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Estudos de Psicanálise
Print version ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.39 Belo Horizonte July 2013
Psicanálise e sobredotação: pontuações elementares
Psychoanalysis and giftedness: elementary scores
Cássio Eduardo Soares MirandaI; Ruth Helena Pinto CohenI, II, III
I Universidade Federal do Rio de Janeiro
II Escola Brasileira de Psicanálise
III Associação Mundial de Psicanálise
RESUMO
Com base no fragmento de um caso clínico, o presente artigo apresenta breves discussões psicanalíticas acerca da superdotação e dos efeitos que receber esse nome tem para um sujeito.
Palavras-chave: Superdotação, Psicanálise, Nomeação.
ABSTRACT
This paper presents a brief psychoanalytic discussion about giftedness and the effects it has received this name for a subject, based on the fragment of a clinical case.
Keywords: Giftedness, Psychoanalysis, Namming.
Introdução
A psicanálise, desde sua fundação por Freud, se constitui como uma ciência da clínica, ou seja, se refere a um método de tratamento que extrai suas conclusões a partir daquilo que o psicanalista extrai de uma terapêutica. É o próprio Freud ([1912]1996, p. 152) quem sustenta que: “a psicanálise faz em seu favor a reivindicação de que, em sua execução, tratamento e investigação coincidem”. De modo geral, essa coincidência advém do esforço do psicanalista em tratar o sujeito que traz algum sofrimento psíquico e a necessidade de atualização da teoria frente aos desafios que a própria clínica impõe a ele.
A contemporaneidade mostra que são múltiplas as possibilidades de atuação do psicanalista, e a psicanálise é chamada a intervir até mesmo em situações em que parece que as coisas vão bem. Em função disso, propomos neste artigo algumas pontuações da psicanálise em torno de um tema normalmente ocupado pela psicologia e, de modo geral, não pertinente ao campo da psicanálise: a superdotação. Entretanto, nos últimos tempos mães, pais e instituições escolares têm encaminhado crianças e adolescentes sobredotados a uma terapêutica analítica em decorrência de uma série de impasses e dificuldades que as crianças ditas sobredotadas vêm enfrentando tanto na sua intimidade quanto em sua vivência social.
Conforme demonstra a psicologia, sobretudo a cognitiva, a sobredotação é um fenômeno multidimensional e nela se encontram agregadas diversas características relacionadas aos aspectos cognitivos, sociais e afetivos. Também é sabido que contexto sócio-histórico e cultural possui uma significativa importância no que diz respeito à identificação e à proposição de atividades ligadas à sobredotação. Se o tema se refere a um campo em que psicólogos, educadores, pedagogos, sociólogos, médicos, entre outros, se ocupam, a partir de diversos enfoques teóricos, aqui pretendemos apresentar algumas pontuações provenientes da psicanálise, que poderão auxiliar na ampliação das discussões em torno do tema.
Assim, o objetivo deste artigo é abordar a sobredotação, brevemente, a partir da psicanálise, apresentando aspectos subjetivos envolvidos na constituição do sujeito nomeado como sobredotado. Para tanto, iniciamos uma breve discussão em torno do tema e suas relações com a psicanálise para, ao final, apresentar o fragmento de uma entrevista de orientação psicanalítica realizada com um sujeito dito sobredotado e o que se extrai disso.
Fragmentos de uma entrevista
Uma entrevista realizada com um sujeito dito superdotado que frequentava uma instituição de apoio para esse fim também nos chamou a atenção diante de alguns fatores ligados à posição do sujeito diante do Outro familiar. Tiago é um garoto de 13 anos, que aos cinco foi diagnosticado como superdotado. Ele reside com seus pais e uma irmã caçula. A mãe relata1 que já nos primeiros meses de vida notava algo de diferente nele, quando comparado com outras crianças. Segundo ela, aos seis meses de idade já queria ficar em pé no carrinho, sempre se mexendo, ativo, sendo “mais que os outros”: “Eu olhava as outras crianças e achava que elas eram muito lerdas, todas quietinhas. Com um ano ele já andava, parou de usar fraldas com um ano e meio, e com um ano e quatro meses já falava, com dois anos falava tudo e tudo certo porque eu ensinava falar tudo certo”, relata a mãe. Ela ressalta que percebeu que seu filho era superdotado desde muito cedo, pois sempre gostou de estudar e, segundo diz, com uns três anos começou a ensinar as letras e os números para ele; ela escrevia num caderno, e ele copiava, e dizia: “Você tem que escrever na linha”. Quando ele foi para a pré-escola, aos quatro anos, já sabia escrever; contava histórias pelos desenhos dos livros, pois ainda não sabia ler. A partir disso, a professora anuncia à mãe: “Seu filho é superdotado!”. Tal nomeação não é sem efeitos, e o “filho perfeito” tão desejado pela mãe se confirma na nomeação recebida pela professora.
A mãe de Tiago, quando solteira, não pensava em ter filhos. Quando se casou só pensava em tê-los depois de muito tempo, pois já se preocupava com os gastos e com a educação. A gravidez de Tiago foi planejada, e sua mãe diz que ficou muito feliz quando soube que estava grávida. Segundo ela, só queria ter “filho perfeito”, mas não imaginou que fosse nascer “tão perfeito assim”. Não passou mal durante a gravidez, e com três para quatro meses Tiago já se mexia. Ela relata sua satisfação ao saber da superdotação do filho. Para ela, tratava-se de uma confirmação da “diferença” que ela já pensava que o filho tinha em relação às outras crianças.
Segundo relatos da família, com três anos Tiago começou a frequentar o maternal em uma escola pública perto de casa. Sua mãe diz que sempre se preocupou com a educação do filho e relata que, ao ser matriculado na escola, a professora logo percebeu que havia algo diferente nele. Depois prosseguiu com o ensino fundamental em uma escola estadual de um bairro vizinho. Iniciou seus estudos já na segunda série, pois passou por um processo de aceleração escolar, devido ao estágio avançado que apresentava no desenvolvimento da leitura/escrita em relação aos demais alunos. Quando estava na terceira série, foi indicado para participar das atividades de um núcleo de enriquecimento para altas habilidades e, na quarta série, foi transferido para uma escola privada, mantida por uma grande multinacional, como bolsista, onde estuda até hoje.
No ambiente familiar, de acordo com os pais, Tiago sempre fez muitas perguntas sobre tudo. A mãe relata que, quando criança, não gostava de brincar com carrinho. Seu interesse era e montar e desmontar brinquedos, e ele “adorava mesmo era de escrever, adorava uma caneta e um papel, se tivesse isso ficava o dia inteiro entretido. Então, eu escrevia um monte de frases pra ele ficar copiando”. Segundo Tiago, “ser um superdotado é diferente, mas as pessoas podem ter habilidades e não explorá-las. Cada pessoa tem uma habilidade, porém em áreas diferentes. Não sou superior porque tenho uma habilidade”. Ao responder quando percebeu que era superdotado, diz ter se dado conta quando foi chamado para participar do Núcleo de Enriquecimento de sua cidade porque eles explicaram o motivo de sua seleção. Com o passar do tempo percebeu o que era ser superdotado. Diz que se sentiu bem, alegre, porque tinha algo diferente e estava tendo a oportunidade de ficar com outras pessoas, também diferentes e desenvolver suas habilidades. Segundo seus relatos, ele fica feliz ao perceber que sua mãe fica satisfeita com sua condição. Acredita que parte de sua alegria se relaciona à alegria que dá aos pais e ao fato de saber que eles podem ficar despreocupados com ele. Para ele, ser superdotado é um bem e relata que sabe que tem uma habilidade/talento que a maioria das pessoas não tem, e isso pode ajudá-lo a alcançar um futuro melhor.
Em um caso de neurose, temos um assentimento por parte desse sujeito, que insiste na posição em que o Outro o colocou. De fato, tem-se aí um modo de gozo específico, que é, como resultado de uma operação lógica, a identificação a uma designação e, nesse lugar, Tiago se faz um nome: superdotado.
Breves discussões sobre o caso
Nas entrevistas com os pais, podemos destacar a existência de histórias antecedentes mesmo à ocasião do nascimento dos filhos, tempo referido à infância materna, no qual já se marcava certo posicionamento por parte dessa mulher sobre o que o filho iria representar, desejo viabilizado a partir da chegada de um filho superdotado. Essa criança se constituiria no objeto idealizado, que viria responder prontamente à demanda incondicional da mãe, dada a sua dependência de amor. Nesse sentido, a superdotação pode ser considerada uma solução para atender o desejo materno. Partimos da hipótese de que o sujeito dito superdotado traz concepções a seu respeito que atendem à demanda do par parental e das instituições sociais. Dessa forma, se encontra alienado de seu desejo; no entanto, tal posição o coloca ainda em uma condição de mais-valia, uma vez que há um ganho social e subjetivo ao ser tomado como superdotado. Conforme pudemos verificar no discurso de Tiago, ser superdotado garante a ele uma satisfação já que encarna os ideais do par parental, bem como os ideais estabelecidos pela escola e pela sociedade.
Além disso, no caso relatado, ficou patente a atuação de uma operação significante, de uma operação de linguagem, como instituinte de um sujeito determinado a se colocar no lugar de superdotação. Assim, podemos pensar que a nomeação “superdotado” aparece como um traço bastante peculiar de Tiago, a partir do qual o sujeito pôde articular sua cadeia de significante, marcando-se como sujeito em sua singularidade. A nosso ver, o diagnóstico de superdotado se configura para Tiago como uma fixação em um nome que silencia o sujeito e o transforma em pura determinação, sem dar lugar a uma expressão sexual do inconsciente. Trata-se aí de uma identificação que decorre do fato de o sujeito subsumir uma imagem, um nome, um significante, elementos que recobrem um vazio do sujeito.
Sobredotação e psicanálise: um breve percurso
É de conhecimento geral que no Ocidente a inteligência é um atributo muito desejado. Sabemos que na complexificação da escolarização a que chegamos possivelmente não haja outro atributo mais valorizado que a inteligência. Tal valorização é facilmente perceptível por qualquer pessoa quando nos referimos a uma certa idealização em torno da escola, da criança, do adolescente e das possibilidades de trabalho que o país oferece.
Da mesma maneira, com a valorização da inteligência pelo discurso social, encontramos a ciência, principalmente sustentada pela psicologia e pela neurociência, ocupando-se em desvendar os “mistérios” da inteligência bem como de seu fracasso. De modo geral, permanece uma instância avaliadora proveniente do discurso do outro, que faz com que haja uma nomeação em torno das crianças e adolescentes e que seja tida como algo finalista: ou se é ou não se é inteligente. Na contemporaneidade, nos diz Viganó (2005, p. 17), a avaliação nos permite passar “...da ordem da ciência ao empirismo da perícia, constituindo um parecer que utiliza a competência científica. Recolhem-se os dados e, com a dificuldade de agregá-los, surgem as hipóteses e as teorias”. A questão maior que surge como decorrência disso, a nosso ver, é o caráter criacionista do significante, ao nomear os sujeitos como infradotados, medianamente dotados ou superdotados.
No mesmo viés dessa discussão, Lacan (s.d) sustenta que, à medida que o social outorga ao sujeito um nome, não resta outra saída a esse sujeito a não ser responder desse lugar, mesmo que para isso ele perca sua singularidade. Ora, o que Lacan diz, de modo mais preciso, é o “ser nomeado para”, uma nomeação que é “da ordem de ferro” e causa — Lacan se interroga — uma “degenerescência catastrófica”. Nesse sentido, podemos pensar também na elaboração lacaniana em torno do conceito de afânise (1998). Uma vez tendo surgido no campo do Outro, o significante mestre (S1), na medida em que ele representa o sujeito para outro significante, o segundo significante tem por efeito a afânise do sujeito. Desse modo, nos diz Lacan (1998, p. 207), “O sujeito aparece em algum lugar como sentido, em outro lugar ele se manifesta como fadding, como desaparecimento”. Com isso, verificamos, no que diz respeito à nossa discussão, que a ciência aparece na contemporaneidade como o principal representante do discurso social; portanto, é formador de subjetividades. De modo mais específico, no que diz respeito à superdotação, cabe investigar os efeitos do discurso social sobre o PAH, pois, existe uma identificação ao significante da nomeação2.
É claro que não nos pautamos apenas nessa dimensão do discurso social para pensar na superdotação. O que nos chama atenção é o ideal colocado em torno da genialidade e que, pode ter um caráter segregacionista, assim como o fracasso escolar. No entanto, trata-se de uma segregação menos danosa ao sujeito, uma vez que o sujeito que fracassa é segregado de sua subjetividade e de diversos elementos da cultura. A esse respeito, encontramos diversos autores psicanalistas que tratam da relação entre psicanálise e educação, mas de modo geral pensam na sempre importante dimensão do fracasso escolar.
De início, destacamos o trabalho de Maud Mannoni (1985, 1989) por ser ela uma das primeiras a discutir a relação entre psicanálise e educação em uma perspectiva lacaniana e que, ao mesmo tempo, nos servirá de base para a formulação de uma de nossas hipóteses. Mannoni (1989) sustenta que a relação entre os pais e com seu filho está em ação mesmo antes do nascimento da criança e remete cada um dos pais ao modo como cada qual viveu seus édipos e ultrapassaram as “distorções” ligadas ao “desejo de incesto”. Assim, essa autora nos diz que o sujeito surge marcado por uma “intersubjetividade”, segundo a qual o lugar que ocupa no desejo da mãe e o modo como o pai comparece na castração é que marcará a constituição do sujeito.
Em A criança retardada e a mãe, ela sustenta que a demanda da mãe em relação ao filho se constitui como envelope de seu desejo perdido e, quando esta mãe “solicita do filho que seja inteligente” (MANNONI, 1985, p. 42) alguma coisa vai ocorrer. Para ela, tanto nos casos de debilidade quanto de superdotação, a criança permanecerá como aprisionada no desejo da mãe.
Na medida em que, por trás da sua demanda, é de outra coisa que se trata, a criança permanecerá como uma sombra, tendo sido atribuído um lugar preciso à sua inteligência na fantasia materna. A relação mãe-filho vai estabelecer-se através de um prisma deformante (MANNONI, 1985, p. 43).
Para a autora, a criança é convocada a ocupar um lugar que satisfaça o desejo inconsciente da mãe. Dessa forma, com base em Mannoni e Lacan (2003), podemos pensar que a criança é colocada como um modo de atender o desejo materno, o que nos remete à posição sintomática da criança.
É evidente que as discussões aqui feitas e que se aplicam ao propósito de nossas discussões remontam os escritos freudianos. Sabemos, com Freud ([1908]1996) que a curiosidade intelectual está associada à curiosidade sexual. Desse modo, sustentamos que o conceito de inteligência proposto pela psicanálise sofre um deslocamento em relação àquele tratado pela psicologia clássica. Na psicanálise, a inteligência passa a ser vista sob o primado do sexual e do desejo. Para Freud, as interrogações que as crianças fazem a respeito das origens (“De onde vêm os bebês?”) não se propõem a resolver o enigma do nascimento dos bebês. Antes, se referem a um tempo em que a criança se vê confrontada como sujeito diante do desejo do Outro materno.
No entanto, diante dessas e de outras interrogações, a criança vê nas respostas dos adultos sempre um ponto de insatisfação, o que demarca uma impossibilidade de saber sobre o sexo. Todavia, diz Freud ([1908]1996, p. 222) “...essas hesitações e dúvidas tornam-se [...] o protótipo de todo trabalho intelectual posterior aplicado à solução de problemas, tendo esse primeiro fracasso um efeito cerceante sobre o futuro da criança”.
Entretanto, em Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância ([1910]1996) Freud irá associar o privilegiado relacionamento de Da Vinci com sua mãe e os efeitos disso, associados às investigações sexuais infantis, sobre o desenvolvimento de sua inteligência cientifica e artística. Freud sustenta que “a pesquisa psicanalítica oferece-nos a explicação completa mostrando a maioria das crianças, ou pelo menos as mais inteligentes, atravessam um período de pesquisas sexuais infantis” (FREUD, [1910]1996, p. 72). Em 1995 Lacan afirmará que a genialidade de Da Vinci está diretamente ligada ao modo como o renascentista pôde se colocar frente ao desejo de uma mãe fálica e como sua genialidade se estabeleceu como um modo de responder a esse desejo.
Finalmente, nesse mesmo texto, Freud ([1910]1996) aponta três destinos para o desejo de saber: a inibição intelectual, a compulsão à pesquisa e, por fim, a sublimação. A compulsão à pesquisa se refere, em linhas gerais, ao fato de a atividade intelectual escapar ao recalcamento, mas de algum modo permanecer ligada à busca do gozo sexual que era objetivo das primeiras investigações. Isso leva o sujeito a fracassar novamente quando ele busca respostas ao enigma de sua existência, empreendendo-se em uma busca incessante que se coloca cada vez mais longínqua, todavia aparece como motor de suas pesquisas.
É evidente que há muitas outras questões, tanto em Freud quanto em Lacan, que nos permitem discutir sobre a relação entre “cognição” e desejo. No entanto, o nosso espaço não nos permitir avançar mais. Todavia, é oportuno destacar o trabalho de psicanalistas brasileiros que se debruçam sobre a possível interlocução entre psicanálise e educação.
Considerações finais
Pode-se verificar que a psicanálise possui um referencial teórico capaz de auxiliar os profissionais que trabalham com o tema da sobredotação, tendo em vista a apresentação de um outro enfoque a respeito da subjetividade. De início, reafirma-se a vocação investigativa da psicanálise a partir da intervenção, ou seja, a partir do estabelecimento da relação entre tratamento e investigação. Conforme apontado, a psicanálise é uma teoria da clínica, ou seja, seus conceitos e teorizações são provenientes daquilo que o psicanalista extrai a partir da condução do tratamento de seus pacientes. Com a sobredotação não é diferente. Trata-se de extrair dos atendimentos, ou entrevistas, com sujeitos nomeados de sobredotados, aspectos que auxiliarão na construção de uma teoria da psicanálise que contribua com as investigações sobre o tema.
De todo modo, o que se pode extrair da entrevista supracitada é que ser nomeado de superdotado ou “se dar” um nome de superdotado talvez possa exercer a função de Nome-do-Pai, como um dos nomes do pai, pelo menos nos moldes que Lacan designou no Seminário 23:
O pai é esse quarto elemento sem o qual nada é possível no nó do simbólico, do imaginário e do real. Mas há um outro modo de chamá-lo. É nisso o que diz respeito ao Nome-do-Pai, no grau em que Joyce testemunha isso, eu o revisto hoje com o que é conveniente chamar de sinthoma (LACAN, 2005, p. 163).
Por esse caminho, não se trata aqui de aprisionar o sujeito em uma dada classificação, nem mesmo fazer vacilar sua identidade enquanto sujeito falante, mas, antes, verificar qual a função que tal nome exerce para este ou aquele sujeito. Trata-se de garantir que, em meio aos universais, algo seja extraído daí e se garanta uma posição muito particular, bastante singular ao sujeito que tomou o nome, seja proveniente de uma enunciação vinda do campo do Outro, seja de uma autoenunciação, como um modo de se fazer sujeito.
Receber um nome ou se dar um nome é um modo de desinserção, uma vez que “ser nomeado” está na base, “...no princípio de toda inserção simbólica do ser” (MILLER, 2011, p. 10). Dito de outra maneira, ter o nome superdotado garante ao sujeito um modo de inscrição simbólica que encontra uma ancoragem no social e estabelece importantes laços, ainda que pagando o preço de se encontrar alienado nesse nome. Trata-se da possibilidade de subsumir uma posição que o sujeito encontra através de uma narrativa feita a seu respeito; se ficar nessa posição pode ser uma alienação, também é um ponto de satisfação, em que ser nomeado superdotado é uma qualificação mitificada nos tempos atuais. Talvez o que uma psicanálise possa fazer por esses sujeitos seja auxiliá-los a realizar uma travessia desse nome que lhe foi dado e, ao mesmo tempo, possibilitar a ele encontrar um novo nome capaz de recompor o peso semântico no qual o sujeito foi enodado. Ao se pensar na ação do psicanalista na cidade, cabe afirmar que uma das contribuições da psicanálise ao tema da superdotação é verificar as particularidades do caso. Em cada caso narrado trata-se de verificar que um mesmo nome possui funções diferenciadas, seja na neurose, seja na psicose. Isso nos ajuda a resgatar o caráter de particularidade que a psicanálise insiste em resgatar em meio às tentativas recorrentes da ciência em universalizar o mundo e seus fenômenos.
Referências
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Endereço para correspondência
Avenida Japão, 581 – Cariru
35160-118 – Ipatinga/MG
E-mail: cassio.edu2007@gmail.com
Recebido: 15/03/2013
Aprovado: 08/04/2013
SOBRE OS AUTORES
Cássio Eduardo Soares Miranda
Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Ruth Helena Pinto Cohen
Doutora em Psicologia pela UFRJ. Professora Adjunta da Escola de Educação Física e Desportos e da pós-graduação do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Psicanalista. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise. Supervisora clínica do Serviço de Psicanálise em Atenção à Infância do Hospital São Zacarias. Autora do livro A lógica do fracasso escolar: psicanálise & educação (Contra Capa, 2006).
1 Relatos transcritos sem correção da língua.
2 Vale destacar que não desconsideramos aqui uma predisposição orgânica à superdotação, que se relaciona ao real do corpo. No entanto, nossa investigação se dirige no sentido de pensar nos efeitos do significante sobre o sujeito.