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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.30 no.44 São Paulo June 2007

 

ARTIGOS

 

O eclipse do divino e a psicanálise*

 

The eclipse of divinity and psychoanalysis

 

 

Odilon de Mello Franco Filho**

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho toma como eixo temático o livro de Richard Elliot Friedman, intitulado O desaparecimento de Deus:Um mistério divino.Neste ensaio, Friedman faz uma leitura dos relatos bíblicos, considerando que eles estão reunidos por uma idéia central que faz referência a um Deus que, inicialmente muito próximo do cotidiano dos homens, passa a se afastar do contato direto com eles. Esse desenvolvimento sugere, para o autor, que o sagrado e o humano vivem um conflito. O “desaparecimento” de Deus é, por outro lado, oportunidade para o ser humano se apropriar de sua natureza como criatura. Nosso texto faz um paralelo entre esse conflito e a situação do homem perante o Inconsciente, ou seja, com aquelas partes “ocultas” que o determina e com as quais está sempre em conflito.

Palavras-chave: Crença e não-crença. Deus. Inconsciente.Psicanálise e religião.Religião.


ABSTRACT

This work is based on Richard Elliot Friedman’s essay, The disappearance of God: A divine mystery. In this essay, Friedman makes a reading of Biblical passages, considering that they are connected by a main idea that refers to a God that, initially, is very close to men’s everyday life but, in the end, keeps away from their direct contact. This development suggests to the author that “divinity” and “sacredness” are in constant conflict. The “disappearance” of God, on the other hand, is man’s opportunity to get hold of his own nature as a creature. Our text makes a parallel between this conflict and man’s situation in face of the unconscious, in other words, with those “occult” forces that determine what he is and with which he is in constant conflict.

Keywords: Belief and non-belief. God. The unconscious. Psychoanalysis and religion. Religion.


 

 

Um enredo que atravessa a narrativa bíblica

Raramente releio livros, com algumas exceções. Acontece que a leitura de O desaparecimento de Deus: Um mistério divino (The disappearence of God: A divine mystery), de Richard Elliott Friedman (1995/1997), provocou em mim um fascínio que me levou a relê-lo várias vezes, total ou parcialmente. Quero agora partilhar com meus colegas psicanalistas esse entusiasmo, a respeito dessa obra que, apenas pelo título, parece nada ter de interesse a um psicanalista.

Friedman é teólogo e professor de literatura comparada na Universidade da Califórnia. Chamam a atenção suas qualidades de pesquisador e notável honestidade intelectual, ao propor idéias ao leitor, sem impô-las ou argumentá- las em base de suas crenças pessoais. O eixo básico de sua tese é o seguinte:

Todos os livros que compõem a Bíblia Hebraica possuem um traço em comum e surpreendente: o desaparecimento gradual da figura de Deus. A Bíblia se inicia num mundo em que Deus está ativa e visivelmente envolvido nas vidas dos primeiros humanos, mas não é assim que ela termina. Inicialmente, é Deus em pessoa que insufla vida no primeiro homem, quem modela a primeira mulher, quem planta o Jardim do Éden, quem cria os animais. É Deus em pessoa que fala aos homens. A atividade do criador é apresentada como algo que pode ser observado pelos habitantes da terra, tanto no nível cósmico, quanto no nível pessoal.

Esse panorama, porém, vai sofrendo alterações no decurso das narrativas e na medida em que a população humana cresce, a presença divina nunca mais se torna visível ao homem como antes. De um mundo de mares que se separam, serpentes que falam e interações visíveis com o divino, só resta a presença intermediada de Deus, mediante alguns milagres episódicos,ou mediante alguns anjos e alguns raros eleitos para falar em seu nome – os profetas. O relacionamento dos humanos com o divino passa a ser uma questão de crença pessoal. Deus cria os homens, aparece para eles, interage com eles e os deixa. Deus oculta a sua face. As respostas emocionais dos indivíduos a esse ocultamento progressivo se condensam no livro dos Salmos. O salmista clama:“Meu Deus, meu Deus, por que me deixaste?”. São essas, também, as últimas palavras de Cristo na cruz.

Como se vê, Friedman propõe um “enredo” para a Bíblia.

 

O humano e o divino: uma relação conflituosa

O que descrevi é apenas uma parte desse enredo. A outra parte dele diz respeito ao clima emocional em que sempre se manifesta a relação do homem com o divino. O fato é que os homens, quanto mais íntimos de Deus, mais vivem com Ele uma relação de tensão e conflito. É espantoso, diz o autor, que, mesmo sabendo que esse Deus existe, rebelem-se conscientemente contra ele. A figura de Jacó, que passa a noite com o “anjo” e depois briga com ele e o subjuga, é emblemática dessa situação. Lembremos que esse mesmo anjo dá a Jacó um novo nome – Israel – que significa “aquele que luta com Deus”. Ao mesmo tempo em que apela para a presença divina, o homem parece não tolerá-la. Essa tensão entre o humano e o divino jamais cessa, e seus sinais ultrapassam as páginas da Bíblia, para serem encontrados na experiência histórica da humanidade. Parece fazer parte da natureza humana estabelecer uma relação de conflito com as forças do universo que se constituem como misteriosas e além de nossa capacidade de reproduzi-las.

A ocultação da face de Deus, intrinsecamente ligada a essa tensão, pode ser vista, portanto, como manifestação que vai além de um desenvolvimento literário e teológico proposto na Bíblia. Está inserida no âmago de uma crise que, no século XIX, foi claramente expressa em Nietzsche e Dostoievski e que pode ser assim resumida: “Deus está morto”. Segundo Friedman, cada um desses autores, à sua maneira, imaginou uma mudança no equilíbrio das relações entre os humanos e o divino, pela qual os homens não mais suportariam nem a presença, nem a crença na divindade. De tal situação decorreria que os homens teriam de se apropriar do papel divino perante o mundo. Nesse contexto de conflito, surgem também os avanços científicos. Cada vez mais, o homem encontra, na investigação científica da própria natureza, as respostas para as perguntas que antes dirigia a Deus. O impacto emocional desse contexto resulta na sensação de que estamos irremediavelmente sozinhos. Esta sensação tornou-se predominante no século passado e neste, e dela compartilham todos, fundamentalistas e ateus e toda a gama de religiosos conservadores e liberais que se situam entre aqueles dois pólos. Nietzsche previu esse mundo que sentiria a ausência de Deus.

 

O divino, o sagrado e o inconsciente

Nesta minha exposição, tomo as menções de Friedman a “Deus” como expressões do que, genericamente, entende- se pela noção de “sagrado”. Sagrado, na linha proposta por Galimberti (2000/2003, p. 11) é:

uma qualidade inerente ao que tem relação e contato com potências que o homem, não podendo dominar, percebe como superiores a si mesmo, e como tais atribuíveis a uma dimensão, em seguida denominada ‘divina’ considerada ‘separada’ e ‘outra’ com relação ao mundo humano.

A riqueza da noção que esse autor propõe para o sagrado é que ela se insere num registro antropológico, sem conotação espiritual ou moral, sem engajamento num discurso confessional. Galimberti lembra que “sagrado” é palavra indo-européia que significa “separado”. Esse significado tem implicações importantes para o tema que abordo.

O “divino” de Friedman e o “sagrado” de Galimberti convergem para a afirmação da existência de uma dimensão que está próxima do homem, mas que, ao mesmo tempo, está “separada”, oculta, em relação a ele. Segundo Galimberti, a tendência do homem é se manter afastado (separado) dessa dimensão, ao mesmo tempo em que é por ela atraído.

A mediação religiosa se daria na cesura dessa ambigüidade, para realizar, de um lado, o contacto (precário) com o sagrado e, ao mesmo tempo, evitar sua expansão descontrolada e garantir sua inacessibilidade. A ocultação faz parte do jogo da presença.

Os ouvidos psicanalíticos dos que me ouvem, ou os olhares psicanalíticos dos que me lêem, podem, facilmente, estabelecer correlação entre a tensão diante do sagrado (ou do divino) e a ambigüidade que Freud apontou existir na mente, em relação às partes conscientes e inconscientes, que se atraem e se ocultam mutuamente.

Freud, ao colocar o inconsciente dinâmico como núcleo estruturante da personalidade, descentrou o sujeito de sua consciência e o centrou no reino da chamada realidade psíquica, em cujo âmago estão o inconsciente, as pulsões.O inconsciente, por definição, é o “invisível”. Ao chamar a atenção para algo que está “oculto”, além das experiências sensoriais, apontou para o que está presente, mas “inacessível”. A afirmação bíblica de que “Deus oculta sua face” pode ser tomada, neste contexto que estudamos, como metáfora para o Inconsciente à luz só da razão. Podemos dizer que, a seu modo, um agnóstico (Freud) adentrou no reino do “sagrado” ao formular sua hipótese sobre o inconsciente. Talvez se trate, aqui, da mostra de uma iniciativa humana diante da “ocultação de Deus”.

Notável ainda, é que, ao descrever as qualidades do inconsciente – atemporalidade, ausência de limitação espacial, onipotência, deslocamento/condensação, equivalência entre realidade interna e realidade externa – Freud criou uma equivalência de representações entre o Inconsciente e os chamados atributos da divindade, proclamados pela Teologia – eternidade, infinitude, não contradição, indivisibilidade, ato puro (Franco Filho,1998). Podemos dizer também que, assim como o Deus bíblico se insere num processo de ocultação de sua face, também a noção de inconsciente permaneceu oculta à compreensão científica até Freud, embora suas manifestações sempre estivessem presentes em nós mesmos.

Presente e oculta: assim é também a sexualidade. Freud disse, ironicamente, que muito antes dos cientistas admitirem a existência da sexualidade infantil, as babás de todo o mundo já estavam familiarizadas com ela.

Como já foi mencionado, Friedman descreve um estado de tensão contínua entre o humano e o divino. Deus e o homem estão sempre em conflito. Segundo ele, os autores bíblicos parecem ter compartilhado da idéia de que o reino divino é glorioso, mas perturbador. Raramente se encontram textos sagrados, sejam de que religião forem, que retratem humanos e divindades, vivendo juntos em tranqüila e abençoada harmonia.

O autor se pergunta por que, se é que há uma resposta. A “face de Deus” é perturbadora, embora se queira conhecê- la. O homem não tolera um poder que não é seu. Desde Adão isso se manifesta. Friedman afirma que, segundo a lógica bíblica, o paradoxo de ser um humano consiste em ser parecido com Deus o suficiente para aspirar ao divino; no entanto, não o suficiente para alcançá-lo. Anedoticamente, costuma-se dizer que a diferença entre os animais e o homem é que este último é o único que aspira a ser Deus.

Algumas aproximações com a psicanálise saltam aos olhos, diante dessa abordagem. A psicanálise aponta para o fato de a mente se apresentar como um campo estruturado por conflitos: entre consciente e inconsciente, entre processos primários e secundários, entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, entre as pulsões de vida e morte. No plano clínico, é fundamental a consideração do conflito edipiano como configuração básica que gira em torno do conflito com os pais criadores. Esse conflito não é só uma ocorrência pontual, mas seus desdobramentos constituem fator nuclear na estruturação da psique.

 

A ocultação do divino: castigo, tragédia ou oportunidade?

Para Friedman, o tema central da história bíblica é o crescimento, o amadurecimento e a separação natural dos homens de seu pai criador. A iniciativa do próprio Deus de ocultar sua face gradualmente, na história bíblica, pode indicar uma oportunidade para que o homem descubra seu destino, por seus próprios (e às vezes tortuosos) caminhos. A tensão com o divino, de que falamos, não seria um “pecado” dos homens, mas a maneira deles irem ao encontro de si mesmos. O desaparecimento de Deus envolve o amadurecimento da humanidade.

Segundo Freud, o homem não pode permanecer sempre criança. Na trajetória dessa mudança muita coisa pode acontecer. O desenvolvimento do complexo edipiano, tanto pode levar à fantasia de derrota do pai, quanto a uma outra maneira de se relacionar com ele, por sua introjeção, como um núcleo de identificações organizadoras da personalidade.

O homem se aproxima de Deus quando admite que não pode ser Deus e aceita essa condição sem rancor, o que significa tomar consciência de sua natureza. A partir dessa diferença, surge a possibilidade do diálogo. Assim também, o diálogo com os pais introjetados só se dá após estar ultrapassada a pretensão narcísica de negar-lhes o poder criador.

Tanto a aproximação, quanto as tensões, quanto o afastamento mencionados, encontram notável reprodução no processo analítico. O analista interage com o analisando, ajuda a formar o homem analítico (aquele que tem o “ego no lugar do id” – até certo ponto...) e, então... deixa-o!

 

Muita luz cega!

Já mencionei a religião como forma de mediação com o sagrado.Mediação que surge como necessidade humana, diante da “face perturbadora e indescritível do divino”. Não é só Deus que oculta sua face. O homem desvia seu olhar quando está muito próximo às manifestações do divino.Na Bíblia, depois que Moisés “vê” Deus, ele passa a ocultar o próprio rosto para que seu povo não veja os olhos que viram Deus. Ironicamente, Friedman pergunta: se a pessoa tivesse o privilégio de “ver Deus”, aceitaria uma nova experiência? Em todas as culturas e religiões, o contato com o sobrenatural é descrito como provocando, no mínimo, pânico.

Na narrativa bíblica, esse paradoxo “atração/repulsão” encontra uma maneira de ser tolerado, pela introdução da mediação profética. São agora os profetas que “apontam” para o Deus que está se afastando. A ação profética é a mais impressionante de toda a mediação requerida pelo embate entre o humano e o divino. Ao contrário do que se pensa habitualmente, “profeta” não é o sujeito que anuncia milagres, ou adivinha o futuro. “Profeta” é aquele que ‘profere’, ou seja, “o que ‘fala’ em nome de Deus”. A mediação profética não é realizada por meio de atos, mas mediante “palavras”. O poder profético não está em fazer milagres, mas em “interpretar” o que está oculto.Aqui, é a palavra que é a mediadora. Ou seja, o acesso ao simbólico é que traz à presença o que estava oculto.

O exemplo emblemático dessa transformação mediadora está na figura bíblica de José, o filho de Jacó, que se tornou conselheiro do faraó do Egito. José não deriva seu prestígio de milagres, os quais nunca operou. Ele apenas “interpretava” os sonhos do faraó. O poder se afasta do plano concreto; tem poder aquele que tem acesso ao mundo simbólico.

Essa mesma temática de transformações vê-se presente no caminho que levou Freud a constituir o método psicanalítico, tal como o conhecemos. Da hipnose e da sugestão, ele passou a atuar unicamente mediante a palavra interpretativa. Trata-se aqui da palavra como recurso simbólico para acesso ao inconsciente e suas experiências, que não pertencem à dimensão concreta.

Tais colocações exigem dois apontamentos. Em primeiro lugar, em psicanálise, a palavra interpretativa não é privilégio do analista, mas uma prerrogativa de ambos. Em segundo, a palavra não opera por si mesma (senão funcionaria como magia, ou milagre, como diriam os crentes). Ela pode funcionar quando interpreta um sentido que organiza a experiência emocional vivida pela dupla e resulta num insight e não mera compreensão intelectual. Numa era dominada pela fascinação das transformações concretas, pela medição quantitativa de resultados, pelos efeitos imediatos, não é de se estranhar que a Psicanálise seja acoimada de insuficiente, ou ultrapassada. A era das “profecias” (no sentido estrito que empreguei aqui) parece estar com seu reconhecimento em baixa, na medida em que o pragmatismo dos grupos humanos clama pela volta da era dos milagres, agora esperados do campo das ciências.

 

O universo e a mente como espaços de transformações

Unindo considerações que pertencem à Cabala judaica e à atual cosmologia científica baseada na teoria do Big Bang sobre a origem do universo, Friedman tenta uma síntese dessas intuições mediante a seguinte formulação: “o universo é a ordem que é construída a partir do caos” – entendido como ausência de forma. Note-se que essa transformação jamais é completada, estando em equilíbrio essas duas tendências. O ser humano, tão pleno de paradoxos, como mencionado, parece funcionar como microcosmos do universo, que evolui da indiferenciação para uma formação de ordem e estrutura. Nossa mente se institui, segundo Freud, a partir de um id – um caldo de impulsos que não conhecem contradição –, o qual, posteriormente, diferencia- se nas estruturas do ego e superego. Parodiando o escritor bíblico no Gênesis, poderíamos falar psicanaliticamente assim: ... “no princípio era o id”.

Esta dubiedade constitucional do ser humano foi realçada por Nietzsche em sua obra e também vivida por ele, com efeitos desastrosos. O ser humano é um produto e uma expressão dessa tensão: uma estrutura funcional (Apolínea) que procura conter forças caóticas (Dionisíacas) de uma liberação que, se completa, levariam à desintegração do indivíduo. Em termos psicanalíticos, teríamos uma função Apolínea (ego e superego), que tenta estabelecer limites – princípio da realidade – às descargas e imposições Dionisíacas do id – princípio do prazer. Tarefa que, se mal sucedida, abre as portas da loucura.

A mesma questão, colocada exclusivamente do plano pulsional, pode ser focalizada à luz da convivência e conflito entre os impulsos de vida e de morte, ou seja, entre Eros e Tanatos. Eros, força agregadora, levando a níveis de crescente complexidade, ao novo; Tanatos, força regressiva, niveladora, repetidora, desintegradora de significados. Longe de qualquer conotação moral, a proposta pulsional de Freud coloca a fusão desses dois componentes básicos como necessária ao desenvolvimento psíquico.

Quaisquer que sejam as posições frente à religião, crentes e não crentes talvez possam concordar quanto a um real perigo, não só aos indivíduos, mas a toda espécie humana: se essas forças que chamei de “sagradas” (independente do conteúdo religioso, ou não, que a elas se dêem) forem liberadas sem nenhuma mediação, ou continência. A ameaça de tornarmo-nos, voluntária ou involuntariamente,“ aprendizes de feiticeiros”, não é algo a ser descartado como ficção literária.

 

Considerações finais: A psicanálise pode fazer Deus desaparecer do indivíduo?

Acompanhando tudo o que dissemos até aqui, pode ficar a impressão de que o processo psicanalítico leva, forçosamente, ao desaparecimento de Deus na mente do analisando. Aliás, essa posição preconceituosa em relação à análise pode explicar por que muitos crentes a evitam, ou mesmo a combatem. Essa falsa impressão ganha reforço quando se lembra, de maneira superficial, tudo o que Freud escreveu sobre religião e, mais ainda, quando se tem em mente o aspecto a-religioso do criador da Psicanálise.

Mas é o próprio Freud (1909/1998) quem abre a possibilidade de um outro ponto de vista para essa questão. Numa carta a seu amigo, teólogo e pastor, Oskar Pfister, ele afirmou:

A psicanálise em si, não é religiosa nem anti-religiosa, mas um instrumento apartidário do qual, tanto o religioso como o laico poderão servir-se, desde que aconteça tão somente a serviço da libertação dos sofredores. Estou muito admirado de que eu mesmo não tenha me lembrado de quão grande auxílio o método psicanalítico pode fornecer à cura de almas, porém isto deve ter acontecido porque um mau herege como eu está distante desta esfera de idéias (p. 25).

Ora, se a psicanálise não é religiosa e nem anti-religiosa, que efeitos ela pode ter nos sentimentos de um analisando que seja crente? Franco, S. G. (2003) aborda essa questão, apontando que a psicanálise, como disciplina investigativa e prática clínica, não conduz necessariamente ao ateísmo, mas é essencialmente “iconoclasta”. Ela o é ao questionar “relações que se tornam infantilizantes e objetos que se tornam ídolos. Para ele, o projeto psicanalítico conduz à destruição dos ídolos onde quer que eles se encontrem e, em particular, os ídolos religiosos”. Derrubados os ícones sedutores que jazem na cultura e no imaginário, ficam duas possibilidades: uma fé sem ídolos, ou a não-fé, como visão de vida; todavia, essa decisão não cabe à psicanálise.

Nessa perspectiva, a formulação psicanalítica que mais parece condizente com esse projeto não é propriamente o “desaparecimento de Deus”, mas o “desaparecimento dos ídolos”. Aliás, esse projeto está claramente incluso naquele enredo que Friedman aponta em toda a narrativa bíblica: o foco da condenação de Deus não é dirigido à incredulidade do seu povo, mas à idolatria pela qual eles se deixam seduzir. Nessa mesma linha de interpretação bíblica, Franco, S. G. cita José Miguéz-Bonino, que afirma: “Os ídolos precisam sempre ser destruídos para que uma experiência mais profunda de fé possa ser experimentada”. A expressão “precisam sempre” sugere que se trata de um processo não definitivo, a ser sempre retomado.

Finalizando, podemos dizer que o tema do desaparecimento de Deus no indivíduo e na cultura atual, não pode ser entendido como o fim de um conceito ou do sentimento do sagrado na existência humana. Por esse motivo, talvez seja mais conveniente se falar em “eclipse do divino”. Quando observamos um eclipse no firmamento, o astro que é objeto dele não deixa de existir; apenas o vemos como uma imagem negativa (de sombra), mas essa sombra denuncia que ele está ali. Mais ainda, a observação de um eclipse é função da posição do observador: alguns presenciarão sua ocorrência, enquanto outros não. Estamos vivendo uma era em que a noção do sagrado não propriamente se extinguiu, mas em que, certamente, mudou a percepção que os homens têm da presença daquilo que chamamos de sagrado ou divino. A psicanálise pode ter um papel importante na mudança dessa percepção, desde que ela não se sinta substituta do objeto de sua crítica.

 

Referências

Franco Filho, O. (1998). Religious experience and psychoanalysis: From Man-as-God to Man-with-God. International Journal of Psychoanalysis, 79,113-131.        [ Links ]

Franco, S. G. (2003). O mal-estar na religião. Trabalho apresentado em Encontro sobre o Mal-Estar na Religião, Seminário Luterano de Teologia, São Leopoldo, RS, 8 nov. 2003. Texto não publicado.

Freud, S. (1998). Carta nº 2: 9.2.1909. In E. Freud & H. Meng (Orgs.), Cartas de Freud & Pfister: Um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã (pp. 24-26, K. H. Kepler e D. Junge, trads). Viçosa, MG: Ultimato.

Friedman, R. E. (1997). O desaparecimento de Deus: Um mistério divino. (S. Moreira, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1995).

Galimberti, U. (2003). Rastros do sagrado (E. L. Calloni, trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 2000).

 

 

Endereço para correspondência
Odilon de Mello Franco Filho
Rua Sergipe, 441/42
01243-001 – São Paulo – SP
Tel.: 11 3661-8648
E-mail: odilon@sbpsp.org.br

 

 

* Relato apresentado no XXVI Congresso Latino-Americano de Psicanálise, como parte do Painel “Psicanálise e cultura, filosofia e espiritualidade”. Lima, outubro 2006.
** Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

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