.38 Belo Horizonte Dec. 2012

 

 

O alto da palmeira: à margem de nós mesmos – literatura e psicanálise em Darandina, de Guimarães Rosa

 

The palm tree high: the margins of ourselves – literature and psychoanalysis in Darandina, de Guimarães Rosa

 

 

Moema Rodrigues Brandão Mendes

Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora
Sociedade de Estudos Psicanalíticos
Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos
Academia Granberyense de Letras

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende estabelecer um diálogo com a obra de Mikhail Bakhtin Problemas da poética de Dostoiévski por meio do conto “Darandina”, de Guimarães Rosa, objetivando uma introdução concisa aos conceitos bakhtinianos. A escolha das teorias de Mikhail Bakhtin, para compor esta ligação entre literatura e psicanálise, deve-se ao fato de seus estudos literários terem influenciado o desenvolvimento cultural de vários países do mundo, inclusive o Brasil. O teorizador russo é autor de estudos influentes, contemporâneos do formalismo russo – anos 1920 e 1930 –, divulgados tardiamente no país, pelos autores Tzvetan Todorov e Julia Kristeva, em meados da década de 1960. Este conto mune-se de recursos literários metafóricos e de conceitos que incursionam pela psicanálise numa reflexão muito instigante sobre verdade evidente versus verdade representada, conceitos freudianos. A abordagem de referência se fará à teoria da carnavalização, atendo-se à sátira menipeia como essência, e às inversões de valores sociais hierárquicos, visto que o conto em estudo versa sobre a loucura, causadora de manifestação de estranhamento a olhares convencionais. O caráter ideológico do conto é importante na medida em que busca a análise de uma consciência individual, social e cultural que permeia a fronteira entre a loucura e a sanidade. Por conseguinte, ler “Darandina”, sem destacar a relevância ocupada pela psicanálise, seria afastar-se da percepção de uma sedutora riqueza de possibilidades.

Palavras-chave: Darandina, Literatura, Psicanálise.


ABSTRACT

This paper aims to establish a dialogue with the work of Mikhail Bakhtin's Problems of Dostoevsky's poetics with "Darandina", a short story by Guimarães Rosa, aiming to a concise introduction to the bakhtinian concepts. The choice of the theories of Mikhail Bakhtin, to make this connection between literature and psychoanalysis, is due to the fact that his literary studies have influenced the cultural development of countries around the world, including Brazil. The Russian author wrote influential studies contemporary to the Russian formalism – 20s and 30s – lately heralded in that country in the mid-60s by the authors Tzvetan Todorov and Julia Kristeva. This short story with its metaphorical literary devices, through its psychoanalytically grounded concepts, explores a very thoughtful provoking reflection on the evident truth X, as representing the truth, a Freudian idea. The referential approach will be to the ‘carnivalization’ theory, in keeping with its essence as a Menippean satire, and inversions of hierarchical social values, since the story is about madness causing strangeness to conventional views. The ideological character of the story is important in that it seeks review of an individual, social and cultural consciousness permeating the border between madness and sanity. Therefore, to read "Darandina", without highlighting the relevance occupied by psychoanalysis, would move away from the texts perception of a seductive richness of possibilities.

Keywords: Darandina, Literature, Psychoanalysis.


 

 

1. Introdução

Este trabalho pretende estabelecer um diálogo entre a teoria de Bakhtin (1981) e o conto “Darandina”, de Guimarães Rosa (2001), incursionando pela psicanálise e objetivando uma introdução concisa aos conceitos bakhtinianos. Destaca-se que o conto se encontra no livro Primeiras Estórias, publicado em 1962.

A abordagem de referência se fará ao pensamento polifônico, atendo-se à multiplicidade de vozes, bem como às inversões de valores sociais hierárquicos, que justifica o estar “à margem de nós mesmos”, visto que “Darandina” versa sobre a loucura, causadora de estranhamento a olhares convencionais.

Esses olhares, resultado da interface entre a verdade evidente e a verdade representada, são guiados por aparências que revelam seres e situações capazes de manifestar seus “lados avessos”, marginais, que compõem a formação do sujeito. Numa relação dialógica entre o “eu” e o “outro”, surgem dicotomias conceituais bakhtinianas, tal como a manifestação de um plurilinguismo que, além de implicar presença de várias linguagens, mistura comédia e uma possível tragédia num texto único.

Muitas indagações permeiam as reflexões que serão feitas: a normalidade seria consequência de um “eu-sujeito” oprimido e a loucura uma manifestação da liberdade, enquanto ausência de regras, convenções e opressão?

Assim, analisamos, a partir desse questionamento, a construção de um peculiar diálogo socrático por meio da síncrise, ou seja, o confronto de diferentes pontos de vista sobre as forças da ordenação social e a reação desconcertante de um homem nu que, do alto de uma palmeira-real, localizada em uma praça pública, propõe novas ideias e novos conceitos, promovendo uma cômica inversão de valores sociais. Percebemos, no texto, que as ideias não estão prontas e nascem do confronto entre discursos, nasce do confronto marginal de vários “eus”.

Cumpre ressaltar que “Darandina”, de Guimarães Rosa, não foi objeto de tanta atenção por parte da crítica literária, porém, seria interessante indagarmos em que medida, nas décadas de 1950 e 1960, era comum a propagação de discursos reformistas em meios intelectuais que apresentavam, às vezes, tons revolucionários e propostas vanguardistas. O protagonista faz isso contextualizando reflexões muito próximas de situações vividas no momento presente pela sociedade brasileira. Assim, em meio a esse movimento, observamos um escritor que explora uma estrutura discursiva transitando entre o lúdico e o revolucionário, não no tratamento do tema – a loucura –, mas no modo como esse conteúdo é estruturado em sua narração, enquanto manifestação de um sujeito e suas múltiplas faces.

 

2. Guimarães Rosa: garimpando um estilo em várias obras

Até a publicação do romance Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa, em 1956, era conhecido apenas como autor de Sagarana – obra que introduziu, sistematicamente, duas novas vertentes na ficção literária de então: o regionalismo e a reação espiritualista que se tornariam uma síntese da obra do autor.

Rosa, enquanto autor regionalista, aborda interiores do país trazendo à cena personagens típicas, tais como jagunços, sertanejos, enfim, homens do povo, reproduzindo, de forma bem próxima ao documental, a linguagem característica dessa camada social. Já a reação espiritualista é observada quando o autor descortina o metafísico, tangenciando o sobrenatural com inserção de momentos de epifania.

Torna-se interessante apontar, em seu modo de escrever, o apuro formal, o caráter experimentalista da linguagem, a erudição no trato com o universal literário de seu tempo, cuja importância nenhuma vertente acadêmica atribuía: escrever prosa poética. Nesse sentido, a produção roseana tornou-se única: um marco do desenvolvimento da língua em todas as suas virtualidades. O propósito da inovação linguística manifesta-se no decurso de seus enredos, acompanhado de sua inesgotável capacidade de fabulação ao inventar tramas e personagens.

Com a intenção de mostrar sua originalidade que o torna incomparável, é indispensável, neste estudo, referenciar suas obras: Sagarana (1946); Corpo de Baile (1954); Grande Sertão: Veredas (1956); Primeiras Estórias (1962); Tutaméia, Terceiras Estórias (1967); Estas Estórias (1969); Ave, Palavra (1970).

Evidencia-se que não se questiona, na atualidade, a importância das obras de Guimarães Rosa na literatura mundial, então, não é surpreendente que tenha influenciado um grande número de escritores que se aproximam de sua maneira inconfundível de escrever e, certamente, novidades estéticas hão de fecundar dentre os novos ficcionistas que dinamizarão o processo cultural na atualidade.

 

3. Franciscano magnífico: uma manifestação de insanidade

A estória de “Darandina” comenta que era clara a manhã. O narrador, não denominado, iniciando o horário de serviço, encontrava-se junto ao portão de uma instituição destinada a tratar de doenças mentais, lugar em que trabalhava, provavelmente, como médico.

Repentinamente, alguém gritou e o narrador, apesar do relance, percebeu que um senhor distinto que passava por ali, furtara uma caneta-tinteiro da lapela do paletó de outro transeunte e saíra correndo, perseguido. Objeto de perseguição, o homem refugiou-se no alto de uma palmeira da praça, na qual havia subido com rapidez, embora vestido socialmente. Sem demora, formou-se em volta da árvore uma pequena multidão de curiosos que tecia comentários sobre aquele inusitado episódio.

Iniciam-se, assim, as especulações: o narrador julgou tratar-se de um camelô inoportuno que queria vender canetas, Adalgiso – colega de serviço que compunha a dupla de plantão – puxou-o pelo braço e lá se foram os dois, passando no meio do “ajuntamento” formado ao pé da árvore. As pessoas supunham que o tal homem fosse um doido que fugira e, por isso, facilitavam a passagem dos plantonistas, identificados, então, pelo avental que trajavam. Adalgiso comentou, sussurrante, que o fugitivo não devia ser um louco, pois tinha aparência de normal.

Lá de cima da palmeira-real, na praça principal do centro da cidadezinha, entretanto, o homem discursava. Afirmava que não era demente, mas percebia que estava quase sendo tomado pela insanidade ao ver a humanidade enlouquecida, e em virtude disso, resolvera que iria internar-se em um hospício, no qual estaria protegido, quando a humanidade piorasse.

O narrador, analisando, obteve, com a atitude do homem na palmeira, a confirmação da teoria do professor Dartanhã – o filósofo: 40% da humanidade é louca reconhecida e grande parte dos demais seres humanos poderia receber o mesmo diagnóstico.

Adalgiso cochichou que o colega deles, Sandoval, reconhecera o homem da palmeira: era o Secretário das Finanças Públicas, portanto chamariam as autoridades para decidirem que atitude tomar. Enquanto não aparecia ninguém que tomasse providências, o tal “louco” se equilibrava muito bem e falava como um doido de verdade, que ele não era gente, que ele era uma ilusão.

Chegou o diretor do hospício, acompanhado de policiais, de médicos, de Sandoval, do capelão, de enfermeiros e padioleiros trazendo camisa-de-força. O diretor e o professor Dartanhã – que não se davam, começaram a discutir: o primeiro acreditava na normalidade do homem da palmeira, dizendo que se tratava do Secretário, o outro aplicava-lhe um diagnóstico de paciente mental.

De novo, o homem-da-palmeira-real-avante-acima bradou e a multidão ouviu em silêncio: “Viver é impossível” (ROSA, 2001, p.183), consequenciando em simpatia intelectual pela multidão. Veio do diretor a ideia de chamar os bombeiros. Enquanto nada se fazia, as vaias dirigidas ao homem da palmeira se fizeram ouvir, quando espalharam sua identidade de pessoa importante. Achavam que não passava de um demagogo.

Nesse instante, o homem da palmeira deixou cair um dos sapatos. Dr. Bilôlo – o diretor do manicômio – exclamou que o homem era um gênio. O povo, então, começou a aplaudi-lo. O outro sapato também foi arremessado do alto da árvore. Mais aplausos.

Vieram os bombeiros e começaram a armar uma escada. Lá do alto da palmeira ouviu-se: “O feio tá ficando coisa... Nada de cavalo-de-pau! Querem comer-me ainda verde? Para. Só morto me arriam, me apeiam! Se vierem me vou eu. Me vomito daqui!” (ROSA, 2001, p.194). Diante do murmúrio das pessoas lá de baixo, replicou: “Cão que ladra não é mudo!” (ROSA, 2001, p.194). Prendeu-se à árvore só pelos joelhos e deu a impressão de que cairia. A multidão gritou: “Não” (ROSA, 2001, p.194). Os bombeiros interromperam as manobras com a escada e o homem parou de balançar.

Apareceram o Chefe de polícia e o Chefe de gabinete do Secretário. Este olhou para o alto da palmeira-real com o binóculo e disse que não estava reconhecendo o Secretário. O diretor, ansioso por popularidade, tomou o alto-falante dos bombeiros e tentou resolver a situação. Disse: “Excelência! Excelência!” (ROSA, 2001, p.195). Entretanto a multidão o vaiou, então ele passou o megafone para o narrador e foi ditando o que este deveria falar: palavras que convencessem o homem a descer do alto da palmeira e se entregar, porém o louco resistiu e não aceitou.

O impasse estava estabelecido. Parecia não haver solução. Naquele instante, surpreendendo a todos, apareceu o verdadeiro Secretário de Finanças que de cima do carro dos bombeiros, dirigiu-se ao público e manifestou sua indignação ante o que ele suspeitava ser calúnia, jogo de adversários para destruí-lo.

O louco, então, gritou: “Vi a quimera!” (ROSA, 2001, p.203), e começou a tirar a roupa. Jogava peça por peça por sobre a multidão, até ficar completamente nu, mostrando um corpo muito branco em contraste com a folhagem verde da palmeira, em pleno sol e calor do meio-dia. Esta atitude provocou escândalo e algazarra no meio do povo e ira por parte das autoridades.

Os bombeiros foram novamente acionados. O pessoal da imprensa, fotógrafos e filmadores documentavam tudo.

Reagindo, o homem-da-palmeira-real-avante-acima, para não ser capturado, subiu até o ponto mais alto da árvore e gritou: “Minha natureza não pode dar saltos” (ROSA, 2001, p.204). Achou-se que iria saltar ou cair. A escada avançava e recuava, tentando ajustar-se ao salvamento.

A essa altura, surgiu um grupo de estudantes barulhentos com a intenção de resgatar aquele que eles supunham ser um colega deles. No meio da balbúrdia, o Secretário tentou contê-los. Obteve relativo sucesso, todavia acabou indo para casa mansamente, sem ser percebido por ninguém.

O professor Dartanhã, reconciliado com o diretor, explicava para aqueles que se encontravam mais próximos, que o infeliz era doente mental. Dr. Bilôlo o considerava um primitivo, como os índios. Resolveu, então, convencer o desastrado homem a descer de um lugar tão perigoso. Para tanto, acompanhado pelo narrador, foram subindo pela escada dos bombeiros. O louco ouvindo-os gritou: “Socorro!” (ROSA, 2001, p.205). Os espectadores lá de baixo estavam enfurecidos com o pobre coitado, exigiam que ele pulasse do alto da palmeira, pois este era o espetáculo esperado.

O narrador notou que o homem da palmeira merecia piedade, porque de repente, no grito de “socorro” veio um momento de lucidez. O louco saiu do delírio em que estivera, entrou em pânico, tomado pela aerofobia e pelo medo da multidão que queria linchá-lo, ou seja, o brado de socorro do louco, no alto da palmeira, marcou o início de um breve momento no qual ele recobrou a lucidez, que o fez ter medo de alturas e medo de um povo ameaçador reunido na praça. Por poucos instantes, o doente mental adquiriu a noção exata da realidade que lhe apresentava o risco de morte. Num salto, conseguiu alcançar a escada manobrada pelos bombeiros.

Então, voltando-se para o povo, exclamou, talvez novamente enlouquecido: “Viva a luta! Viva a liberdade!” (ROSA, 2001, p.206). As pessoas aglomeradas em volta da palmeira, em vez de vaiá-lo como vinham fazendo, passaram, então, a aplaudi-lo, recebendo-o festivamente e carregando-o como vitorioso.

Os médicos e funcionários do hospício comentavam que tinham acabado de assistir a um caso inédito e sem explicação. Só Adalgiso, muito sério, nada falou e “foi para a cidade comer camarões” (ROSA, 2001, p.206), finalizando a trama.

Assim, observamos que a narrativa se situa entre a comicidade e o humor e que as ações se desenvolvem em uma região urbana não especificada, numa cidade não muito pequena, já que nela há uma corporação do Corpo de Bombeiros e um Secretário de Finanças.

O tema se desenvolve em torno da loucura para a qual são feitos comentários, tomadas as devidas providências, estabelecidos discussões e portentosos discursos. O leitor se vê diante de um enredo de suspense em torno de um protagonista, aparentemente, doente mental, que, ao proferir frases desconexas, porém, filosóficas e proféticas, é capaz de levar a multidão de ouvintes ao delírio triunfante, a ponto de ser tratado como herói.

Quem está, na verdade, tomado (a) pela loucura?

Há um provável objetivo de se observar a psicologia social relacionada à loucura: o demente revela sua patologia mental, entretanto a multidão reage igualmente insana, e se refere ao protagonista como o “franciscano magnífico”: provavelmente “franciscano” relacionado a São Francisco de Assis, símbolo da pobreza – homem nu no alto da palmeira – inferindo a um despojamento total de bens materiais, e “magnífico”, vocábulo associado à ideia de exibicionismo.

Enfim, metaforicamente, “Darandina” não decifra intenções e através da margem de nós mesmos, na travessia entre a sanidade e a loucura está presente o disfarce de questionamentos sérios acerca da insanidade.

 

4. Teorias em desfile

A escolha das teorias de Mikhail Bakhtin para compor este trabalho deve-se ao fato de seus estudos literários terem influenciado o desenvolvimento cultural de vários países do mundo, inclusive o Brasil. O teorizador russo é autor de estudos influentes, contemporâneos do formalismo russo – anos 1920 e 1930 –, divulgados tardiamente no país, pelos autores Tzvetan Todorov e Julia Kristeva, em meados da década de 1960.

Na obra Problemas da Poética de Dostoievski, Bakhtin (1981) apresenta a teoria da carnavalização, mostrando o carnaval não como um fenômeno literário, mas como um momento de festividades variadas de cunho carnavalesco. Dessa forma, construiu uma linguagem simbólica que expressa articulada, e diversificadamente, uma única cosmovisão carnavalesca relacionada à categoria social, permitindo que se revelem, de forma concreto-sensorial, os aspectos ocultos da natureza humana. Essa linguagem se transpõe para a literatura, criando imagens metaforicamente artísticas. A carnavalização é a manifestação do espírito sério-cômico, portanto, carnavalesco, na arte da palavra, que segundo Stam (1992),

[...] antecipa a concepção de carnaval de Bakhtin, como subversão do discurso oficial e libertação da censura, um momento especial em que o discurso interno não teme tornar-se discurso externo (STAM, 1992, p.21).

Vale ressaltar que outra fonte da teoria foi a sátira menipeia que, para Bakhtin (1981), está essencialmente enraizada na percepção carnavalesca de mundo, culminando na carnavalização.

“Darandina” é um conto que se apresenta em narração linear, primeira pessoa, sendo de natureza diversa e humorística cuja significação deve ser saboreada e apreendida ao longo da narrativa. Percebe-se que o carnaval se instala nele imediatamente, quando o protagonista, um senhor aparentemente normal, bem vestido e de corpo atlético, sobe no alto de uma palmeira em praça pública, fica nu, profere discursos desconexos e causa rebuliço na multidão observadora.

Sujeito de trato, tão trajado (...) – estranhava, surgindo do carro, dentr’onde até então cochilara, o chofer do dr. Bilôlo. – “A caneta-tinteiro foi que ele abafou, do outro, da lapela” (...) – “Pega!” Ora, quase no meio da praça, instalava-se uma das palmeiras-reais, talvez a maior, mesmo majestosa. Ora, ora, o homem, vestido correto como estava, nela não esbarrou, mas, sem nem se livrar dos sapatos, atirou-se-lhe abraçado, e grimpava-a, voraz, expedito arriba, ao incrível, ascensionalíssimo (...). Nosso homem, ignaro, escalara dela já o fim, e fino. Susteve-se (ROSA, 2001, p.189).

O conto rompe com a lógica cotidiana, aproximando-se do que se considera uma literatura carnavalizada. O autor, já no início da narrativa, explica, em tom bastante cômico, que o leitor vivenciará um dia de “chinfrim, afã e lufa-lufa” (ROSA, 2001, p.188).

Este estudo tem, como parte do objeto, de analisar “Darandina” sob as perspectivas da sátira menipeia, gênero que tem sua existência ligada ao diálogo socrático, com breve incursão por algumas reflexões freudianas que se constroem por si só. Há fronteira entre a sanidade e a loucura? Retomemos as menipeias:

As menipeias inauguraram uma etapa de quebra da rigidez entre os gêneros literários. Nas menipeias prevalece o aspecto cômico como forma de criação de situações extraordinárias para se provar uma verdade com muita liberdade de invenção. A aventura e a fantasia tornam-se meios indispensáveis para a criação de episódios extraordinários na experimentação de uma ideia (MACHADO, 1995, p.183).

O tema de “Darandina” é a loucura. Há um acontecimento – núcleo do qual se originam os desdobramentos do sujeito relacionados ao caso –, um homem, completamente nu, sobe numa palmeira em praça pública. Segundo as teorias de Bakhtin (1981), infere-se uma possível leitura de que este conto apresenta particularidades fundamentais da sátira menipeia:

a) A presença do elemento cômico já se instaura protagonizado por um “louco” de boa aparência que se abriga no alto de uma palmeira, em praça pública, após um pequeno furto por ele praticado. Vários personagens da narrativa apresentam traços cômicos e patéticos. Outra manifestação da comicidade pode se percebida na interferência de um filósofo presente entre a multidão que se instalou debaixo da palmeira: “– Uma palmeira é uma palmeira ou uma palmeira ou uma palmeira? – inquiria um filósofo” (ROSA, 2001, p.189). Como o objeto do roubo foi uma caneta-tinteiro, um camelô da praça aproveitou para fazer a propaganda de canetas que se encontravam à venda em sua banca: “Discursava sobre canetas-tinteiro? Um camelô, portanto, atrevido na propaganda das ditas e estilógrafos (...). Extremamente de arrojo era o sucesso, em todo o caso, e eu humano; andei ver o reclamista” (ROSA, 2001, p.190).

b) A liberdade de invenção temática e filosófica se manifesta quando da fusão da realidade com o ato da criação, fato que se traduz na indagação de quem era o homem. Um interno do manicômio local? Se não, quem o seria? Adalgiso, o plantonista do hospital, afirmou que o homem não era um hóspede do local. Para isso, era só observar que o mesmo tinha as faces normais e o conteúdo de seus discursos e argumentos denotavam um fundo mental razoável. A interrogação procede e obtém-se, então, a resposta: “Sabe quem é? Deu nome e cargo. Sandoval o reconheceu. É o Secretário das Finanças Públicas... – assim baixinho, e choco, o Adalgiso” (ROSA, 2001, p.191).

c) A criação de situações extraordinárias, ilustrando uma provocação e experimentação de uma ideia filosófica, é apresentada com intensidade no momento em que a multidão, reunida debaixo da palmeira-real em praça pública, é constituída de autoridades locais, tais como o prefeito, o secretário de finanças do governo, o diretor do manicômio, o delegado, os policiais, o capelão e as pessoas comuns do povo. Todas ali, unidas, sem nenhuma presença de hierarquia social, ouvindo os aforismos ditos pelo protagonista do alto da palmeira: “Viver é impossível!” (ROSA, 2001, p.192).

d) Observa-se a presença de cenas de escândalos, de comportamentos excêntricos, de discursos e declarações inoportunas ao longo da narrativa. O herói se coloca no alto de uma palmeira em praça pública e, em dado momento, deixa cair um sapato: “Mas o que era o teatral golpe, menos amedrontador que de efeito burlesco vasto” (ROSA, 2001, p.195). Não bastando, oferece à multidão um verdadeiro espetáculo, tirando peça por peça de sua indumentária, ficando completamente nu, incitando o povo ao delírio. Acompanhando essa atitude, vieram afirmações como: “O feio está ficando coisa”; “Nada de cavalo-de-pau”; “Querem comer-me ainda verde?!” (ROSA, 2001, p.195).

e) O fantástico experimental se destaca na personificação do estado de loucura por meio do nome do diretor do manicômio local, Dr. Bilôlo, remetendo ao significado de abilolado, alienado, doido, ironizando o homem habilitado a oferecer um diagnóstico e um possível tratamento para uma manifestação de insanidade.

f) A representação de estados psicológicos-morais anormais do homem é evidenciada, por exemplo, quando as pessoas, embaixo da palmeira, apresentam possíveis diagnósticos para as manifestações do “homem-palmeira-real-avante-acima”: “Psicose paranoide hebefrênica, dementia praecox, se vejo claro! – fala o professor Dartanhã”; “Excitação maníaca, estado demencial... Mania aguda, delirante... (...) – diz outro” (ROSA, 2001, p.192).

g) A síncrise aparece em manifestações de pontos de vista que se confrontam em relação a um assunto, incitando variados questionamentos. A pergunta é: “Que ver: que fazer?” (ROSA, 2001, p.193). Para o homem descer da palmeira, o diretor do manicômio dava conselhos, a polícia se armava de cassetetes, os bombeiros arranjavam a escada giratória para alcançá-lo; a multidão chamava-o de demagogo, Dr. Bilôlo achava-o um gênio e herói da narrativa, observando tudo, pronunciou: “Se vierem, me vou, eu... Eu me vomito daqui!...” (ROSA, 2001, p.195).

h) Temas antitéticos, contrastes, jogos de oximoros são manifestações essenciais no desfecho do conto em que se observa quem realmente apresenta o caráter de loucura, indagando-se sobre ele: o homem que se coloca no alto de palmeira, em praça pública, nu, proferindo discursos libertários, ou a multidão que, após ouvir estes discursos, aplaude, delegando a ele um heroísmo contestável sob o ponto de vista da lógica. Da mesma forma, enquanto a multidão carrega o homem nos ombros, em esplêndido, as autoridades concluem: “Vejo que ainda não vi bem o que vi...”, “A vida é constante, progressivo desconhecimento...” (ROSA, 2001, p.203). E ninguém disse mais nada. Adalgiso foi para a cidade comer camarões.

i) O elemento de utopia social é proferido, principalmente, no discurso libertário desenvolvido pelo herói – um discurso que o salvou de uma multidão, em princípio, sedenta de vontade de apreciar um espetáculo trágico:

Iria o povo destruí-lo? Ainda não concluindo. Antes, ainda na escada, no descendimento, ele mirou, melhor, a multidão, deogenésica, diogenista. Vindo o quê, de qual cabeça, o caso que já não esperava. (...) Apenas proclamou: – “Viva a Luta! Viva a Liberdade!” – nu, adão, nado, psiquiartista. Frenéticos, o ovacionaram, às dezenas de milhares se abalavam. Acenou, e chegou embaixo, incólume. Apanhou então a alma de entre os pés, botou-se outro. Aprumou o corpo, desnudo, definitivo (ROSA, 2001, p.204 ).

j) O uso de gêneros intercalados atravessa a narrativa, podendo-se perceber que se mistura narrativa em prosa com discursos oratórios inflamados, tanto na fala do herói como na fala de outros personagens, tais como o filósofo, o médico e o secretário de finanças do governo, quando o herói faz sua defesa em relação ao fato de a multidão ter achado que ele era o louco da palmeira. Isso seria uma afirmativa de opositores políticos.

k) A multiplicidade de estilos e a pluritonalidade são intensificadas pela essência e presença dos gêneros intercalados citados anteriormente.

l) A preocupação com problemas sociopolíticos contemporâneos se apresenta por meio do monumental desfecho do conto, quando se observa uma manifestação revolucionária de povo para povo em nome da liberdade: “Pegaram-no, a ombros em esplêndido, levaram-no carregado. Sorria, e, decerto, alguma coisa ou nenhuma proferia. Ninguém poderia deter ninguém, naquela desordem do povo pelo povo” (ROSA, 2001, p.204).

m) O fantástico experimental se dá quando a observação é feita sob um ângulo de visão distinto do comum, numa relação de poder hereditário. O diretor, embaixo da palmeira, profere as seguintes palavras: –“Amigo, vamos fazer-lhe um favor, queremos cordialmente ajudá-lo...” – produzi, pelo conduto; e houve eco. – “Favor? De baixo para cima?...” – veio a resposta, assaz sonora (ROSA, 2001, p.197).

Essas particularidades de gênero da sátira menipeia ilustram o prevalecer do aspecto cômico no conto analisado, enfatizando a criação de situações extraordinárias que levam o leitor a refletir sobre o estado de loucura em uma sociedade, cujos valores se invertem a cada comportamento excêntrico intraduzível sob o ponto de vista da lógica e da formação do sujeito identitário.

 

Considerações finais

Em “Darandina”, numa categoria conceitual bakhtiniana de carnavalização com reflexões breves em relação à manifestação do sujeito, o louco, o marginalizado, o excluído homem da palmeira-real apropriou-se do centro simbólico, numa incontestável explosão de alteridade, relativizando o aspecto mágico transcendental da loucura.

O fato de o “homem-da-palmeira-real-avante-acima” ver o mundo de modo diferente do habitual, alimentou um espetáculo polêmico, conflitivo e cômico, concebendo, assim, a função do carnaval: operar uma inversão do mundo sério e oficial, num clima de extrema vitalidade e transformação. Observa-se, também, no desenvolvimento da narrativa, a essência carnavalizada como um fenômeno literário-psicanalítico-cultural amplo, por meio de um discurso-situação de comportamentos histórico-culturais de uma multidão reunida embaixo de uma palmeira em praça pública.

O caráter ideológico do conto é importante na medida em que busca a análise de uma consciência individual, social e cultural que permeia a fronteira entre a loucura e a sanidade. Assim, este artigo pretendeu apontar uma análise por disfarces do eu, enquanto formação do sujeito, sem, entretanto, analisá-lo como faria um olhar psicanalítico. Por conseguinte, ler “Darandina” sem destacar a relevância ocupada pela psicanálise seria afastar-se da percepção de uma sedutora riqueza de interpretações. Está lançado o desafio.

 

Referências

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.         [ Links ]

FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.12. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1969.         [ Links ]

FREUD, S. O futuro de uma ilusão. O mal-estar na civilização e outros trabalhos. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.13. Rio de Janeiro: Imago, 1974.         [ Links ]

MACHADO, I. A. O romance na tradição do riso. In: O romance e a voz: a prosaica dialógica de Bakhtin. Rio de Janeiro: Imago, 1995.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Rua Oswaldo Cruz, 58 – Santa Helena
36015-430 – Juiz de Fora/MG
E-mail: moemarodrigues@yahoo.com.br

RECEBIDO: 11/09/2012
APROVADO: 22/10/2012

 

 

Sobre a Autora

Moema Rodrigues Brandão Mendes
Graduada em Letras, pela Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. Especialista em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora/MG. Mestra em Letras pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora/MG. Doutora em Letras, Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense – RJ. Professora do Programa de Mestrado em Letras do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora/MG, ministrando as disciplinas "Pesquisa em Literatura" e "Textos Acadêmicos em Literatura Brasileira". Membro da Sociedade de Estudos Psicanalíticos – JF/MG. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos – RJ. Membro da Academia Granberyense de Letras, Artes e Ciências – JF/MG; ocupando a cadeira 36. Membro da Associação de Pesquisadores em Crítica Genética – SPÉ. Publicou as obras: "Poesia e Fé" um estudo sobre Murilo Mendes e Jorge de Lima (2003); "Colar de contos premiados" (2006), obra adotada no vestibular do CTU-UFJF (Colégio Técnico Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora, versões 2007 e 2008) e "Crítica textual e edição de textos-interagindo com outras ciências", editora Prismas, 2012. Nas Faculdades Integradas de Cataguases, FIC – Grupo UNIS, MG, ministrou a disciplina "Estudos comparados de Literaturas africanas dos países de Língua Portuguesa, no Curso de Pós-Graduação em Letras. É coordenadora do Grupo de Pesquisa "O RESGATE DAS ESCRITURAS: da correspondência e dos manuscritos de escritores mineiros para composição de um dossiê genético-crítico."