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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo Dec. 2010

 

EM PAUTA - PSICANÁLISE E ESCULTURA - PER VIA DI LEVARE

 

Corpo escultural veste escultura imaterial

 

Sculptural body wears immaterial sculpture

 

 

Marion Minerbo*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora ensaia uma interpretação de um fenômeno novo no mundo fashion: a apresentação de fotos em que top models aparecem nuas em revistas de moda. Subjetivamente, a modelo não está nua, mas vestindo apenas o nome do estilista.

Palavras-chave: Fashion, Marketing, Top model, Grife, Escultura de vestir.


ABSTRACT

The author proposes an interpretation about a new phenomenon in the fashion world: magazine photos of nude top models. The model is not nude, but dressed only with the stylist name.

Keywords: Fashion, Marketing, Top model, Fashion design label, Dressing sculpture.


 

 

Em 2 de fevereiro de 2010, a estilista Erin Donelly postou uma mensagem no site www.stylelist.com que causou impacto no mundo da moda. Revelava que “para seu terceiro número a Love Magazine apostou alto com oito capas, cada uma exibindo uma supermodelo usando apenas a roupa com que nasceu”1. Nas capas, sempre a mesma pose. O que variava eram as modelos nuas. O mesmo fenômeno, com algumas variações, tem sido visto em outras revistas de moda igualmente sofisticadas.

Desde Freud a psicanálise tem desvelado o sentido das produções humanas – na clínica e na cultura. O mundo fashion é um fenômeno cultural complexo e fascinante que merece ser analisado. Em 1997, em coautoria com Magda Khouri, Raquel Ajzenberg e Stela Grunberg, estudamos como o culto à beleza aparecia na clínica (1997). Ainda em 1997 defendi meu doutorado sobre compulsão a comprar roupas de grife2. Procurei mostrar como a ordem simbólica e as significações instituídas produziam novas formas de subjetividade. Um caso clínico permitiu entender como a compulsão a comprar surge quando elementos da cultura são usados para “solucionar” angústias narcísicas e objetais. Na ocasião Fabio Herrmann observou que as etiquetas com o nome do estilista tinham migrado do avesso da roupa, onde ficavam escondidas, para o lado de fora, onde pudessem ser vistas; no futuro vestiríamos apenas as etiquetas. Eu me lembrei dessa observação quando me deparei com o fenômeno paradoxal da nudez das modelos – cuja razão de ser era desfilarem, ou serem fotografadas, (muito bem-) vestidas.

Os estilistas contemporâneos são artistas, diferentemente das modistas de nossas mães e avós, que eram artesãs. Nos desfiles podemos apreciar sua criatividade, pois as roupas são verdadeiras esculturas cujas formas devem muito aos materiais e tecidos sintéticos contemporâneos.

Poucas coisas ainda nos surpreendem. No entanto, quando top models como Naomi Campbell e Kate Moss apareceram nuas em uma revista de moda, essa foi uma novidade em termos de marketing. Por que essas modelos, que ganham a vida e se tornaram celebridades vestindo grifes de luxo, estão se despindo? E por que revistas dedicadas a apresentar os grandes criadores de moda têm publicado fotos de suas modelos nuas? A psicanálise da cultura continua sendo o melhor instrumento para compreendermos o mundo em que vivemos e seus “sintomas”.

No site mencionado, vemos que as fotos das modelos lembram os trabalhos de Robert Mapplethorpe. São fotos de arte. Temos acesso à estética dos corpos esculturais que normalmente estão cobertos, ou semicobertos, por roupas que também são esculturas – esculturas de vestir. Associei imediatamente com os Parangolés de Hélio Oiticica. São roupas ou capas que o público pode vestir. Com o movimento do corpo, as capas assumiam formas e cores que não eram visíveis na imobilidade. O artista considerava os Parangolés suas esculturas móveis3.

A escuta analítica privilegia o detalhe, aquilo que parece irrelevante no “material clínico”. Nesse caso, o detalhe que me tomou foi o fato de que, apesar de nuas, a atitude das modelos é a mesma das fotos em que estão vestidas. Olhando com atenção, elas parecem estar vestindo sua nudez ou seus corpos esculturais. Além disso, há uma frase que funciona como legenda das fotos: “Clothes are so overrated...” – “As roupas andam valorizadas demais...” – e eu imagino essa frase dita em um tom bem blasé. O tom – um elemento não verbal – também faz parte do “material clínico”.

Essa campanha publicitária joga com o paradoxo. A modelo parece estar fazendo a crítica da supervalorização das roupas. O texto diz: “Clothes are so overrated...”. O tom blasé da modelo nua indicaria que “roupa não é tudo isso, eu não ligo tanto para roupa, por isso estou nua”. Mas nós não acreditamos no texto, e sim no subtexto – e é ele que nos seduz. O subtexto diz que aquela grife é tão poderosa que dispensa até a roupa. “Você nem precisa da roupa. Menos é mais: basta a grife para ter o meu glamour.” Isso, obviamente, não é verdade, pois ela só pode se dar ao luxo de estar nua porque tem grife própria.

As boutiques de alto luxo também usam a lógica do “menos é mais”. O metro quadrado da loja custa uma fortuna. Mas, em vez de um monte de roupas apinhadas, como nas lojas populares, entramos em um ambiente espaçoso, com iluminação natural, máquinas de café expresso e até champanhe. Discretos, uns poucos cabides com algumas roupas nos lembram que aquilo é uma boutique. O espaço vazio da loja é diretamente proporcional ao luxo da grife. Só uma grife de luxo pode se dar ao luxo do espaço (quase) vazio. O vazio diz tudo.

Mas isso não é o mais importante para a nossa interpretação, e sim a atitude das modelos. Foi dito que, embora objetivamente estejam nuas, comportam-se como se estivessem vestidas. Subjetivamente sentem-se vestidas. E mesmo nós, de certo modo, as vemos vestidas – diferentemente do que acontece na fábula “A roupa nova do rei”. Mas o que estão vestindo? Apenas um nome. O imenso prestígio do nome tornou a roupa supérflua e ela foi dispensada. Marilyn Monroe antecipou essa ideia em 1953, quando respondeu a um repórter que lhe perguntou o que usava para dormir: “Cinco gotas de Chanel N°5”4.

O fato de estarem na Love Magazine confirma que aquelas fotos, embora de modelos nuas, ainda são sobre moda. Se as mesmas fotos estivessem na Playboy, nossa leitura seria outra. Assim como seria de mau gosto que modelos desconhecidas aparecessem nuas em revistas de moda comuns. Monroe e Chanel eram nomes que se potencializavam mutuamente. A revista Love é de altíssimo luxo, bem como as grifes e as modelos que ali aparecem. Cada elemento do conjunto confere mais prestígio aos outros dois, reciprocamente.

A interpretação revela que o efeito de máximo glamour é obtido reduzindo-se a materialidade da roupa ao mínimo – no caso, a nada –, de modo a realçar o que importa: o valor imaterial, simbólico, do nome do estilista. Nem Hélio Oiticica conseguiria fazer com que sua assinatura dispensasse a obra/roupa Parangolé. A força do nome é tal que a intenção de vender também pode desaparecer da propaganda. Eles precisam mostrar que não precisam mostrar a roupa. Basta expor o corpo (de grife) que poderia vesti-la. Aliás, nem é o nome do estilista que aparece. Em um canto discreto da página está o seu site. Quem se interessar, pode assistir no YouTube o desfile da coleção. O site e os links substituíram, até certo ponto, a materialidade das revistas. Estas se veem obrigadas a apostar cada vez mais alto para continuar no jogo do luxo. E nada mais luxuoso que celebridades esculturais aceitando ser fotografadas vestindo esculturas imateriais.

 

Referências

Minerbo, M. (2000). Estratégias de investigação em psicanálise: desconstrução e reconstrução de conhecimento. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Minerbo, M., Khouri, M., Ajzenberg, R. P. & Grunberg, S. (1997). Beleza feminina: um tema da clínica contemporânea. Revista Brasileira de Psicanálise, 31(3), 809-819.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Marion Minerbo
Rua Alcides Pertiga, 78
05413-100 – São Paulo – SP
tel.: 11 3898-0074
E-mail: marion.minerbo@terra.com.br

Recebido: 20/09/2010
Aceito: 20/10/2010

 

 

* Psicanalista, membro efetivo da SBPSP, doutora pela Unifesp.
1 Fonte: http://www.stylelist.com/2010/02/02/love-magazine-stars-katemoss-naomi-campbell-and-six-othersupermodels-naked/.
2 A tese foi transformada em livro e publicada pela Casa do Psicólogo em 2000, com o título Estratégias de investigação em psicanálise.
3 “Na década de 1960, Hélio Oiticica criou o Parangolé, que ele chamava de ‘antiarte por excelência’ e uma pintura viva e ambulante. O Parangolé é uma espécie de capa (ou bandeira, estandarte ou tenda) que só mostra plenamente seus tons, cores, formas, texturas, grafismos e textos e os materiais com que é executado (tecido, borracha, tinta, papel, vidro, cola, plástico, corda, palha) a partir dos movimentos de alguém que o vista. Por isso, é considerado uma escultura móvel”. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%A9lio_Oiticica.
4 “When movie star Marilyn Monroe, asked in 1953 what she wore at night, famously replied, Five drops of Nº 5.” Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Chanel_No._5.

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