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Estudos de Psicanálise

Print version ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.47 Belo Horizonte July 2017

 

 

O rabisco como ofício - a plasticidade na construção de uma clínica social para analisandos transexuais

 

Scribble as a craft - plasticity on building of a social clinic for transexual analysands

 

 

Fernanda Ribeiro de Freitas

I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este é um relato acerca das atividades do Grupo de Trabalho sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans). São constatações da autora que não correspondem necessariamente às visões do restante do grupo. Somos sete psicanalistas muito investidos tanto na teoria psicanalítica quanto na prática clínica e acreditamos que a psicanálise pode ir muito além dos consultórios e auxiliar cada vez mais indivíduos em sofrimento – independentemente da sua classe social ou dos recursos físicos dos locais de atendimento. Não há respostas definitivas, pois ainda não sabemos aonde queremos chegar. Apenas sabemos do nosso desejo de seguir em frente.

Palavras-chave: Transexualidade, Transferência, Contratransferência.


ABSTRACT

The following pages describe the activities of GTNTrans, a work group about neo and transexualities. They reflect the author’s view and at times may not speak on behalf of the rest of the team. We are seven psychoanalysts highly invested in psychoanalytic theory as much as in clinical practice who believe in the social possibilities of Psychoanalysis, way beyond the traditional setting. There are no definitive answers, as we still don’t know where we are heading. We are only sure of our will to carry on.

Keywords: Transexuality, Transference, Counter-transference.


 

Introdução

O Grupo de Trabalho de Neo e Transexualidades (GTNTrans), em atividade desde julho de 2015, é composto por Anchyses Jobim Lopes (coordenador), Roberta de Oliveira Mendes, Rodrigo Zanon de Melo, Ana Paula Perissé, Fernanda Ribeiro de Freitas, Fatima Barcellos e Tania Stein Cynamon. O trabalho não seria possível sem o holding e o espaço transicional criados pelos integrantes e sem uma coordenação tão acolhedora quanto corajosa. Há uma imensa vontade de trabalhar, aprender e cooperar. Nossa percepção das diferenças mútuas sem a contaminação de juízos de valor nos possibilita ouvir e verbalizar nossas impressões e, assim, crescer juntos.

Em respeito à confiança que nos foi depositada, não cito em nenhum momento o nome da instituição na qual atendemos. Também me refiro a todos os residentes no gênero masculino. Há poucos fragmentos de caso não somente para proteger a identidade dos participantes, mas também porque o objetivo aqui é relatar a experiência clínica com todas as subversões à técnica clássica. O termo “reunião” substitui o que denominaríamos normalmente sessão.

 

A formação do grupo

Tudo começou do interesse simultâneo pelo tema por parte de alguns candidatos a psicanalista do CBP-RJ. Uma candidata nos apresentou o trabalho do trans-homem e ativista Buck Angel, e outra colega entrou em contato com Problema de gênero, obra da filósofa Judith Butler. Logo em seguida, o grupo, que ainda não estava formalmente constituído, sugeriu o tema das transexualidades para a jornada do CBP-RJ daquele ano, que foi prontamente aceito pelo presidente da nossa sociedade.

A necessidade de formalizar um grupo de trabalho foi consequência da percepção de que o tema fazia aflorar conflitos provavelmente muito arcaicos – não só em nós mesmos como também naqueles com quem dividíamos a questão. Recordo-me de uma supervisão coletiva em que surgiu o assunto. A partir daí até o final da reunião, não houve mais nem supervisão, nem possibilidade de sugestões para a jornada. O que se viu foi um enorme conflito entre discursos inflamados que impediam qualquer argumentação mais moderada. Ficou claro que, sem um espaço só nosso, não haveria pesquisa adequada, e a produção de trabalhos para a jornada daquele ano estaria comprometida.

Como tudo em nossa história até agora, o GTNTrans é resultado de um desejo, mas sem parâmetros preestabelecidos. Em retrospectiva, é muito interessante perceber as transformações. Primeiramente, abandonamos o modelo professor-aluno por um formato extremamente democrático. Todos contribuíamos com referências bibliográficas das mais diversas: além de Judith Butler, tivemos contato com Donald D. Winnicott, Robert Stoller, Joyce McDougall, Marcia Arán, Catherine Millot, Beatriz Preciado, Jean Laplanche, entre outros. Foi um período muito rico, de trocas teóricas importantes. A formação do grupo também foi essencial para a solidificação da confiança e a admiração mútuas, preparando os participantes para os desafios que se apresentariam posteriormente. As decisões sempre foram tomadas de forma horizontal.

Além da elaboração de cinco trabalhos apresentados na jornada daquele ano, produzimos trabalhos para um congresso abordando questões de gênero. Nesse evento percebemos que o incômodo com o tema não era privilégio de nossa instituição. No congresso (em que gênero era um dos subtemas) nos deparamos com uma audiência em que a maioria se dividia entre visível incômodo e total perplexidade e desconhecimento sobre teorias psicanalíticas a esse respeito.

Continuamos com nossas reuniões semanais, mas sabíamos que faltava algo. Nosso conhecimento sobre o indivíduo transexual era indireto, pois vinha através de diferentes teóricos. Havia também os resultados de nossas elaborações teóricas hipotéticas a partir de autores que não traziam o tema explicitamente.

Mas, e o sujeito singular da clínica? Depois de doze meses não houve demanda de indivíduos transexuais nem em nossos consultórios particulares, nem na clínica social oferecida por nossa instituição. Com base nas resistências de colegas de ofício relatadas, é fácil supor a razão da falta de demanda clínica.

Em agosto de 2016 fui apresentada a uma instituição que abriga indivíduos da comunidade LGBTQI em situação de vulnerabilidade. Propus que nosso grupo fizesse visitas semanais à instituição por aproximadamente dois meses para que as pessoas tomassem conhecimento do que era psicanálise e, depois desse tempo, quem quisesse prosseguir na experiência poderia escolher entre nós o profissional de sua preferência. A partir de então, a análise seria feita no consultório.

No entanto, não considerei alguns fatores fundamentais: primeiramente, o plano surgiu exatamente no momento da minha conversa com a direção da casa. O encontro não fora planejado, e não tive tempo hábil para entrar em contato com meus colegas. Eu não sabia se a proposta seria aceita pelo grupo de trabalho nem se seria factível. Tudo isso implicaria uma ampla flexibilidade em relação ao enquadre psicanalítico. Felizmente o grupo de trabalho recebeu a novidade de braços abertos.

Foi emocionante ver a disponibilidade de todos. Experimentei em mim e testemunhei em meus colegas o que Luís Claudio Figueiredo (2003) denomina “transferência primordial”: a aceitação do paciente em análise, a disponibilidade para se tornar suporte da transferência – o que acontece sempre que um analista aceita um novo analisando. Só que, nesse caso especificamente tanto paciente quanto setting, quanto enquadre demandavam uma boa dose de criatividade e flexibilidade dos profissionais. Ouso dizer que, para aceitar tamanho desafio sem criar empecilhos, ocorreu em todos nós uma transferência ‘mais-que-primordial’.

No primeiro encontro entre o grupo de trabalho e os residentes, alguns elementos se destacaram: a reiteração constante da diferenciação entre o grupo e os indivíduos participantes. Ao mesmo tempo, a preferência da maioria por encontros coletivos.1 A situação financeira extremamente precária impossibilitaria atendimento em nossos consultórios particulares embora não cobrássemos as sessões. Soubemos que alguns – poucos – já faziam atendimento psicológico individual, mas eram encontros mensais que dependiam de sua disponibilidade financeira para locomoção, por isso muitas vezes não aconteciam. Também ficaram perceptíveis as questões concernentes ao uso de drogas. Uma parcela do grupo é constituída por analfabetos funcionais.

Talvez pela curiosidade, o primeiro contato contou com a participação da maioria dos residentes e foi repleto de acolhimento. Nós pudemos explicar que nossa proposta era apenas ouvir, sem juízos de valor, sem impressões preestabelecidas. Falando, eles poderiam ouvir as próprias palavras e, consequentemente, organizar o pensamento, nomear seus sentimentos e conter a agressividade. Ali decidimos em conjunto que as reuniões aconteceriam uma vez por semana e durariam 90 minutos com adesão facultativa.

Quanto aos profissionais, em maior ou menor proporção, todos tivemos que lidar com nossos fantasmas internos, nossas preconcepções – tanto sobre a vida cotidiana quanto sobre a prática clínica. A extrema precariedade do ambiente, refletida nos residentes, tornava a experiência bem mais desafiadora.

Dito de outra forma, embora esteja muito mais difundida na contemporaneidade, a psicanálise continua sendo privilégio de quem tem possibilidades financeiras. Mesmo que o advento da clínica social tenha aproximado os profissionais das classes menos favorecidas, essas pessoas ainda têm casa, alguma fonte de renda e o mínimo de educação formal.

No entanto, acreditamos que fatores como elaboração psíquica, o espaço de escuta e a ajuda ao indivíduo na descoberta do próprio desejo não podem nem devem ser privilégio de poucos. Mas como proceder, como ajudá-los diante de tamanha carência de recursos – não só deles. Nós também não encontramos suporte teórico-clínico que desse conta da demanda que se nos apresentava.

 

As reuniões

Marion Minerbo (2012) citando a tese de doutorado de Eliana Borges Pereira Leite (2005) A escuta e o corpo do analista, faz uma analogia entre os ofícios do ator e do analista. Enquanto o primeiro busca elementos em sua memória emocional para dar corpo e vida ao personagem criado pelo autor, o segundo tem sua memória, sua imaginação e seus pensamentos inconscientes afetados pela fala do analisando.

No entanto, quando esses elementos nos remetem a vivências arcaicas e nos fazem lidar com nossas próprias experiências inconscientes de abandono, tudo fica um pouco mais complicado. Mas, como dito anteriormente, todo o processo vem sendo costurado de forma intuitiva, e a elaboração é sempre a posteriori.

De nosso segundo encontro com os residentes tenho duas impressões marcantes. Primeiro, há naquele grupo uma percepção de gradação em termos de sofrimento diretamente ligada à identidade de gênero de quem o expressa. Melhor dizendo, sempre que um homossexual cisgênero fala de suas dificuldades psíquicas ou cotidianas, é seguido do seguinte comentário: “Se, para você, que é cisgênero, é difícil, imagine como é para os transexuais”. Apesar de racionalmente fazer sentido, imagino que apenas num ambiente que acolha transexuais em sua maioria seja possível a expressão aberta dessa opinião. A segunda impressão marcante é que, na maioria dos discursos, o afeto está diretamente associado à compensação financeira. Você vale o quanto custa – literalmente.

Reproduzo a seguir o trecho de um diálogo que ilustra essa afirmação, que ocorreu no nosso segundo encontro, mas com frequência se repete na fala dos residentes de alguma maneira.

Residente: Se eu pudesse, criava uma lei proibindo quem não tem condição financeira de ter filhos. As crianças querem lápis de cor, celular e, se são pobres, não têm nada disso. Eu sempre quis uma caixa de lápis de cor da Faber Castell. Era caro. Minha mãe não tinha dinheiro pra comprar.

Analista: Quando ouço celular, lápis de cor, eu ouço afeto. Mesmo que não seja da marca que a criança quer, se ela ganha o objeto que pediu, se sente amada. Um adulto prestou atenção nela. Eu ouço pedido de carinho no que você fala. Você teve algum adulto importante na sua infância?

Residente: Uma vez eu ganhei da professora da escola uma caixa de canetinha de glitter.

Atribuímos essa forma de encarar as relações afetivas ao fato de muitos deles trabalharem na prostituição desde cedo. Sendo assim, acabam reconhecendo seu valor de forma bastante concreta.

Nos primeiros meses, não era raro chegarmos a casa e todos ainda estarem dormindo ou não se lembrarem de onde éramos: De alguma igreja? Partido político? Sindicato?

Quando nos reconheciam, e estavam acordados, muitas vezes resistiam a participar. Cruzavam a sala sem contato visual, saíam da casa justificando um compromisso inadiável ou ficavam um pouco conosco, mas iam embora logo em seguida.

Entendemos esse processo como análogo ao que experimentamos no consultório: para nos aceitar de verdade, eles precisavam estar seguros de que não os abandonaríamos, que não poderiam destruir o objeto bom – experiência recorrente ao longo de suas vidas. Além disso, havia a desconfiança pelo fato de não pedirmos nada em troca. Não cobramos pelo nosso tempo, não exigimos sua atenção – apenas estamos disponíveis. Tudo muito novo para indivíduos que sempre tiveram que oferecer em troca muito além do que recebiam.

Conforme fomos sendo aceitos na casa, outro tipo de resistência se apresentou: algumas vezes eles se recusavam a participar porque estavam entorpecidos – seja por álcool, seja por drogas. Quando o assunto pôde ser abordado pelo grupo, percebemos o despertar de uma transferência positiva, visto que eles se sentiam constrangidos de nos receber nesse estado.

Deixamos claro que não faria a menor diferença. Nós os aceitávamos como eram em toda a sua subjetividade. Se não quisessem participar, não haveria problema, mas não estar absolutamente sóbrios não era condição sine qua non para sua adesão. Posteriormente tivemos algumas experiências de escuta de indivíduos entorpecidos. Seus traumas são tão intensos, que muitas de suas falas mais marcantes só se tornaram possíveis nesse estado.

Havia também – e há até hoje, apenas com menos frequência – aqueles que praticam o que denominamos em tom de brincadeira “sonoterapia”: esses indivíduos permanecem dormindo no mesmo cômodo em que são realizadas as reuniões. Apesar do barulho ao seu redor, aparentemente não despertam.

Vemos algumas possíveis justificativas para esse comportamento (levando em conta que certamente há mais opções): a primeira é o sono velado. Lembrando que muitos deles são egressos das ruas, nossas vozes e nossa presença trazem a segurança de um envelope sonoro (ANZIEU, 2016).

Outra possibilidade é usarem o sono como ferramenta de investigação do nosso trabalho até que se sintam confortáveis para no futuro participar ativamente das reuniões. Outros já confessaram que nossa presença lhes transmite segurança. Mesmo que estejam dormindo em outro cômodo, ter certeza de que estamos na casa lhes dá a sensação de acolhimento.

Nas falas, como ocorre em qualquer sessão no consultório, aparecem sonhos, memórias e impressões diversas. Em comum entre os residentes há um histórico de abandono, idealização materna e um sentimento precário de self, no sentido winnicottiano do termo.

Em nossos encontros não aparece o discurso estereotipado do transexual difundido pelo senso comum. Há indivíduos mais ou menos integrados psiquicamente, que sofrem, sentem e, em sua maioria, ainda não entraram em contato com o próprio desejo.

Atribuo a fala mais honesta e subjetivada ao fato de perceberem nossa disponibilidade para a escuta. Um deles já expressou que em nossa presença – diferentemente do que ocorre em outras interações sociais com pessoas de fora de seu universo – não se sente como um animal no zoológico, onde os visitantes o observam a distância e não se preocupam efetivamente com seu bem-estar.

Ainda não identificamos em nenhum dos participantes a psicose de Schreber, descrita por Freud. Há aqueles que gostariam da cirurgia de redesignação genital, há outros que preferem manter a genitália de nascimento porque ela é fonte de prazer. Há também aqueles que rejeitam a própria genitália, mas não têm muita clareza do que fazer a esse respeito. Mas, até agora, todos os participantes verbalizam consciência de sua anatomia original.

Quanto à organização psíquica, em sua maioria, encontramos patologias fora das neuroses clássicas. Com poucas exceções, eles parecem ter tido um ambiente suficientemente bom no começo da vida. No entanto, dificuldades inimagináveis e total desamparo, obviamente deixam suas marcas. Esses indivíduos são invisíveis. São os últimos numa escala de valor social.

 

Transferência e contratransferência

Cada encontro é diferente e único – como qualquer sessão psicanalítica. Mas às vezes o enquadre é bastante heterodoxo. Essas experiências são muito ricas em termos da escuta e da prática clínica. Por exemplo, certa vez um residente teve três psicanalistas à sua disposição ao mesmo tempo. O indivíduo dispôs de mais de uma hora de nossa escuta, e foi interessante observar posteriormente o impacto de sua fala em cada um de nós.

O primeiro profissional expressou angústia na possibilidade de ter um analisando em sua prática tradicional com um núcleo psicótico tão evidente. O segundo ouviu um discurso de alegria e sonhos românticos, e o terceiro ouviu um relato de profunda tristeza.

Interpreto as diferentes escutas como resultado das diferentes relações estabelecidas entre cada profissional e o mesmo residente. E me pergunto se o mesmo não ocorre na escuta analítica tradicional, em que apenas uma escuta valida o discurso. Além disso, a fala do residente pode mesmo conter os três elementos simultaneamente: traços psicóticos, romantismo e tristeza, percebidos por cada um de nós a partir de nossas vivências, nossas fantasias e nossos suportes teóricos.

Vale lembrar que na contratransferência o analista não se apresenta como tábula rasa. Ele se despe de conceitos preconcebidos e juízos de valor e empresta sua subjetividade, sua imaginação e suas fantasias. Emprestar a subjetividade não é o mesmo que descartá-la.

Marion Minerbo, comentando Marilia Aisenstein (2011), observa que o prefixo “contra” em alemão significa tanto “oposição” quanto “próximo” (“eu me apoio contra a parede”). A autora argumenta que o termo “contratransferência” seria mais bem traduzido como “cotransferência”. Fazendo uso do “se apoiar contra a parede”, os conceitos de oposição e sustentação pela proximidade física são simultâneos.

A autora elabora da seguinte maneira:

Se não houvesse parede, eu não poderia me apoiar contra ela – se não houvesse contratransferência, a transferência não teria onde se apoiar e não poderia se desenvolver; é nesse sentido que entendo que o analista tem de ‘assumir a paternidade e a responsabilidade’ pela transferência (MINERBO, 2012, p. 47, aspas da autora).

E conclui que:

O termo contratransferência tem um sentido bem mais complexo do que simplesmente de reação emocional à transferência (no sentido de ação e reação) (MINERBO, 2012, p. 47).

Algumas de nossas reações contratransferenciais vivenciadas até aqui dão uma ideia da plasticidade da técnica nessa experiência. Em virtude da situação precária da instituição, uma das integrantes do grupo de trabalho teve a iniciativa de arrecadar fundos para comprar mantimentos e material de limpeza para a casa. Nós já levamos bombons de presente de Natal, já assamos uma torta salgada e um bolo, já compramos medicamentos numa emergência e, numa sessão especificamente, nos foi solicitada ajuda financeira para necessidades individuais e não para a instituição como um todo.

Considero que essa mesma reunião tenha sido a mais difícil até o momento. Além da questão do dinheiro, foi uma das primeiras em que houve demanda explícita de escuta individual. Posteriormente nos demos conta de que as impressões foram similares: todos nós sentimos um desconforto intenso, profundo nas falas dos residentes.

Os discursos explicitamente tristes, por vezes grotescos, foram acompanhados – em ambientes diferentes da casa – por um odor pútrido. O envelope olfativo (ANZIEU, 2016) que acompanhava os discursos trágicos nos remeteu às nossas próprias posições arcaicas. Foi difícil metabolizar a experiência. Nessa reunião o ambiente na instituição estava particularmente tenso, com a iminência do encerramento das atividades e a consequente volta dos residentes às ruas. Felizmente isso não ocorreu.

Outra experiência tão desafiadora quanto dolorosa foi a morte de uma das residentes. Foi num domingo, no sofá da própria casa, na presença de vários deles. Fomos avisados imediatamente, e era uma das primeiras pessoas que conhecemos na casa. Nós sabíamos de suas dificuldades e vínhamos percebendo seu lento e constante movimento de aproximação conosco. Enquanto na clínica particular lidamos com a morte de parentes e amigos do analisando a partir de sua realidade psíquica, ali tivemos que lidar com vários lutos, tanto deles quanto nossos – como grupo e individualmente.

Além disso, desde que comecei as atividades nessa instituição, senti algo se transformar na minha clínica particular. Percebi uma calma maior para lidar com o sofrimento psíquico de meus analisandos. Mas essa escuta mais tranquila não é menos implicada. Com o tempo me dei conta de que minha escuta vem se tornando, na verdade, cada vez menos onipotente.

Teoricamente é fácil dizer que na contratransferência devemos controlar o ímpeto de ajudar, sugerir soluções para os problemas dos analisandos, mas antes dessa experiência eu confesso que tinha que estar particularmente alerta nesse sentido. Falas tão carentes, muitas vezes pouco integradas, me possibilitaram a introjeção do poder da escuta, do poder do espaço de fala. Cada analisando vai seguir seu caminho, no seu tempo, no seu ritmo. Meu trabalho é estar por perto para ouvir e pontuar o que for necessário. Mas, acima de tudo, ouvir.

O parágrafo anterior parece um paradoxo diante do relato sobre nossas contribuições concretas à casa. Uma psicanalista do nosso grupo definiu muito bem o impacto desse tipo de ajuda: eles recebem esse tipo de auxílio como a terra seca do sertão recebe a primeira chuva. Sua situação é tão absolutamente precária, que os mantimentos, os remédios ou a contribuição para o almoço do dia não são objetivamente percebidos; são imediatamente absorvidos. Ou seja, entendemos que nesse quadro, nossas contribuições efetivas sanam demandas da ordem da necessidade – tanto quanto o seio satisfaz a fome do bebê na sua fantasia de onipotência.

Na perspectiva da transferência, a experiência tem sido ainda mais rica. Há quem trabalhe a madrugada inteira e, apesar do cansaço, permaneça acordado para a reunião. Há quem nos proteja de residentes que saem do enquadre e tentam seduzir um dos profissionais. Eles percebem e pontuam quando algum de nós não comparece à reunião e demonstram alívio e alegria quando retornamos.

Assim como já perceberam que não pedimos nada pelo seu tempo, alguns fazem questão de verbalizar que também não querem nada além de nós mesmos. Não pude comparecer às reuniões por algumas semanas seguidas e, pouco antes disso, havia prometido levar um bolo. Os dois eventos não tinham nenhuma relação, mas recebi um recado: eu poderia voltar, mesmo sem o bolo.

Percebendo que não seríamos destruídos facilmente, atualmente as falas comparecem cada vez mais continuadas, possibilitando uma escuta mais ordenada. Também tem se apresentado uma demanda crescente de escutas individuais. Eles deixam claras suas preferências por determinado profissional: “Ela é tão atenta. Realmente escuta o que a gente diz”.

Essa mudança também nos impõe um novo desafio: se um residente percebe que o profissional de sua preferência está ocupado com outro indivíduo, é comum que nem participe da reunião daquele dia. Também não é raro que ao final de um encontro alguém confesse que pôde verbalizar determinado fato de sua vida pela primeira vez.

Além disso, pudemos observar algumas mudanças na rotina da instituição, que interpretamos como maior integração psíquica. Há a preocupação de que o espaço esteja minimamente limpo para nos receber. E o almoço ocorre muitas vezes entre meio-dia e meio-dia e meia, no final da nossa reunião, coisa que não ocorria meses atrás.

 

O enquadre

Depois desse relato, o leitor pode se perguntar se o que fazemos é psicanálise. Quanto ao setting, vamos até o analisando. É verdade, mas indivíduos tão arredios em decorrência de uma sucessão de traumas não concordariam em experimentar a psicanálise – pelo menos inicialmente – num consultório tradicional mesmo que fossem pagos para isso. Além da questão financeira, muitos deles não suportam o preconceito explícito que sofrem em ambientes predominantemente cisgênero.

Um dos residentes já expressou que fica na janela observando a vida, aqui compreendida como a rotina normal de pessoas que circulam livremente pelos espaços públicos sem serem notadas ou estigmatizadas. Para indivíduos tão marginalizados, a análise fora do seu ambiente pode ativar fantasias de relação de poder em que o analista é muito mais que o suposto saber; ele é quase um tirano.

Dito isso, minha aposta é que no futuro muitos deles desejem e consigam frequentar nossos consultórios normalmente. O analista não pode desejar pelo analisando, mas pode torcer e ajudá-lo a encontrar as ferramentas adequadas para que ele chegue aonde quiser.

Um segundo questionamento: a troca financeira é essencial para a relação analítica. É verdade. Mas numa situação tão precária, talvez a maior demonstração possível de comprometimento seja a presença do indivíduo nos encontros. Além do mais, para alguém tão acostumado a relações em que o dinheiro é peça central, se relacionar e se comprometer sem pagar pode efetuar mudanças de paradigma: no lugar de valer o quanto custam, relações podem passar a valer o quanto são realmente.

Também se pode argumentar que, sem o enquadre tradicional, não é possível a relação transferencial. Se admitirmos que há transferência na vida cotidiana com diferentes figuras de poder e também com pares, por que duvidar dessa possibilidade no enquadre aqui descrito?

A transferência não aparece em todos os residentes, e o mesmo ocorre na clínica tradicional. Alguns fazem transferência com determinado analista, outros claramente transferem para o grupo de profissionais como um todo. Não pode haver gradação nem juízo de valor quanto ao que nos é oferecido em termos transferenciais. Nem no setting tradicional, nem num trabalho tão heterodoxo como este. O que importa é como nós, profissionais, administramos a nossa contratransferência. Quanto a isso, acredito ter exposto o processo de forma clara nos parágrafos anteriores.

E seriam possíveis a elaboração, a associação livre e a descoberta do desejo na análise com indivíduos semianalfabetos? O processo analítico é a descoberta do desejo e da verdade de cada um. Ou seriam traumas, instâncias e envelopes psíquicos apenas resultado da alfabetização?

Eduardo Rozenthal defende que, se há linguagem, há possibilidade de psicanálise – até mesmo com pacientes psicóticos.2 Partindo dessa premissa, não há dúvidas de que seja possível o encontro com o desejo e a subjetividade de cada um, independentemente da educação formal.

Certa vez fui questionada quanto ao que realmente contribuímos num grupo tão precário. Percebemos em suas falas que muitos até receberam cuidados de um ambiente suficientemente bom no começo da vida, mas esse ambiente foi se perdendo ou degradando ao longo do tempo. A partir da puberdade, na impossibilidade de mascarar sua verdadeira identidade de gênero, foram desvalorizados, expulsos de casa e excluídos dos ambientes sociais. Desde então, vivem a maior parte do tempo em guetos.

Acredito que oferecemos a escuta a partir de um universo bastante desconhecido de quem fala. E esse choque cultural e socioeconômico propicia a abertura de novas possibilidades tanto subjetivas quanto concretas. Utilizar o analista como um espelho pode operar mudanças bastante significativas. Como argumentei anteriormente, acredito que o impacto vá muito além disso, mas se esse fosse o único efeito do nosso trabalho com esses indivíduos, eu já ficaria satisfeita.

 

O apoio mútuo

Com tantos desafios, obviamente precisamos de intenso apoio. Nossa rotina às quartas-feiras consiste em reunião na instituição, almoço com nosso coordenador e supervisão coletiva na sede do CBP-RJ. O coordenador frequentou as reuniões durante os primeiros meses, mas atualmente ele e duas outras integrantes não vão às reuniões regularmente, e o grupo está completo no horário da supervisão coletiva.

Esse formato tem seu valor porque, quando quem não frequenta a instituição nos escuta, não está contaminado pela contratransferência. Eles estão prontos para nos receber e nos ajudar a elaborar a experiência. Nossa gestão horizontal implica não obrigar ninguém a nada. Todos se esforçam na mesma medida oferecendo o que podem em determinado momento. Fora isso, temos uma relação pessoal muito próxima, o que possibilita buscar ajuda e trocar ideias a todo tempo. Aliás, isso não é só uma possibilidade – é o que de fato acontece. E, obviamente, todos nós estamos em análise pessoal.

Acima de tudo, o que garante a permanência desse trabalho é o fato de comparecermos às reuniões em grupo. Tanto pelo efeito de acolhimento e até de alegria que a nossa presença assim opera na casa, quanto pelo apoio mútuo de alguém que vive a mesma experiência e entende o que isso representa. O grupo de trabalho opera num movimento de transferência e contratransferência mútuas. É uma experiência tão gratificante quanto impactante. Nesse caso, nenhuma análise, nenhuma supervisão é tão importante nesse momento quanto o apoio dos pares.

 

Conclusão

Estatísticas indicam que somos o país que mais mata transexuais no mundo. A formalização da identidade de gênero transexual é um processo caro e demorado. Muitos desses indivíduos permanecem com seu nome de batismo. Outros, por terem sido expulsos muito cedo de casa ou terem vivido nas ruas, nem possuem documentação. Aqui falamos de indigentes. Sendo assim, imagino que a violência contra os transexuais seja ainda maior do que nos mostram dados oficiais. Por exemplo, uma das pesquisas mais recentes sobre o assunto é relativa a 2014:

O Brasil continua sendo o campeão mundial de crimes motivados pela homo/transfobia: segundo agências internacionais, 50% dos assassinatos de transexuais no ano passado foram cometidos em nosso país. Dos 326 mortos, 163 eram gays, 134 travestis, 14 lésbicas, 3 bissexuais e 7 amantes de travestis (T-lovers). Foram igualmente assassinados 7 heterossexuais, por terem sido confundidos com gays ou por estarem em circunstâncias ou espaços homoeróticos (GGB, 2014, p. 1).

O mesmo relatório do Grupo Gay da Bahia admite:

A subnotificação destes crimes é notória, indicando que tais números representam apenas a ponta de um iceberg de violência e sangue, já que nosso banco de dados é construído a partir de notícias de jornal e internet. Infelizmente são raríssimas as informações enviadas pelas mais de trezentas ONGs LGBT brasileiras. A realidade deve certamente ultrapassar em muito tais estimativas, sobretudo nos últimos anos, quando policiais e delegados cada vez mais, sem provas e sem base teórica, descartam preconceituosamente a presença de homofobia em muitos desses “homocídios” GGB, 2014, p. 2).

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) recentemente publicou que até 16/06/2017 foram registrados 73 assassinatos de pessoas trans. No entanto, a ONG admite que esses dados são baseados em fatos noticiados pela imprensa.

Também já li que mais de 90% dos transexuais trabalham na prostituição. Pessoalmente, não confio nesses dados. Primeiramente, não temos informação sobre o nível socioeconômico dos entrevistados nem onde foram feitas as pesquisas: em suas residências? Em casas noturnas? Em universidades? No comércio? Em quantos estados do país? Ou teriam se restringido apenas aos locais de prostituição? Por outro lado, considerando os relatos do grupo – limitado tanto em quantidade quanto em espectro socioeconômico – de pessoas que atendemos, a prostituição aparece inicialmente como uma oportunidade de exercício da feminilidade. Posteriormente, para algumas delas – não todas – pode representar uma posição social degradante.

Este artigo não pretende generalizar as vivências transexuais, apenas descreve experiências com um grupo limitado e específico. Nem todos os transexuais fazem uso de drogas. Nem todos os transexuais foram abandonados pela família. Nem todos os transexuais trabalham na prostituição.

A intenção é discorrer sobre a plasticidade da experiência clínica com analisandos transexuais atendidos em nossa clínica social. É um relato sobre afeto – transferência e contratransferência, se preferir.

A meu ver, o ofício da psicanálise se apresenta como uma construção afetiva, de sentir com, que tem como suporte construções teóricas. É uma relação entre humanos, portanto há que cuidar para que o analisando não seja encaixado deliberadamente na teoria.

A omissão de aportes teóricos específicos sobre a transexualidade tem uma razão: Desde que comecei o trabalho clínico com esses indivíduos, não consigo associar a experiência a nenhuma das teorias sobre transexualidade que conheço. Vejo ali indivíduos em sofrimento psíquico que se beneficiam desse espaço de escuta. Cada um na sua singularidade, cada um com suas marcas traumáticas bem particulares. A transexualidade é apenas mais um elemento de cada um deles. Em termos psíquicos, sua identidade de gênero não os define, não é o principal. Talvez seja apenas resistência minha; talvez daqui a algum tempo eu perceba que estou equivocada. Não tem problema. Ainda bem que neste momento podemos contar com as brilhantes elaborações teóricas de Rodrigo Zanon e Anchyses Lopes em nosso grupo de trabalho.

Minha sensação é que estamos construindo um grande e infinito jogo do rabisco (WINNICOTT, 1994). Psicanalistas e residentes. Rabiscando juntos. Cada risco é completado por outra pessoa. E, quando o papel fica pequeno demais, colamos mais uma folha. Assim, nenhuma palavra, nenhuma intenção, nenhuma sugestão ou nenhum sinal são esquecidos.

A posteriori vamos perceber aonde isso tudo nos levou. Agora só não podemos parar de rabiscar.

 

Referências

ANZIEU, D. The wrapping of sound e The olfactory wrapping. The skin-ego. London: Karnac, (2016).         [ Links ]

FIGUEIREDO, L. C. Elementos para a clínica contemporânea. São Paulo: Escuta, 2003.         [ Links ]

MINERBO, M. Transferência e contratransferência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2012.         [ Links ]

ROCHA, P. S. (Org.). Cata-ventos. invenções na clínica psicanalítica institucional. São Paulo: Escuta, 2006.         [ Links ]

WINNICOTT. D. W. Psychoanalytic explorations. London: Karnac, 1989. Disponível em: http://docplayer.com.br/16308600-Assassinato-de-homossexuais-lgbt-no-brasil-relatorio-2014.html/. Acesso em: 24 jun. 2016.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: fernandafreitas.psi@gmail.com

Recebido em: 10/04/2017
Aprovado em: 18/05/2017

 

 

SOBRE A AUTORA

Fernanda Ribeiro de Freitas
Licenciada em Letras: Português/Francês pela UERJ.
Psicanalista.
Membro efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Participante do Grupo de Trabalho sobre Neo e Transexualidades (GTNTrans) do CBP-RJ.

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