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Estudos de Psicanálise
Print version ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.38 Belo Horizonte Dec. 2012
Sobre psicanálise, oralidade e odontologia
About psychoanalysis, orality and dentistry
Ricardo Azevedo Barreto
Círculo Psicanalítico de Sergipe
Círculo Brasileiro de Psicanálise
Universidade Tiradentes
RESUMO
Este artigo é uma parte de um dos capítulos da tese de doutorado “Uma análise institucional do discurso em grupo com dentistas: cenas e posições”, defendida em 2010 no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo por Ricardo Azevedo Barreto sob a orientação de Dra. Marlene Guirado. O texto refere-se à seção do capítulo “Psicanálise, Psicologia e Odontologia: algumas considerações necessárias” denominada “Sobre psicanálise, oralidade e odontologia”, que apresenta algumas relações entre psicanálise e odontologia.
Palavras-chave: Psicanálise, Oralidade, Odontologia.
ABSTRACT
This paper is part of a chapter of the doctoral thesis “An institutional discourse analysis in dentists’ group: scenes and positions” defended at the Institute of Psychology, University of São Paulo in 2010 by Ricardo Azevedo Barreto under the supervision of Dr. Marlene Guirado. The text refers to the part of the chapter “Psychoanalysis, Psychology and Dentistry: some fundamental considerations” called “About Psychoanalysis, orality and Dentistry”, which presents some relations between Psychoanalysis and Dentistry.
Keywords: Psychoanalysis, Orality, Dentistry.
Agradeço à professora Dra. Marlene Guirado pela dedicada orientação no doutorado.
Inicialmente, procuramos acompanhar o lugar da boca e da dentição em alguns posicionamentos que tomam uma perspectiva da Psicanálise, área psi com construções teóricas importantes sobre a oralidade. Destaquemos que, neste eixo, não há, na cena discursiva, diretamente a Odontologia por parte do que apresentaremos com base em nossos interlocutores. Numa segunda corrente de ideias, nós nos endereçamos a considerações da Psicanálise em que há uma presença clara de um lugar para seus contatos com a Odontologia e sua reflexão sobre as relações nesta área de atuação.
Reportemo-nos, em princípio, ao pai da Psicanálise. Freud não desenvolve um trabalho específico no terreno da Odontologia, mas se refere desde muito cedo em sua obra (1905/1980) a uma sexualidade infantil. Entre os aspectos que comenta, delineia um lugar para a sexualidade oral.
Sabemos que, na perspectiva freudiana, o desenvolvimento psicossexual é crivo para a compreensão do ser humano. A fase oral é a primeira de uma série e marca o contato do bebê com o mundo ao nascer. Podemos falar psicanaliticamente que o seio não é apenas provedor de alimento, necessário à sobrevivência, mas é fonte de prazer. Com os dentes, a atividade psíquica se incrementa. Como há possibilidades de idas e vindas no desenvolvimento, podemos falar de pontos de fixação e regressão à fase oral e dimensões da oralidade em algumas psicopatologias.
De acordo com Abraham (1970), existe uma diferenciação na fase oral. No primeiro nível, a libido liga-se ao sugar, e o ato é de incorporação. A criança não distingue o seu eu do mundo externo. Não há sentimentos de ódio e amor. Não existe ainda a ambivalência. No segundo nível, sádico-oral, o sugar é trocado pelo morder. Há predominância de impulsos de canibalismo. A criança, ao se atrair por um objeto, tem a tendência de destruí-lo. Há o desenvolvimento da ambivalência.
Em uma perspectiva kleiniana, podemos falar, com base em Kristeva (2002), que as relações de objeto ocorrem desde o início da existência. O objeto primário é o seio da mãe. Em princípio, para o bebê, existe uma divisão entre a experiência do seio (diríamos: ou mamada) sentido como bom, que gratifica, e o seio sentido como ruim, que frustra. Há, no início, uma separação entre amor e ódio com situações ansiógenas e defesas de uma posição chamada de esquizoparanoide. Com o tempo, há uma integração, por meio de uma noção de objeto total, bem como uma dinâmica psíquica mais madura em que há a descoberta pelo bebê de sua realidade psíquica própria. É a posição depressiva. Podemos ainda mencionar que essas posições são intercambiáveis no decorrer da vida.
As contribuições acerca da oralidade e os simbolismos inconscientes da boca e dos dentes são comuns entre os psicanalistas. Saimovici e Saimovici (1972) relatam, por exemplo, fantasias de vagina dentada, uma relação simbólica entre dente e pênis, bem como o significado da dentição e dos dentes nas obras de diferentes psicanalistas.
Giron (1988), ao falar do simbolismo onírico dos dentes, menciona que, na perspectiva freudiana, a “queda do dente” teria significado de castração ou desta como castigo em função da masturbação. Em sonhos de mulheres, o dente teria o significado de nascimento. A respeito da primeira dentição, esta seria associada à separação entre prazer e função alimentar de autoconservação, bem como ao surgimento de impulsos de sadismo na fase oral. Sobre a segunda dentição, ela se instalaria em conexão com o desenvolvimento sexual.
Aberastury (1992) menciona sintomas comuns ao lactente no primeiro ano de vida (segunda metade deste) que recebeu o rótulo de transtornos de dentição. A autora (1996) refere-se a alterações no sono, entre outros aspectos emocionais relacionados à dentição. Para ela, o nascimento dos dentes de um bebê se associa ao aumento das tendências agressivas. Também relaciona dentes a uma visão de genitalidade.
Barreto (2002) refere-se à perspectiva freudiana de desenvolvimento psicossexual, retomando explicações de Davidoff, Hall e Lindzey, Fadiman e Frager. É desenhado que, na fase oral, em torno do primeiro ano de existência, há obtenção de prazer por meio da cavidade oral e dos lábios. A alimentação, por intermédio do seio e da mamadeira, cumpre não apenas uma função de sobrevivência, mas é provedora de conforto e carinho. Com o surgimento dos dentes, incluem-se morder e mastigar, atos através dos quais haveria liberação da agressividade. Há referência ainda ao desmame como desafio e a traços orais em adultos, como dependência, comer excessivo e fumar.
Conforme percebemos, a Psicanálise contorna uma posição especial à boca e aos dentes, entendendo-os sob o crivo de noções como fase oral, inconsciente e sexualidade nas quais se incluem ideias sobre genitalidade e castração. Apesar de sabermos das diferenças teóricas entre os autores da área, e não nos debruçarmos sobre esses meandros, o que ressaltamos é que, no discurso da Psicanálise, há a legitimação de um lugar especial para a boca e os dentes, para a oralidade, entendida como instauradora do contato do bebê que nasce com o mundo, fundamental para a constituição do psiquismo.
Pensamos ainda que este lugar discursivo para a oralidade tem desdobramentos instigantes ao ser reposicionado na Odontologia, havendo uma compreensão dos acontecimentos odontológicos com base em noções psicanalíticas clássicas.
Neste momento, mencionaremos algumas contribuições pelo ângulo da Psicanálise no que tange a um lugar discursivo para a Odontologia e as relações nesta área de atuação. Para tal interlocução, alguns autores supracitados serão reinseridos na cena que se constitui em discurso.
Nas fronteiras da América Latina, mais especificamente na Argentina, ressaltamos a inventividade de Aberastury. No entanto, não é só com esta autora que vemos a importância e o pioneirismo argentino nas contribuições da Psicanálise à Odontologia.
Podemos referir-nos, segundo Aberastury (1992, 1996), há muito tempo, a uma colaboração de dentistas, pediatras e psicanalistas de crianças. A autora explicita não crer estar equivocada ao afirmar que, em seu país, pela primeira vez, profissionais da Odontopediatria solicitaram informações, bem como se aproximaram da análise.
Por meio da Psicanálise, a autora propõe contribuições que nos ajudariam a pensar sobre as relações na Odontologia a partir de um referencial psicanalítico. Aberastury (1996) compreende a angústia odontológica, associando-a à significação inconsciente e diz:
A angústia despertada pelo tratamento odontológico é de tipo irracional, pois nada do que acontece durante um tratamento dessa índole explica a intensidade da angústia que desperta, nem as reações que se observam [...] Com frequência, somos inteirados de que pessoas que sofreram operações estoicamente ou mulheres que suportaram partos complicados e que, em geral, tinham enfrentado com valentia situações difíceis na vida, paradoxalmente demonstram uma estranha incapacidade para enfrentar um tratamento odontológico. Em consequência dessas angústias, costumam esquecer a hora marcada antecipadamente, depois de um exame odontológico, chegar tarde e até preferem mentir ao dentista sobre o motivo de sua ausência, embora tenham perfeita consciência da irracionalidade de sua conduta [...] (ABERASTURY, 1996, p.103).
Percebemos que, muitas vezes, as interfaces que se estabelecem entre Psicanálise e Odontologia situam-se entre as margens do lugar discursivo da oralidade e de suas ressignificações, o que também reconhecemos em nosso próprio dizer:
É indubitável que a fase oral é uma das mais importantes para a Odontologia. Esta profissão exerce suas atividades predominantemente na boca, isto é, lida diretamente com os significados da oralidade nos contatos. Além disso, o prolongamento da amamentação (natural e/ou artificial), bem como o uso de substitutos (chupeta, polegar e paninhos) podem ser a base para problemas odontológicos (BARRETO, 2002, p.32).
Sobre os significados estabelecidos para a fase oral na relação dentista-paciente, também apresentamos:
O conhecimento desta fase é ainda de grande valor para a aproximação inicial entre dentista e paciente. O bebê na fase oral pode colocar coisas na boca, como brinquedos, e tem geralmente uma forte dependência do acompanhante. Quando tem dentes, suas atividades são incrementadas pelo morder e mastigar, o que expressa constantemente nas relações (BARRETO, 2002, p.32).
Por outro lado, entre os diversos conceitos da Psicanálise posicionados no contexto da Odontologia, podemos marcar que frequentemente aparecem as ideias de transferência e contratransferência que salientam a reedição do passado nas relações atuais:
A transferência é um acontecimento presente no relacionamento entre duas ou mais pessoas e que, pela intensidade e irracionalidade com que se apresenta, não pode ser explicado com base na situação atual, estando relacionado a vivências anteriores a esta, normalmente referentes às primeiras vinculações. No contexto dos atendimentos, pode se manifestar em atitudes positivas ou negativas em relação ao profissional. Como exemplos de transferência positiva, temos casos de pacientes que atribuem ao dentista propriedades onipotentes [...] ou aqueles que se dizem apaixonados pelo (a) dentista [...] A transferência negativa pode ser caracterizada por sentimentos de desconfiança, inveja, desprezo e irritação [...] (EMÍLIO-MARCHIONI, 2002, p.35).
A contratransferência, por outro lado, refere-se às emoções despertadas no profissional, como resposta aos movimentos afetivos de seu paciente, e que também estão vinculadas às vivências anteriores do primeiro. Esta pode ser positiva ou negativa. Por exemplo, uma dentista que está sendo constantemente assediada por seu paciente pode desejar concluir rapidamente o tratamento para ficar livre do assédio ou então desmarcar as consultas com este (EMÍLIO-MARCHIONI, 2002, p.36).
Barreto e Guirado (2009), em uma visão psicanalítica distinta da habitual, já no termo da Análise Institucional do Discurso, falam sobre Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente:
[...] Em vez da obrigatoriedade de aproximações de noções como as de pulsão e recalque, entre outras clássicas à obra freudiana, aportes epistemológicos externos ao campo psi mobilizam o lugar psicanalítico [...] Localizemos: rebeldia na e da Psicanálise reconhecida com força instituinte. Não foi essa uma das grandes lições de Freud ao revisar tantas e tantas vezes seus conceitos?! (BARRETO; GUIRADO, 2009, p.150).
Conforme percebemos na literatura consultada, em alguns movimentos de contato entre Psicanálise e Odontologia, conceitos psicanalíticos passam a ser significados, ou aplicados, na Odontologia, imprimindo nesta área noções muito importantes entre os psicanalistas e os rumos das aproximações entre essas instituições distintas de conhecimento e práticas com implicações nas relações que se estabelecem no contexto odontológico.
Pensamos ainda que a Psicanálise pode estabelecer interfaces com a Odontologia que problematizem o lugar desta no campo do saber. A referência à oralidade por nós, psicanalistas, em contato com dentistas, não legitimaria a Ciência Dentária, a Odontologia em sua posição tradicional de conhecimento/fazer que trata dos dentes e da boca?
Considerações finais
Escutando o escrito acima, redigido em outro momento, podemos ressaltar que a Psicanálise tem múltiplas formas potenciais de se aproximar da Odontologia.
Como a Odontologia contemporânea tem se ampliado para além das ideias de tratamento dos dentes e da boca, a reflexão psicanalítica sobre as práticas odontológicas pode aprimorar-se apresentando novos ângulos de análise e temáticas, e não aqueles que são os mais habituais para nós. Dessa forma, as relações entre áreas distintas do conhecimento inovam-se no tom do movimento pulsante que as institui.
Referências
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Endereço para correspondência
Avenida Gonçalo Prado Rollemberg, 211/606 – São José
Centro de Saúde Prof. José Augusto Barreto
49010-410 – Aracaju/SE
E-mail: ricardobarreto@saolucas-se.com.br
RECEBIDO: 17/09/2012
APROVADO: 22/09/2012
Sobre o Autor
Ricardo Azevedo Barreto
Membro do Círculo Psicanalítico de Sergipe, filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise. Psicólogo pela USP. Mestre e doutor (Área: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) pela USP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CEPSIC da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP. Teve experiência de treinamento no Butler Hospital (RI-USA). Editor da revista Estudos de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise no biênio 2008-2010. Professor titular da Universidade Tiradentes (UNIT), onde ensina nos cursos de Psicologia e Medicina.