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Estudos de Psicanálise
Print version ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.39 Belo Horizonte July 2013
Humor em Chaplin
Humor in Chaplin
Virgínia Britto
Círculo Psicanalítico da Bahia
Faculdade Social da Bahia
RESUMO
Freud retrata o humor como mecanismo de defesa nobre, uma possibilidade para enfrentar o sofrimento e transformá-lo em prazer. A partir de recortes da autobiografia de Chaplin, reflito sobre a importância do seu trabalho criativo com o humor como ponte para a elaboração de conflitos e reconstrução pessoal.
Palavras-chave: Humor, Criação, Mecanismo de defesa, Cinema.
ABSTRACT
This article is a reflection about the value of Chaplin’s work with humor and creativity to elaborate his personal conflicts and promote a life reconstruction, using Freud’s conception about humor as a noble defense mechanism.
Keywords: Humor, Creation, Defense mechanism, Cinema.
O meu primeiro contato com a obra de Chaplin foi com o filme Tempos modernos. Impressionou-me sua capacidade de penetrar, com sensibilidade ímpar, a alma humana, extraindo material para seus filmes. Tanto nesse quanto nos demais filmes desse artista, o conteúdo trágico é transformado em cômico e, assim, podemos acolher seu peso e pensar em suas verdades.
Gênio do humor, ele nos impressiona não só pela profundidade da obra que constrói mas também pela sua humanidade, sua ética e sua generosidade. A leitura da autobiografia de Chaplin me fez pensar a respeito da relação entre sua vida e sua obra. Tomo, assim, algumas passagens para uma reflexão.
Filho de artistas de teatro, passa a meninice em estado extremo de pobreza, tendo de ir para uma escola de crianças órfãs e indigentes, porque sua mãe não tinha condições de sustentar os filhos e a si mesma. Além disso, sofre com o adoecimento mental materno; no seu primeiro internamento, Chaplin tinha apenas sete anos. Aos doze, vivencia o segundo período de internação da mãe e, com a ausência do irmão, que estava na marinha viajando, fica completamente só. Após retorno do irmão, procura e consegue papel como ator em uma peça teatral. Sobre esse momento, escreve Chaplin (1965, p. 71):
Fui para casa de ônibus, tonto de felicidade, e só então compreendi realmente o que me sucedera. Subitamente deixava para trás a vida de miséria e realizava um sonho tão desejado — um sonho de que minha mãe falara tanto, pelo qual anelara tanto. Eu ia ser um ator!... compreendi que transpusera um limiar importantíssimo. Já não era mais um vagabundo dos bairros miseráveis; agora era um personagem do teatro. Tinha vontade de chorar.
Ao lado dessas experiências, Chaplin recorda o carinho e os mimos que recebera da mãe enquanto estava bem de saúde. Mesmo nos momentos difíceis, agia de forma bem humorada e, às vezes, fazia piadas com as pessoas que passavam na rua, divertindo-se com os filhos. Apesar da pobreza, cuidava para que mantivessem um linguajar correto, sem os erros comuns nas classes mais baixas.
No teatro, atuando em papel cômico de variedades, ele fracassa; percebendo que não tinha aptidão para esse tipo de atuação, se consola como ator característico. Em seguida, ingressa na companhia Karno, atinge sucesso contracenando como ator cômico aos 19 anos. Após regresso a Londres, conhece Hetty Kelly e se apaixona tendo com ela apenas cinco encontros, que lhe deixam uma marca profunda. Não sendo correspondido, se afasta da garota, mas não a esquece.
Chaplin viaja para os Estados Unidos por duas vezes com essa companhia e, desde a primeira estada, percebeu que seu futuro estava naquele novo mundo onde o progresso acenava por todos os lados. Na segunda temporada recebe convite para atuar no cinema, na companhia Keystone. Naquela época, não havia história escrita, o diretor lançava mão de uma ideia, e depois a equipe seguia uma sequência natural, favorecendo o espírito criativo, contrapondo-se à experiência de Chaplin no teatro com texto já preestabelecido, que era repetido em sucessivas apresentações.
A criação de Carlitos
A pedido do diretor Mack Sennett, Chaplin procura uma caracterização cômica, mas não tinha a menor ideia do que iria usar. Diz Chaplin (1965, p. 141-142):
Contudo, a caminho do guarda-roupa, pensei em usar umas calças bem largas, estilo balão, sapatos enormes, um casaquinho bem apertado e um chapéu-coco pequenino, além de uma bengalinha. Queria que tudo estivesse em contradição: as calças fofas com o casaco justo, os sapatões com o chapeuzinho. Estava indeciso sobre se devia parecer velho ou moço, mas lembrei-me de que Sennett esperava que eu fosse mais idoso e, por isso, adicionei ao tipo um pequeno bigode, que, pensei, aumentaria a idade sem prejudicar a mobilidade da minha expressão fisionômica.
Não tinha nenhuma ideia sobre a psicologia do personagem. Mas, no momento que assim me vesti, as roupas e a caracterização me fizeram compreender a espécie de pessoa que ele era. Comecei a conhecê-lo e, no momento em que entrei no palco de filmagem, ele já havia nascido. Estava totalmente definido. Quando cheguei à frente de Mack, entrei no personagem, andando em passos rápidos, girando a bengalinha diante dele. Incidentes e ideias cômicas vinham em tropel à minha mente.
Chaplin percebeu que seu personagem era diferente daqueles que os norte-americanos conheciam, e observa: “Eu próprio não o conhecia... Mas, dentro daquelas roupas, ele se tornava uma realidade, uma pessoa viva. Na verdade, ele me inspirava toda a espécie de ideias malucas, com as quais nunca sonhava senão quando assim vestido, entrava na personalidade do Vagabundo” (CHAPLIN, 1965, p. 144).
Com a leitura desse trecho, fiquei a pensar sobre a construção do personagem como uma formação do inconsciente, como os sonhos, que trazem, através dos seus personagens, as verdades censuradas do sonhador (FREUD, 1900).
No seu trabalho sobre o personagem da escrita, observa Carlos Pinto Corrêa (2008, p. 49):
Podemos pensar também que o personagem é a encarnação de alguém recortado da realidade do escritor, que se torna uma espécie de espelho da realidade com a qual o leitor se defronta. Ele está entre o escritor e o leitor. Mesmo tendo sido inventado pelo autor, o personagem aparece como figura independente do seu criador e tem vida própria entre seus pares.
A criação do personagem acontece no campo do imaginário do autor, trazendo a marca dos seus significantes inconscientes (CORRÊA, 2008). Como diz Chaplin a respeito de Carlitos: eu próprio não o conhecia — torna-se uma realidade. O personagem traz o vagabundo da sua pré-adolescência a perambular pelas ruas de Londres solitário, tentando sobreviver. Em suas películas, coloca Carlitos em uma série de dificuldades, com as quais luta sempre para encontrar saídas.
Confiando nas suas ideias e aspirando mais liberdade para criar, Chaplin se empenha para dirigir seus próprios filmes, o que acontece em 1914 com a película Apanhando na chuva.
Em 1919 se casa com Mildred Harris. Após o casamento grava Idílio campestre, com muitas dificuldades, tendo o enlace péssimo efeito sobre suas faculdades criadoras. Chaplin relata tratar-se de uma relação que carecia de base vital, percebendo que havia sido colhido por uma série de tolas circunstâncias.
Em 1920, durante a separação de Mildred, filma O garoto. Nesse filme, Chaplin faz uma inovação: a mistura de farsa grossa e emoção é uma transição para o sentimento; mistura até então inexistente, alcança grande sucesso, e o filme é considerado um clássico do cinema.
Após filmar A classe ociosa (1920), resolve ir a Londres, desejando se encontrar com Hetty Kelly. Havia recebido uma carta dela, dez anos após o primeiro encontro. Ela estava casada e o convidava para jantar com eles. Chegando à Europa, soube que Hetty havia falecido e sente-se chocado. Ela era a única amiga do passado que queria encontrar. Nessa viagem, revê lugares onde morou em Londres e recebe várias homenagens durante sua estada na Europa. Retorna aos Estados Unidos, retomando as filmagens com Casamento ou luxo em 1923. Em 1925, quando filmava Em busca do ouro, se casa pela segunda vez. Com dois filhos, separaram-se após dois anos, apesar das tentativas para continuar.
Chaplin observa que o seu personagem vai se tornando mais complexo. Escreve sobre os tempos da Keystone:
Seu cérebro raramente funcionava nesses dias — apenas funcionavam seus instintos, que se voltavam para as necessidades essenciais: comida, aquecimento, abrigo. À medida que as comédias se sucediam, o vagabundo ia se tornando mais complexo. O sentimento começava a se infiltrar em seu caráter. Isso se tornou um problema, porque limitava seus movimentos e iniciativas no terreno da farsa grossa (CHAPLIN, 1965, p. 208).
Escreve que a solução aparece quando começa a pensar no vagabundo como uma espécie de pierrô, podendo embelezar as comédias com um toque de sentimento. Diz que um dos problemas dos seus filmes era fazer uma moça se interessar por um vagabundo. Na película Em busca do ouro (1925) filme de 1925, inicialmente o interesse da moça era se divertir à custa dele, mas depois esse interesse se transformou em piedade. A seguir, em Luzes da cidade (1931), a moça é cega, ele é romântico e maravilhoso até que ela recupera a visão. Chaplin filma Luzes da cidade após a sincronização do som em filmes. Sentia-se deprimido pelo medo de estar desatualizado, mas, ao mesmo tempo, acreditava que a primeira palavra pronunciada pelo seu personagem o transformaria em outra pessoa (CHAPLIN, 1965, p. 367). O filme se torna um sucesso, e Chaplin resolve ir a Londres para o lançamento dez anos depois da última viagem.
Após oito meses de férias, retorna a Beverly Hills. Sente-se só e isolado. A esperança de encontrar alguém na Europa que pudesse trazer estímulo a sua vida não se concretizou e, com a separação do amigo Douglas Fairbanks de Mary, se sentia num deserto.
Um mês depois da sua chegada, conhece Paulette Goddard, que vem a ser sua terceira mulher. Escreve Chaplin (1965, p. 283): “O laço que nos prendeu a Paulette e a mim, foi a solidão”. Cinco anos após a produção de Luzes da cidade, filma Tempos modernos (1936) com Paulette. Nesse filme, o vagabundo se enamora e é correspondido. Pela primeira vez, Carlitos termina a película com uma companheira, deixando a solidão para trás. Esse é o prenúncio do encontro de Chaplin com seu grande amor, Oona O’Neill. O relacionamento com Paulette termina oito anos depois, na conclusão de O grande ditador (1940). Com planos para um novo filme, Shadows and Substance, Chaplin conhece Oona com quem irá conviver o resto da vida.
Com esse relato, podemos ver que a produção fílmica e a vida de Chaplin estão intimamente relacionadas. Através do seu processo criativo, observamos uma relação entre as transformações do vagabundo e as do seu autor. O vagabundo voltado apenas para a sobrevivência evolui, mostra seus sentimentos, consegue ultrapassar a solidão e construir uma relação amorosa com uma mulher também sofrida e desamparada. O autor consegue atravessar os sofrimentos da sua infância e adolescência, tomar consciência dos seus sentimentos, das suas necessidades de cada período de vida e construir caminhos em meio a essas dificuldades.
Pergunto: aliado ao processo criativo, como o humor operou na vida de Chaplin?
Chaplin diz que não precisou ir aos livros para saber que o tema da vida é conflito e dor: “Instintivamente todas as minhas bufonadas eram baseadas nisso. Meus meios de engendrar um enredo de comédia eram simples. Bastava-me o processo de colocar as criaturas em dificuldades e fazê-las sair dessas dificuldades” (CHAPLIN, 1965, p. 210). Observa que o humorismo é coisa diferente e muito mais sutil. Cita a análise de Max Eastman no seu livro Senso de humor e escreve:
Ele acha que consiste em brincar com a dor. Sustenta que o Homo sapiens é masoquista, gozando a dor sob várias formas, e que as plateias gostam de sofrer vicàriamente — como fazem as crianças quando brincam de índio, quando gostam de receber tiros e de morrer estrebuchando aos golpes inimigos. Com tal teoria eu concordo. Mas isso é mais uma análise do drama do que do próprio humorismo, embora um e outro sejam quase a mesma coisa. Em outras palavras: no humorismo vemos o irracional nas coisas que parecem racionais e o que não é importante nas coisas que parecem importantes. Isso também acentua o nosso sentido de sobrevivência e preserva a nossa sanidade. Porque o humorismo nos alivia das vicissitudes da vida, ativando o nosso senso de proporção e nos revelando que a seriedade exagerada tende ao absurdo (CHAPLIN, 1965, p. 210).
Lendo Chaplin, observei a semelhança entre o que escreve e o que Freud traz sobre o humor, colocando-o como um mecanismo de defesa nobre, um meio de obter prazer apesar dos afetos dolorosos. Diante de uma situação aflitiva, o afeto penoso é suspenso em sua base, a energia de liberação do desprazer é retirada, transformando-o em uma descarga de prazer. O indivíduo se poupa do afeto doloroso que uma situação daria origem, afastando-o com uma pilhéria.
No humor, vence o narcisismo, o princípio do prazer prevalece em detrimento de agruras das circunstâncias reais. Diz Freud ([1927]1976, p. 191): “O humor não é resignado, mas rebelde ...”.
Na atitude humorística, o indivíduo se torna indulgente para consigo mesmo. Vemos aí uma relação benevolente do superego para com esse ego intimidado. É uma atitude de recusa a sofrer, possível apenas em algumas constituições psíquicas agraciadas por esse dom, para aqueles a quem foi possível manter a criança viva em si.
Recordo um gesto frequente no personagem Carlitos: diante de alguma dificuldade, ele levanta os ombros como quem não tem jeito a dar e segue em frente, buscando novos caminhos. O silêncio do gesto expressa o que a palavra não alcança: o inapreensível do inconsciente sentido na carne. Através do processo de criação com o humor, Chaplin consegue transpor várias dificuldades e recriar a própria vida, construindo uma ponte para a sua reconstrução interna.
Para concluir, trago um pensamento de Chaplin (1965, p. 403):
Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.
Referências
CHAPLIN, C. História da minha vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965. [ Links ]
CORRÊA, C. P. A arte do encontro: leitor e personagem. Cógito, Salvador, Círculo Psicanalítico da Bahia, v. 9, p. 48-51, 2008. [ Links ]
FREUD, S. A interpretação de sonhos (1900). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 1-360. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 4 e 5). [ Links ]
FREUD, S. O humor (1927). In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 188-194. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21). [ Links ]
FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905). In: ______. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 13-268. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 8). [ Links ]
Endereço para correspondência
Rua Cláudio Manoel da Costa, 220 - Canela
40110-180 – Salvador/BA
E-mail: virginia.lucia.britto@gmail.com virginialb@oi.com.br
Recebido: 15/03/2013
Aprovado: 27/03/2013
SOBRE A AUTORA
Vírginia Britto
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia. Mestre em História das Ciências pela Universidade Federal da Bahia (UFBa). Professora de Técnicas Projetivas da Faculdade Social da Bahia.