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Estudos de Psicanálise
Print version ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.39 Belo Horizonte July 2013
A Justiça e a Lei
Justice and Law
Ivan Corrêa
Centro de Estudos Freudianos de Recife
Faculdade Frassinetti do Recife
Faculdade de Ciências Humanas de Olinda
RESUMO
Neste ensaio o autor pretende contribuir para dirimir a confusão que comumente é feita entre a Justiça e a Lei. Partindo da análise de determinados fatos que fazem parte da nossa conjuntura social e política contemporânea tanto nacional como internacional, é perscrutado o objetivo do artigo, que se enriquece ainda a partir do auxílio de filósofos, sobretudo Platão, Kant e Hegel, e psicanalistas, Freud e Lacan, que deram contribuições significativas para a compreensão tanto da justiça quanto da lei. Desse modo, defende que nem tudo que é legal é justo. Estabelece as relações entre justiça e ética e reafirma a ideia de Freud segundo a qual somente as reações psíquicas de ordem ética podem salvar a humanidade. Conclui de forma otimista com a alusão ao Hino à paz, de Hölderlin, no que ele remete à consideração pela importância da escuta da alteridade para a promoção da eticidade.
Palavras-chave: Justiça, Lei, Ética, Diferença, Felicidade.
ABSTRACT
In this essay, the author intends to contribute to clarify the misunderstanding that normally occurs with the meaning of Justice and Law. Starting with the analysis of certain facts which are part of our both national and international social conjuncture and contemporary politics, the aim of the essay is explored and enriched even more with the help of philosophers – especially from Plato, Kant and Hegel – and psychoanalysts – S. Freud and J. Lacan – whom provided significant contribution to understand the difference between Justice and Law. Therefore the author advocates that not everything that is legal is fair. The author also establishes the relation between justice and ethics and confirms Freud’s idea which states that only the psychic reactions related to ethics can salve humanity. The conclusion is optimistic and alludes to Hölderlin’s Anthem to Peace because it highlights the importance of taking into consideration the diversity in order to promote ethicality.
Keywords: Justice, Law, Ethics, Difference, Happiness.
Com este título — a Justiça e a Lei — pretendemos fazer uma reflexão sobre o equívoco que identifica, muitas vezes, a Justiça com a Lei, como se toda lei fosse justa. Confunde-se com frequência legalidade com justiça, mas há muitas leis que foram criadas para manter privilégios de alguns em detrimento de uma maioria. Considera-se justo o que é meramente legal em virtude de uma lei arbitrária. Amparados por uma lei, todos os abusos são considerados éticos, como se não houvesse lei injusta.
Permito-me trazer aqui um pequeno recorte de um jornal de Pernambuco, Diário de Pernambuco, publicado no dia 23 de março de 2012, Comentando o cotidiano, do jurista pernambucano Roque de Brito Alves — com o qual durante algum tempo ensinamos conjuntamente na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), em Recife. Nessa pequena crônica de Roque de Brito Alves, ele diz o seguinte: “...os denominados auxílios, auxílio moradia, auxílio alimentação, auxílio paletó, etc, para membros dos poderes da República e do Ministério Público, podem até ser formalmente legais”. Em equiparação ele diz:
...as ditaduras também eram “legalizadas”, porém, tais auxílios são evidentemente injustos e antissociais, sendo mesmo uma verdadeira bofetada em 15 milhões de brasileiros que, conforme as estatísticas oficiais vivem abaixo da linha da pobreza, isto é, na miséria. Sem dúvida, somente recebe auxílio, quem tem necessidade financeira, material, segundo o próprio significado do vocábulo. E enquanto isso não ocorre com os privilégios dos nossos políticos, que têm altos salários. Então, é uma inegável insensibilidade, pois a grande maioria do povo brasileiro trabalha duramente com baixos salários, sem mordomias nem privilégios.
Eis um fragmento desse texto de Roque de Brito Alves.
No primeiro semestre de 2012, num jornal de Brasília, chamado Linha de Frente, na primeira página, há uma foto do então presidente do senado José Sarney e uma frase pronunciada por ele procurando justificar os privilégios dos senadores. Essa frase memorável do Sarney é a seguinte: “Quando o governo e a instituição privilegiam os políticos, é uma homenagem que prestam à democracia”. São comentários da própria imprensa. Também no Diário de Pernambuco de 26 set. 2012, na primeira página, em letras garrafais, vem o seguinte: Senadores dão calote e nós pagamos a conta. E, então, segue-se uma pequena explicação desse título, dessa manchete:
...o calote histórico aplicado na Receita Federal por senadores e ex-senadores ao receber o 14º e 15º salários e não pagar o imposto de renda vai ser coberto integralmente pelo senado. Na prática, os valores que não foram descontados e caíram direto no bolso dos parlamentares vão ser quitados com o dinheiro do contribuinte. Até 3 de outubro, a casa começa a pagar uma dívida de, aproximadamente, R$ 10.800.000,00” (p. 1).
Quando, dizemos agora nós, os senadores ignoram a Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada em 1948, que em seu artigo 15 diz o seguinte: “Todo indivíduo tem direito a uma nacionalidade”. E o artigo 22 dessa mesma promulgação dos direitos, diz o seguinte: “Toda pessoa enquanto membro da sociedade tem direito à segurança social para obter a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade” (apud Stéphane Hessel: Indignez-Vous! Montpellier France, 2011).
Conforme esses comentários, encontramos aí uma dupla questão que atravessa constantemente a história da humanidade: a primeira, “o que é a felicidade?” e a segunda, “o que fazer para ser feliz?”. É com essa questão que Mênon se dirige a Sócrates com a esperança de que essa técnica lhe seja ensinada para ser feliz. Técnica, que não seria outra senão a prática da virtude, que levaria à posse do Bem Supremo.
Para os gregos, em particular para os estoicos, basta conhecer a virtude para ser virtuoso. Eles insistiam para a ética, num ponto central, no amor à sabedoria (filo-sofia). O ethos é a busca de uma boa maneira de ser. Essa questão envolve simultaneamente uma ontologia universal, uma lógica e uma antropologia. O que poderia definir o ser humano é de fato uma teoria do ser, que seja a explicitação da inteligibilidade desse ser. A causa da ação do ser humano é o seu desejo. É, portanto, no exame do problema do desejo, das paixões e da liberdade do homem, que o termo “ética” se esclarece. Portanto, para os socráticos a virtude se confunde com o saber, basta que se conheça a virtude, o ethos, para ser feliz. Só que no espírito socrático, esse saber não vem de fora, vem de dentro de cada um. É isso que determina o ethos e forma o ser de cada sujeito pela “maiêutica”. Com a questão do sujeito, inaugurada por Descartes, a ética se tornou um equivalente aproximado de moralidade, a doutrina dos deveres do homem, o princípio de julgamento das ações do sujeito tanto individual quanto coletivo.
Para Kant, na Crítica da razão prática, trata-se da ação subjetiva e de suas intenções representativas com a lei universal: “Man fühlt sich Wohl im Gutem”. “A gente está bem com o que é bom”, diz Kant. Hegel distingue — Phãnomenologie des Geistes (1975) — Moralitãt e Sittlichkeit, moralidade e eticidade. A moralidade é subjetiva, é a consciência moral do que acontece na sua consciência no sentido do dever, o critério do que é bom e justo, enquanto a eticidade, ou a ordem ética, é objetiva. A realidade social, a vida de um povo dentro de seus costumes são a norma categórica do que é justo.
Nesse sentido, a eticidade pode ser considerada como uma etapa superior da moralidade, isto é, a ética, diz Hegel, é o coroamento da moral. Mas se quisermos restaurar o sentido semântico do ethos dos gregos, segundo Spinoza, a ética é o modo ou a boa maneira de ser, é a definição do ser do homem, totalmente, tal como ele é com seus hábitos e costumes. E mesmo que de Hobbes — com seu Levianthan (1651) e De Cive (1662) — norteado pelo seu aforismo Homo momini lupus, “o homem é um lobo para outro homem” — até Jean-Jacques Rousseau, com seu cândido Émíle, o ethos tenha oscilado da maldade natural do homem à sua inocência ingênua, não podemos isolar o ethos da cultura; ele é coextensivo à cultura. Cultura considerada como a regulação de nossa violência essencial. A ação humana é essencialmente axiogênica, o homem vive em constante tensão entre o que ele é e o que ele deve ser. É a própria cultura, com tudo o que se apresenta ao sujeito, em sua dimensão axiológica, como sistema normativo, que lhe impõe sua autorrealização e não só como um sistema técnico governado exclusivamente pela sintaxe que lhe assegure a sobrevivência. O valor impregna a cultura não apenas no campo da lógica, na sua determinação do valor da verdade (Wahreitwert) de uma proposição ou na Umwertung alles Werte no sentido nietzschiano, “a subversão de todos os valores”, ou ainda, na Mehrwert, de Karl Marx, com a mais-valia, e ao mesmo tempo, na mais-valia na economia em sua relação com o trabalho, mas até mesmo na invenção lacaniana, do Mehrlust, o “mais gozar” da sexuação humana. “O que é uma sociedade sem justiça?” pergunta Santo Agostinho (em As duas cidades, 2003) e responde: “Tire da sociedade a justiça, subtraia-se do governo o cuidado pelo bem comum, o que sobra?” E responde:
Sobra uma gangue de bandidos. Sem a justiça, o que são os reinos e os estados, senão um grupo de criminosos em larga escala? Que são os grupos, senão pequenos reinos? Se a sociedade e o estado não se sustentam sobre o direito e a justiça, não se escamoteie as ‘magna latrocínia’ que daí derivam.
Encontramos também algo muito pertinente a tudo isso, numa matéria do jornal Le Monde, de 30 set. 2012, um comentário, um artigo de Frédric Joignot sobre o autor americano Jared Diamond, que mora em Los Angeles, do último livro dele Effondrement (2005), O desmoronamento. Joignot se refere também aos comentários que Diamond faz sobre o fracasso que foi a Eco do Rio de 2012 sobre a questão da ecologia. E então o título maior do comentário desse livro de Diamond L’homme, animal suicidare (O homem, animal suicidário) e depois vem: “L’eche du Sommet de la Terre, cet été, rend plus crédile la thèse du geógraphe et biologiste américain Jared Diamond”. Traduzindo:
O homem é um animal suicidário. O fracasso da cúpula da terra nesse verão torna crível a tese do geógrafo e biologista americano Jared Diamond quando diz que em todos os tempos os homens se massacraram e se destruíram e destruíram o meio ambiente, mas ainda é tempo de reagir.
Eu concluiria estas pequenas observações, sobretudo com essa esperança que Diamond nos dá, a de que é tempo, ainda, de reagir, com uma pequena observação que Goethe faz em seu livro Os sofrimentos de Werther, onde ele diz que Deus nos trata como nós tratamos as nossas crianças, os nossos filhos, permitindo que sejam felizes com suas amoráveis ilusões. Então, segundo Goethe, de fato, não é a realidade que nos torna felizes, mas a ilusão. Que nós possamos, então, ainda alimentar essa ilusão antes mencionada por Diamond de que na realidade a humanidade ultrapasse essa violência e tanta destruição do ser humano, do próximo.
Não é preciso recordar aqui O mal-estar na cultura, de Freud, quando fala exatamente dessa força de destruição do ser humano e diz que somente o que pode vir a salvar a humanidade são “reações psíquicas de ordem ética”. Então, nós podemos “utopizar” um pouco, sobretudo considerando novos acontecimentos que parecem estar dando uma guinada na nossa política, ao acreditarmos que, de fato, algo de novo surja em relação àquilo que podemos chamar de o cuidado do outro.
Em agosto de 2009 houve em Porto Alegre um congresso semelhante a esse, sobre Psicanálise e Direito, realizado através de uma parceria com a Associação Lacaniana Internacional, a Escola Clínica Lacaniana de São Leopoldo, o Instituto Humanitas da Unisinos e a Escola Superior do Ministério Público de Porto Alegre. Na ocasião eu enviei um texto intitulado Etnocentrismo e heterologia. Etnocentrismo é algo de muito legítimo de valorizar, sua própria cultura, mas pode trazer algo da ordem do que diz esse autor americano, que é achar que apenas a nossa cultura é que tem valor, e nenhuma outra cultura vale. E se nenhuma outra vale, deve ser destruída. É aí que está essa violência essencial do ser humano em ter que destruir o outro. Enquanto a heterologia é reconhecer que as outras culturas têm valor, e não somente que as outras culturas têm valor, mas que nossa cultura pode se enriquecer com os valores das outras culturas. Quer dizer, é aí que está a questão do respeito para com o outro, da consideração para com o outro, que nos pode levar a algo muito importante do ponto de vista de uma felicidade dessas que o Mênon já procurava no tempo de Platão.
Isso me faz lembrar também algo bastante importante nesse sentido que foi o armistício feito entre franceses e austríacos em 1801. E o poeta alemão Hölderlin compôs para a celebração dessa festa, chamada a festa da paz, que foi celebrada em Lunéville, o chamado Hino da paz, ou Hino para a festa da paz. Há uma quadra que eu considero muito pertinente para nós também, seja na área do direito, na área jurídica, seja na psicanálise, na psicologia, que é a seguinte:
Viel hat erfahren der Mensch,
Der Himmlischen viele gennant,
Seit ein Gespräch wir sind
Und hören können voneinander.
Poema lido em alemão (apud Recherches de Science Religieuse, 2003, p. 593), a saber:
O homem experimentou muitas coisas
coisas divinas e celestiais ele nomeou,
Depois que tivemos uma interlocução
e podemos nos escutar uns aos outros.
Referências
ALVES, R. B. Comentando o cotidiano. Diário de Pernambuco, Recife, 23 mar. 2012. Caderno Opinião. [ Links ]
GOETHE, J. W. Os sofrimentos de Werther. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. p. 69. (Coleção Universidade). [ Links ]
HEGEL, G. W. F. Phãnomenologie des Geistes. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1970. [ Links ]
HESSEL, S. Indignez-vous! Montpellier: Indigène Editions, dec. 2011. [ Links ]
LE MONDE. Paris: 29 set. 2012. [ Links ]
RECHERCHES DE SCIENCE RELIGIEUSE. Paris: oct.-déc. 2003, p. 593. [ Links ]
Endereço para correspondência
Rua Joaquim Xavier de Andrade, 94 - Casa Forte
52061-350 – Recife/PE
E-mail: anaivancorrea@gmail.com
Recebido: 15/03/2013
Aprovado: 03/04/2013
SOBRE O AUTOR
Ivan Corrêa
Psicanalista. Membro Fundador do Centro de Estudos Freudianos de Recife (CEF). Professor dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE) e da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO). Autor de vários livros e de textos em revistas nacionais e internacionais.