Services on Demand
article
Indicators
Share
Ide
Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo Aug. 2011
EM PAUTA - AMORES
O milagre do amor1
The miracle of love
Thaïs Wense de Mendonça Cruz*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP
RESUMO
Este trabalho é um estudo sobre o amor examinado em sua evolução, que acompanha o desenvolvimento psíquico do homem tanto do ponto de vista de sua filogênese como de sua ontogênese. Partindo do ponto de vista da psicanálise, que compreende na soma de libido manifesta em sua impulsividade sexual a primeira manifestação do amor, esse trabalho busca acompanhar os desdobramentos da manifestação desse sentimento que lança o indivíduo fora de si em direção ao outro. Para tanto, o veículo é um estudo sobre o papel da poesia na vida humana e de como ela é instrumento e veículo para o desenvolvimento do amor.
Palavras-chave: Amor, Impulsividade, Sublimação, Poesia.
ABSTRACT
This is a study about love examined in its evolution that accompanies the mental development of man from the point of view of their phylogeny and ontogeny. From the point of view of psychoanalysis, that comprises the sum of libido manifests itself in his sexual impulsivity the first manifestation of love, this paper tries to follow the development of the manifestation of this feeling that throws the guy out of his mind toward one another. To this end, the vehicle is a study on the role of poetry in human life.
Keywords: Love, Impulsivity, Sublimation, Poetry.
Pensar o amor remete às primeiras experiências da relação do homem com a própria natureza.
A psicanálise oferece uma explicação para a emoção que denominamos amor, e é dessa definição que partirei para, em seguida, tentar encontrar alguns desdobramentos desse sentimento tão complexo.
Ao estudar o que está por trás da manutenção de uma estrutura grupal, Freud (1921/1976) encontra várias explicações para o fenômeno de coesão de um grupo. Autores diversos nomeiam esse fenômeno de "ansiedade social", "contágio", "sugestionabilidade", enfim, diversos nomes para estados de fascinação hipnótica. Indo em busca do que está por trás do fio da sugestionabilidade, Freud encontra que existe aí um desejo muito intenso a ser realizado. Entende que o que movimenta o desejo é a energia da libido, ou seja, "instintos que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido sob a palavra amor... um amor sexual cantado pelos poetas" (Freud, 1921/1976, pp. 115-117).
Nesse sentido, o homem sempre viveu mergulhado nas raízes libidinais do amor. Tanto do ponto de vista de sua pré-história filogenética, como também da sua ontogênese individual quando é extraído da mãe e se desenvolve.
Do ponto de vista do homem primitivo, penso que provavelmente a compreensão de seus sentimentos era confusa, ele vivia mergulhado em seus afetos, e a vida mental era incipiente. Era preciso ter uma vida mental externa a ele, que funcionaria através de rituais externos para conter os afetos e os impulsos que pediam satisfação imediata. Esse amor primitivo é uma energia emocional que sai do homem lançando-se na natureza, arrastando o indivíduo em busca de satisfação. Essa impulsividade é, entretanto, embora muitas vezes violenta uma forma de relação ou vínculo entre seres, mesmo que breve.
Compreendi com Freud (1921/1976) que essa energia caprichosa, feixe de libido chamado amor, em sua busca de satisfação, nunca se detém. Contorna todos os obstáculos, contendo-se apenas para aguardar o momento propício para voltar a se manifestar sob os mais esquisitos ou agradáveis disfarces, podendo chegar ao cúmulo de sublimação conhecido pelo termo "autossacrifício". A sublimação nem sempre é a renúncia a um desejo, ela se aproxima por vezes mais da realização desse mesmo desejo, em uma esfera idealizada, como é o caso da renúncia.
A sublimação vem aliviar o homem de seu fardo de satisfazer as exigências pulsionais excessivas, pois "os instintos diretamente sexuais incorrem numa perda de energia" (Freud, 1921/1976, p. 174). Parece-me que se desenvolver no sentido de aprender a controlar os instintos sexuais em sua manifestação imediata faz parte do projeto geral da natureza em nós. Desse ponto de vista, os instintos amorosos sublimados atribuem ao sentimento amor uma nova função, que é a de conduzir o indivíduo a criar vínculos com o objeto amado, e isso é uma grande vantagem para o processo de autopreservação e de passagem do instinto para o pensamento.
Ao falar das primeiras tentativas do homem de obter fogo, Bachelard (1938/1989b) diz que a fricção é o primeiro ritmo natural experimentado pelo homem em sua ação; certamente trata-se do ritmo do ato sexual que nessa ação é descoberto. Pode-se depreender daí que todos os outros ritmos que o homem reproduz tenham suas raízes nesse ritmo primeiro.
O controle do ritmo, portanto, é uma conquista importante, pois é caminho para o controle do movimento dos pensamentos, criando espaços psíquicos em que se pode repousar e pensar. Em sua tentativa de produzir fogo, de conhecer seus segredos, Bachelard (1938/1989b) descreve o homem primitivo esfregando uma madeira seca nas ranhuras de um pilão, pacientemente, e nessa ação ele se distancia da imediatez da satisfação de seus instintos, certamente muito intensos, e assim delineia um espaço em que pode experimentar mentalmente o misturar-se ao fogo que deseja produzir. Daí surgem os primeiros desdobramentos de uma imaginação que brota em torno da persistente carícia entre as madeiras, ele aprende com ela a acariciar, e descobre que a paciência e a delicadeza transmitem fogo à madeira e, quem sabe, a seus objetos de desejo!
Entre o maltrato da vida selvagem e a possibilidade de melhorá- la, insere-se, além da produção do fogo, o trabalho e a criação de ferramentas. Nesse passo Bachelard constata que "a idade da pedra lascada é a idade da pedra maltratada, enquanto que a idade da pedra polida é a idade da pedra acariciada" (Bachelard, 1938/1989b, pp. 36-37). Depois de descobrir os segredos do fogo e aprender a dominá-lo, o homem primitivo pode se dedicar a tratar carinhosamente outros materiais, aprimorando as artes delicadas que induzem a um pensamento lento e mais penetrante. Progressivamente, a mão acariciante do homem alisador de pedras ensina-o a amar tanto essas pedras que ele as manuseia pacientemente, polindo suas arestas, ajudando- -as a tomar forma, e também a amar tecidos mais moles feitos de carne, como ele mesmo. Possivelmente, por associação, seus órgãos vão se tornando mais maleáveis aos toques delicados da mão acariciante que à violência da mão que lasca. O nosso homem aprende enfim que a violência arrebenta e a delicadeza molda e dá formas. Não esqueçamos que a idéia da pedra bruta que desperta ao toque amoroso é atribuída também ao coração humano, em muitas passagens literárias.
Secretamente o homem, enquanto trabalha, acredita que dentro da pedra inerte dorme uma força capaz de trazer a vida de volta, de curar, de fazer brotar uma forma. Despertá-la é se apossar desse poder. O caminho da busca de correspondências o leva à descoberta de si. Entre o fogo e sua sensualidade, entre as pedras e seus objetos de desejo, tendo a si mesmo como um deles, o homem necessita dos valores sensuais, pois apenas os valores sensuais, primeiras manifestações de amor, encontram correspondência entre os objetos, estabelecem relações.
Perceber e dar atenção às emoções são um novo estágio de desenvolvimento. É um primeiro passo para se pensar, destacar- se da experiência e debruçar-se sobre ela, nomear e refletir sobre as relações e correspondências descobertas. Desde cedo o homem busca sem saber, sente sem sentir, anseia por repetir sensações de satisfação que podemos, de acordo com Freud (1921/1976), reunir sob o nome amor. Também diz ele que "a felicidade é a satisfação posterior de um desejo pré-histórico, um desejo da infância" (Freud, citado por Jones, 1961/1979, p. 333). As primeiras experiências de amor enraízam-se mesmo na infância e, conduzidos por elas, nós nos lançamos em busca de uma satisfação antiga que significa a felicidade.
Toda a natureza, com a exuberância de suas flores e animais, é um universo em busca de ser notado, em um sentido primitivo de encontrar satisfação para si, ou de ocultar-se a fim de se preservar da satisfação invasiva e destrutiva dos outros. A natureza é como o jovem Narciso, que põe toda a sua libido em si mesmo, e isso se dá como primeira possibilidade de amor. O bebê-Narciso, portanto, longe ser um ser mitológico extinto, é um ser em potencial à espera de onde possa se refletir. É como uma gema de ouro toda envolta em uma ganga grosseira que a torna irreconhecível, à espera de uma pedra de toque (um elemento mãe) que o reconheça e acredite no material precioso em seu cerne.
Narciso é a pré-ciência de si mesmo encontrada em toda a natureza, inclusive em nós na forma do bebê. Ao operar a experiência do ver e ser visto, descrita como no mito de Narciso, o bebê adquire um duplo de si. Esse duplo de si é o primeiro desdobramento que dará origem a todos os outros possíveis, à imaginação que vibra, que desperta pelo toque da mãe, penetrando na temporalidade. Esse duplo de si é a primeira forma poética para daí desdobrar-se todo o universo particular daquele ser que nesse momento nasce como indivíduo.
Ao receber pelo toque ou olhar da mãe um reconhecimento de si, abre-se no bebê um espaço psíquico, lugar do imaginar, é sua função poética que começa. Winnicott lança a pergunta "O que vê o bebê quando olha para o rosto da mãe?" (1971/1975, p. 154). Ele sugere que o bebê vê a si mesmo, ou melhor, ele vê "aquilo com o que ela se parece e se acha relacionado com o que ela vê ali" (1971/1975, p. 154). Então podemos pensar que o bebê se vê através do olhar da mãe, toma emprestado uma função do olhar da qual ele ainda não se apropriou. Uma função poética porque induz a um desdobramento da realidade material em um duplo imaginado.
Com isso quero dizer que a mãe tem a função de "dar ao objeto real (bebê) o seu duplo imaginário, o seu duplo poético. Esse duplo poético é imediatamente criador, e é assim que um universo cresce como uma imagem em expansão" (Bachelard, 1960/1988, p. 168). A mente desperta como um órgão do sentido interno que se imagina sob a ação da mãe.
Imagino que a criança colhe gotas de seiva da emoção da mãe, como a percebe, para formar o duplo de si de acordo com essa emoção que desperta a sua própria. Isso é somente o começo de uma germinação lenta e densa, oculta sob os cuidados materno-infantis aparentes. É nesse espaço do poético que começa a aparecer um lugar em que os mundos internos e externos estão bem próximos, talvez um ponto de interpenetração, o lugar em que a mente tem sossego suficiente para amar, pois o pensar calmo é condição para se amar.
Na calma se ama e o amor move a imaginação. Imaginar é o começo do fazer poesia. Novalis diz que a "poesia é como que a chave da filosofia" (1988, p. 121), pois ela estabelece ligações entre os objetos e as dissolve também. Fazer poesia é o aprendizado de ler o espírito encerrado nas palavras, o bebê-poeta trata as letras com seus órgãos dos sentidos, captando-lhes as vibrações. Ao começar a usar sua função poética para criar um mundo imaginado, o bebê começa a experimentar o mundo externo com mais liberdade; é o primeiro passo para sair da mediação materna.
Depois de ter sido esfregado e espremido, tendo seus ossos deslocados para passar pelo canal de parto, o bebê pode sentir- -se como a pedra lascada do homem primitivo, assim ele desconfia da existência de uma força modeladora da substância em que ele flutua. Em outro momento, algo ou alguém se debruça sobre ele, ou ele se debruça sobre algo ou alguém, ele vê e é visto, ele sente e é sentido. Essa imagem de si no outro e do outro em si não está nunca completa, ela se metamorfoseia sugerindo que, como o Narciso de Bachelard (1942/1989a), sua beleza em formação é contínua e aí se insere a esperança, enquanto capacidade de lançar pontes sobre o vazio. Ele, o bebê, para sempre tem esperança de encontrar, do outro lado do espelho, o eco de um objeto amado que ele pressentiu centro de seu paraíso.
Um olhar amoroso sobre a criança é o mais desejável dos eventos em uma vida, o espelho d'água assim sorri para o pequeno Narciso que se mira pela primeira vez. Esse olhar pode dizer "Você é lindo, sou a mais abençoada das criaturas por lhe ter dado à luz...". O pequenino pode responder movimentando as perninhas e tentando esticar os bracinhos enovelados e abrir mais os olhinhos úmidos de líquido amniótico, em uma sensação de exultação, como certamente sente uma plantinha quando o sol a cobre pela primeira vez com sua luz. É um primeiro "eu me amo".
Mas, ai da humanidade! Nem sempre é assim... O olhar que ilumina também lança sombras! Muitas vezes, o espelho é de medo e desconfiança mútuos, não promete continuidade, muito menos de prazeres. Parece mesmo ocultar algo terrível sob a lama da água toldada de sentimentos mal experimentados, de mães e cuidadores ansiosos e amargos e de bebês comprometidos em suas capacidades de receber.
Entretanto, sabemos que entre os extremos da luz e da sombra há uma infinidade de nuances. O amor não se dá mesmo na forma perfeita nem em sua afirmação nem em sua negação, pois somos seres do mundo da relatividade. Compreendi com Bachelard que, "graças às sombras, a região intermediária que separa o homem e o mundo... é uma região que amortece a dialética do ser e do não ser" (1960/1988, p. 161). A mente se movimenta pela dúvida ou ambigüidade, o processo de pensar é comparável ao tecer. As barras do tear são os dois primeiros objetos de amor: pai e mãe, o tecido que se forma entre eles é o pensamento, a imaginação. Sem a ambigüidade, a naveta do tear do pensamento para de se movimentar.
Seguindo o sonho do belo Narciso de Bachelard, seja na situação favorável ou na desfavorável, o jovem diz: "Sou tal como me amo" (1942/1989a, p. 25). A carícia do olhar da mãe ou de alguém que se debruçou sobre o bebê, com amor ou desamor, em suas infinitas nuances, deu-lhe então um primeiro esboço de si traçado pelo movimento do olhar e pelas sensações emocionais assim transmitidas. Cabe à criança acreditar, ou não, naquele esboço inicial do duplo de si, rabiscado pelo que ela captou naquele olhar. Esse duplo, a imagem de si, irá acompanhá-lo, vertendo apreciações sobre o mundo e sobre si mesmo, podendo reformular-se a partir de novas experiências mais favoráveis, ou não, ao longo da vida.
Temos, pois, que a forma mais primitiva (no sentido de antiga e primeira) de conhecimento entre duas pessoas se dá através do amor. E que todas as outras formas e recursos com os quais alguém conhece algo ou alguém são derivados dessa primeira. Já aparece no registro bíblico o reconhecimento do conhecimento-amor em sua forma material e concreta. Um homem conhece uma mulher ou uma mulher conhece um homem quando um tem relações sexuais com o outro, ou seja, quando entre eles ocorre uma troca de substância de tal sorte que uma fertilização possa ter lugar.
O amor é, nesse sentido, um encontro criativo e fértil, um conhecimento cujo resultado é a geração de algo, e isso se estende desde a produção orgânica de um filho até o amor em estado mais sublimado de poesia ou princípio vivificador da mente. "Poetar é gerar" (Novalis, 1988, p. 122). Nesse sentido, fazer poesia é vivificar, dar vida a algo. De acordo com Novalis (1988), depois vem à teorização sobre a poesia e isso é a filosofia. Podemos depreender daí que fazer poesia é a própria matéria do pensar, é a sua pré-ciência.
Tendo início na atração instintiva entre os seres, com o propósito de satisfação imediata, o sentimento amoroso se desdobra por não caber em si. A imaginação que germina impulsionada pelo desejo de ligação esforça-se em seus desdobramentos, refinando os impulsos pulsionais como o fazem as plantinhas para terminar seu desenvolvimento em flores e frutos, mas tudo vai depender de que sua seiva seja sutilizada, pois a seiva que alimenta as raízes e o caule não é a mesma que alimenta as flores, pois esta é uma seiva filtrada diversas vezes. Com isso quero dizer que o amor tem seus estágios de desenvolvimento.
O indivíduo criado a partir das experiências primeiras de amor de um ser que cresce passível de transformações constantes, sujeito aos acasos naturais, mantém-se mais ou menos coeso, e mais ou menos constante na persistência de existir, a partir de uma crença interna: eu me amo e, mais adiante, sou capaz de me esvaziar de mim mesmo, ser fora de mim e partilhar esse amor com os outros. E essa capacidade, descrita por Novalis como "ser fora de si" (1988, p. 49), de estar com consciência além dos sentidos, é a condição de amar e não ser apenas um animal.
Tudo isso faz parte da experiência de amar-conhecer-desenvolver, contornando os obstáculos da saída de si para se relacionar, se expandir. Esses meandros seguem o percurso da imaginação, os mesmos descritos por Freud na gramática dos processos primários da construção dos sonhos que "criam a imaginação" (1900/1972, pp. 629-630). A energia amorosa está onde está reunido um feixe de pulsões libidinais que deslocam, condensam, estabelecem relações de compromisso entre diversos elementos a fim de construir imagens; esses processos mentais internos de imaginar são mais bem alimentados pelo indivíduo quando ele encontra em outro um objeto de amor, uma inspiração.
Quando isso ocorre no rol de associações da imaginação individual, pela própria influência do encantamento-amor, percebe- se uma abertura, uma ferida mesmo por onde podem penetrar os sonhos e desdobramentos do objeto de desejo. A substância da libido de ambos se mistura formando anastomoses, construindo tecidos comuns que vão representar imagens novas, compartilhadas. Assim se estabelece um par amoroso e outro duplo poético: nós nos amamos.
É mesmo necessário, para compreender os percursos do amor, um retorno à infância da filosofia, em que ela está misturada com a poesia e é sua ferramenta de conhecimento. O amor pode mesmo transformar o homem que ama em poeta e mesmo em filósofo, sem que este passe por nenhuma academia, e isso porque o amor nivela aquele que quer conhecer no mesmo patamar de seu objeto de conhecimento. Novalis fala que "a separação de poeta e pensador é apenas aparente – e em detrimento de ambos" (1988, p. 24).
Podemos experimentar o amor em todas as dimensões que conseguirmos. Entretanto, pensar o amor sempre na sua forma mais imediata, mais material, é uma tentativa de privar do amor todos os seus mistérios, esvaziá-lo de sua qualidade de intangibilidade. Cada mistério que é esgotado representa a morte de um sonho. É preciso se reaprender a conhecer, sem esgotar o objeto, sem destruí-lo. Se todos os mistérios fossem revelados, o que teríamos a oferecer a nossos filhos? O amor em seu exercício dá margem ao conhecimento e ao reconhecimento.
A pressa predatória contemporânea de tudo desvendar tem levado de roldão também o amor, como bem descreve Bauman em seu livro Amor líquido: a cultura consumista generaliza tudo de modo que até o amor se quer "o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro e a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total do dinheiro... construir a experiência amorosa à semelhança de mercadorias" (Bauman, 2003/2004, pp. 21-22). Nesse processo não há espaço para adquirir intimidade e essa é a condição para o homem existir. A sensualização excessiva do amor não conduz ao próprio descarte do homem?
A proposta que flui da modernidade da comunicação é, portanto, uma espécie de manifestação de barbárie: sedução, competição, posse, satisfação imediata, retaliação e abandono. Para aguçar o poder de sedução e a intensidade da satisfação sensual se sensualiza o amor ao máximo. E como todo excesso compromete o resultado, essa forma de amor é a promessa de algo fadado a não acontecer... Uma performance sexual capaz de intensificar ao máximo o gozo tem como frequente resultado exatamente o oposto: insatisfação e sentimento de incapacidade de alcançar expectativas, de fracasso.
O Iluminismo outorgou ao homem a autoridade de objetivar o mundo sem considerar que a vida precisa da penumbra para se autogerar. Já o Romantismo felizmente traz a proposta de conhecer aceitando as condições do objeto, ou seja, muitos fenômenos só existem envoltos em penumbra e em mistério; é preciso, pois, aceitar a relatividade do conhecimento para não matar o objeto. Conhecê-lo na penumbra, sem desnudá-lo completamente. Reconhecer que o corpo, primeiro objeto de desejo, é apenas a penumbra em que se oculta à mente e que, como ensina São Paulo, "se alguém pensa que sabe alguma coisa, ainda não conhece nada como convém conhecer" (1 Cor, 8, 2). Ele chega a concluir que só se conhece algo através do amor.
Entretanto, entre os dois extremos do amar, com os sentidos externos buscando intensificar sensações e/ou amar com o sentido interno do fazer poesia a dois, há uma descontinuidade. Entre a superfície de um ser e sua profundidade existem estágios com hiatos a serem transpostos. Experimentar a vida não muito além da superfície é condição da maioria de nós. Poder experimentar a vida também em profundidade não é algo que se adquire seguindo um fio linear com a superfície. O conjunto do reino animal evolui em descontinuidade entre as espécies, ou seja, "a natureza dá saltos" (Jacob, 1970/1983, p. 116), e entre duas situações diferentes ela deixa hiatos de separação. Para transpor os hiatos é preciso lançar pontes sobre eles. A evolução da vida mental se dá nas mesmas regras da evolução natural, é preciso transpor barreiras usando a imaginação.
Imaginar, ir além da superfície, portanto, implica a sutilização da seiva libidinal que precisa sair da acerbidade da terra, da água e do fogo violentos, das substâncias primeiras. O fogo domesticado dos pensamentos aquece o indivíduo sem fritar, e daí, com palavras suaves, o conduzem a partilhar o destino das criaturas do ar e do éter.
Entendo que, partindo da acerbidade das primeiras paixões, o amor busca sempre algo que vai além de si, e essa condição é insustentável. O amor idealizado do Romantismo pertence ao reino do absoluto e a transição para o reino relativo em que habitamos implica fragmentação, dualidades. Nesse passo, nós, duplos de uma realidade inacessível, conhecemos apenas o amor limitado em suas múltiplas facetas.
Com avidez esfomeada diante de qualquer aceno de amor, nós nos lançamos como mendigos querendo esvaziá-lo, querendo trazê-lo à luz para melhor conhecê-lo, pô-lo sob controle e deixarmos de sofrer com sua prolongada ausência, mas tudo o que conseguimos, longe de habitar no amor, é destruir as formas pelas quais ele se insinua para habitar entre nós. Para sobreviver, o amor, como tudo o que pertence ao reino do absoluto, precisa do véu de mistério que nunca pode ser desvendado completamente, sob pena de desaparecer. Retirado o véu, o amor idealizado vive de sua negação ou incapacidade de existir.
Por não suportar o amor, o homem fragmenta seu mundo e a si mesmo, mas, mesmo assim, o amor continua habitando em cada um desses fragmentos. Funcionando como um corpúsculo, isolado pela física, que se converte em um centro de irradiação para um fenômeno de maior porte. Bachelard explica que o corpúsculo "tomado em seu papel físico é antes um meio de análise ou um pretexto de pensamento, e não um mundo a explorar" (1971/1977, p. 14). Comenta que a substância do infinitamente pequeno que em tudo penetra e habita só existe na relação. Esse amor, unidade infinitesimal que em tudo penetra, é inalcançável por nós, seres também do mundo fenomenológico. Porém, mergulhados em um cotidiano criador de obstáculos do senso comum, ficamos apenas com as emanações do amor, com as sombras da sua irradiação.
Entretanto, "não se pode aprender a amar como não se pode aprender a morrer" (Bauman, 2003/2004, p. 17). Esses dois eventos que ocorrem na história humana são dos mais radicais, no sentido de que aparecem a partir do nada, "da escuridão do não ser sem passado e sem futuro" (p. 17), desnudando todas as futilidades. Tem o caráter mesmo de um corte epistemológico ou ruptura de padrões na vida de uma pessoa, ou seja, introduz um germe de descontinuidade no fio linear da história do sujeito, desbaratando tudo o que era conhecido.
O que restará de nós se o amor só se dá a conhecer pela entrega? É preciso nos contentar com alguns momentos de entrega relativa, suportando (para quem consegue) as breves irradiações do amor e suportar não querer conhecer mais do que se pode naquele momento. Esse difícil equilíbrio entre a entrega total que induz a estados de "santa loucura" ou fugir do amor como os diabos da cruz é o fio por onde corre a humanidade para o melhor e para o pior.
Enquanto não alcança a quietude mental necessária para perceber as irradiações do amor e deixar que elas penetrem a partir dos outros, a humanidade tenta inventar um amor que não sente, pois admitir que não se tenha amor é o mesmo que admitir que a vida não tenha sentido algum. Sem amor, a organização que damos à nossa existência aparece como uma forma vazia.
A mínima vivificação de algo ou alguém é a penetração de uma partícula de amor. Entretanto, a maioria de nós inventa o amor, como aparece na canção de Cazuza: "O nosso amor a gente inventa/ Pra se distrair/ E quando acaba, a gente pensa/ Que ele nunca existiu" (Cazuza et al., 1987). O vazio de amor se exprime aí na descoberta rápida de que o amor inventado tem algo de simulacro como toda invenção. Em outra música de Cazuza aparecem à fórmula mais utilizada para disfarçar a falta de amor, as hipérboles: "Te trago mil rosas roubadas// Jogado aos teus pés/ Eu sou mesmo exagerado/ Adoro um amor inventado" (Cazuza et al., 1985).
Que tipo de emoção está por trás desse arrebatamento? O amor precisa de gotas de seiva de uma emoção para com isso criar o corpo dessa emoção. Para Bion a hipérbole é, por vezes, "projeção de hostilidade" (1965/2004, p. 183). Parece-me que, no caso das mil rosas roubadas, o espírito da flor se retirou deixando para trás sua sombra fragmentada.
Voltando à relatividade do possível, o amor no cotidiano humano precisa ser renovado todos os dias como um jardineiro o faz no cultivo de suas flores. O amor humano é frágil tentativa de reeditar o "paraíso perdido" e precisamos de poesia para nos alimentar, por vezes, de seus eflúvios.
Como cantam Villa-Lobos e Dora Vasconcelos (1950/2001):
Acorda, vem ver a lua.
Que dorme na noite escura.
Que surge tão bela e branca, derramando doçura...
Clara chama silente. Ardendo o meu sonhar...
Para os hindus a lua simboliza a mente calma que precisa ser alcançada para termos instantes de beatitude. É o fogo frio que move os pensamentos que, como já mencionei, ajuda o homem a adoçar a acerbidade de suas paixões, introduzindo-o em elementos mais rarefeitos em que habitam os pensamentos e as palavras construtoras de poesia. A poesia se introduz na vida cotidiana do homem comum equilibrando seus afetos, tornando-o amável. Sem ela caímos na acerbidade das hipérboles, na multiplicação dos objetos, corremos até o risco de alimentar o ódio.
Será que a definição de amor romântico na atualidade está decididamente fora de moda?
Para Bauman assim o é, "em função da radical alteração das estruturas de parentesco às quais costumava servir" (2003/2004, p. 19), que apregoavam fidelidade e compromisso forçados. Entretanto, sinto-me aqui convidada, por mim mesma, a fazer a defesa do amor que, após um sufocamento pela regra social imposta "até que a morte os separe", viu-se destituído de sua livre natureza de penetrar onde pode e quer silenciado e substituído por um "amor inventado".
O amor, contudo, existe e é possível vê-lo nas situações mais pueris. Ouvi outro dia o relato de um colega sobre sua netinha, que ensaiava as primeiras palavras da seguinte forma: "Bola". Aponta para a mãe: "Bola". Aponta para a lua: "Bola". Aponta para a luz: "Bola". E assim foi tecendo, em um mesmo fio, certamente em tramas diferentes, visíveis apenas para ela: o seio, o leite, a luz e a lua... Quem sabe se é somente nessa idade que nos aproximamos do amor "eterno"? "Bola", aí, parece ser um símbolo capaz de significar a totalidade.
De qualquer forma, é preciso a presença física dos objetos para que estes sejam envoltos em um fio de sentido de onde se recusem a sair, "dar liga", pois tudo o que é enovelado no fio amoroso fica imantado, se concentra e se unifica, dando às nossas mentes, que isoladas não podem nada explicar, um sentido para aquilo que habitualmente elas chamam de "milagre".
Referências
Bachelard, G. (1989a). A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1942).
Bachelard, G. (1989b). A psicanálise do fogo. Lisboa: Litoral. (Trabalho original publicado em 1938).
Bachelard, G. (1988). A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1960).
Bachelard, G. (1977). Epistemologia. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1971).
Bauman, Z. (2004). Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 2003).
Bion, W. (2004). Transformações. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1965).
Cazuza, Neves, E, Leoni. (1985). Exagerado. In Exagerado, Som Livre, Brasil. (Música).
Cazuza, Rebouças, J, Meanda, R. (1987). O nosso amor a gente inventa (estória romântica). In Cazuza, Só se for a dois, Universal Music Brasil, Brasil. (Música).
Freud, S. (1976). Psicologia de grupo e análise do ego. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 18, pp. 89-169). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1921).
Freud, S. (1972). A Psicologia dos Processos Oníricos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 5, pp. 543-648). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900).
Jacob, F. (1983). A lógica da vida: uma história da hereditariedade. Rio de Janeiro: Graal. (Trabalho original publicado em 1970).
Jones, E. (1979). Vida e obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Guanabara. (Trabalho original publicado em 1961).
Liszt, F. (1850). Sonho de amor (Noturno n. 3, Liebestraume). (Música).
Novalis (Friedrich von Hardenberg). (1988). Pólen: fragmentos, diálogos, monólogo. São Paulo: Iluminuras.
Villa-Lobos, H. & Vasconcelos, D. (2001). Melodia sentimental. In H. Villa-Lobos, A floresta do Amazonas, Kuarup Discos, Brasil. (Trabalho original composto em 1950). (Música).
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971).
Endereço para correspondência
Thaïs Wense de Mendonça Cruz
Rua Estela Sezefreda, 43
05415-070 – São Paulo - SP
tel.: 11 3061-3802 | 11 9633-8226
E-mail: thaiswense@gmail.com
Recebido: 17/04/2011
Aceito: 04/05/2011
* Psicóloga pela Universidade Federal da Bahia. Mestra e doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
1 Este trabalho se fundamenta em estudos e em minha experiência clínica e pessoal.