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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.34 no.52 São Paulo Aug. 2011
ARTIGOS
Aura das palavras
Aura of the words
Alessandra Affortunati Martins Parente*
Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP)
RESUMO
Não é novidade que o alcance da psicanálise ultrapassa os muros de consultórios. A fim de analisar a psicanálise extramuros, a idéia de aura do filósofo Walter Benjamin é articulada ao conceito de agalma de Lacan e posteriormente algumas analogias entre a clínica psicanalítica e a produção e a fruição artísticas nos períodos moderno e contemporâneo são traçadas.
Palavras-chave: Psicanálise, Freud, Walter Benjamin, Arte moderna, Arte contemporânea, Aura, Agalma.
ABSTRACT
It's not novelty that the scope of psychoanalysis beyond the offices' walls. In order to analyze the extramural psychoanaysis, the Walter Benjamin's idea of aura and the Lacan's concept of the agalma are articulated and later some analogies between the psychoanalytic treatment and the production and artistic fruition in contemporary and modern periods are plotted.
Keywords: Psychoanalysis, Freud, Walter Benjamin, Modern art, Contemporary art, Aura, Agalma.
Belezas secretas: a aura e o agalma
Havia naquela época, ao que parece, imagens cujo exterior representava um
sátiro ou um sileno e no interior, como nas bonecas russas, havia outra coisa,
não sabemos direito o quê, mas certamente eram coisas preciosas.
Lacan
O conceito de aura é encontrado em diferentes contextos da filosofia benjaminiana, mas se refere principalmente ao culto das obras de arte, que passou a ocupar o lugar antes concedido ao culto religioso. Isso porque o caráter único e irreprodutível dessas obras resguarda, em sua materialidade, o instante de criação do artista, que se vincula precisamente ao momento de manifestação de sua genialidade e de um evento sublime – a própria criação –, ligado, por conseguinte, a algo que transcende a racionalidade comum. Daí a comparação do culto religioso com a apreciação das obras de arte.
Para Walter Benjamin, a aura emana de um enigma que envolve o objeto, como se este estivesse encoberto por um véu translúcido ou por um estojo. A distância intransponível, imposta pelo véu, interdita o desvelamento total do objeto e arma um jogo dialético entre a revelação e o ocultamento, diante do qual o indivíduo se enreda, procurando aproximar-se do que está fora de seu alcance. Aquilo o cerca e lhe escapa, é fugidio. Quando envolvido pela aura, o alcance do objeto se dá pelo desvio, de forma indireta, e, ainda assim, jamais haverá sua captura total e completa. Na experiência aurática, o olhar expande as coisas ao infinito (Baudelaire, citado por Palhares, 2006, p. 93) ao mantê-las em uma dimensão que preserva a distância. Para Benjamin, "perceber a aura de uma coisa significa investi-la do poder de revidar o olhar" (Benjamin, 1939/1994a, p. 140). O objeto ganha vida ao se impor a uma subjetividade, que se enriquece no preciso momento em que se estabelece uma relação. Há, portanto, uma dialética do próximo e do distante que marca a definição de aura. Mas, além disso, a aura compreende uma unicidade e uma inacessibilidade do objeto por ela envolvido, com a paradoxal peculiaridade de transformá-lo em símbolo de uma experiência possível do impossível.
Com Lacan (1991/1992) sabemos da importância que o mistério assume no processo analítico. Ele deve rondar o psicanalista, que guarda em seu interior o agalma. Em O Seminário, livro 8, sobre a transferência, Lacan elucida esse conceito. Agalma designa um ornamento ou enfeite, mas remete também à ideia da presença de uma joia ou de um objeto precioso no interior de algum recipiente. O brilho, a sedução, a beleza fugidia são os elementos que compõem o agalma. Assim como a aura, o agalma provoca um desdobramento da subjetividade devido à simultânea proximidade e distância que o objeto mantém frente ao sujeito desejante. A proximidade do objeto envolve o Imaginário do sujeito naquilo que aquele oferece de aprisionante, conhecido ou alienante. A distância, por outro lado, aponta para algo que não é possível simbolizar por completo, isto é, o Real que marca a falta ou aquilo que se denomina desejo.
Com o agalma, armam-se ciladas. Ele cumpre um papel de isca. Nesse sentido, pode-se pensar que o agalma empresta uma ordem simbólica que contorna o Real, ainda que este permaneça sempre inacessível. Assim, o agalma permite uma aproximação em relação àquilo que se mantém afastado por ser inapreensível. O agalma, que exala sua beleza, apazigua ou recompensa as mazelas decorrentes do Real.
Segundo Lacan (1991/1992), alguns truques são montados pelos deuses, que se ingerem na vida dos homens. Não podemos esquecer de que os deuses são, para o psicanalista francês, o Real. Eles interferem de forma arbitrária, injustificável e incoerente nos assuntos propriamente humanos. Com eles as coisas se lançam além do que pode ser representado, como uma espécie de estupro divino que acaba sendo mascarado por aquilo que entendemos como virtude. A impostura dos deuses penetra sem rodeios até mesmo no que há de melhor entre os homens. A interferência divina, no entanto, só pode ser revelada por intermédio do agalma de alguma coisa, que, então, se torna capaz de romper com todas as convenções. Nas palavras de Lacan: "[Os deuses] Sabiam que só podiam se revelar aos homens na pedra do escândalo, no agalma de alguma coisa que viola todas as regras, como pura manifestação de uma essência que, quanto a ela, permanecia completamente oculta, cujo enigma estava inteiramente por trás" (Lacan, 1991/1992, p. 164).
Os homens, entretanto, também pregavam peças nos deuses por meio do agalma. Lacan cita diversos exemplos de como o agalma é introduzido nas tramas da Antiguidade. O agalma cumpre esse papel de aproximar o que é distante ou até inacessível, como são os deuses para os homens ou estes para aqueles.
O par proximidade/distância aparece também no conceito benjaminiano de tempo, coincidindo com aquilo que o filósofo alemão pensa sobre a aura. Para Benjamin, o tempo supõe dois momentos simultâneos que se entrecruzam: um instante fugaz sobrevém no presente e reativa acontecimentos adormecidos do passado. Isto é, o tempo decorrido irrompe, invocado por um episódio efêmero e atual, ganhando sentidos inéditos. Ou seja, o passado não permanece inerte ao se entrelaçar com o presente. Ambos – passado e presente – alimentam-se e se transformam reciprocamente, um devido à interferência do outro. Nessa sobreposição do passado ao presente o que ocorre, portanto, é um quiasma que envolve a espacialidade dos diferentes eventos e a temporalidade inerente a eles. O objeto observado pode guardar semelhança com algum vestígio do passado longínquo, reativado por meio de reminiscências involuntárias surgidas de forma mágica, ao acaso.
Ora, não estamos aqui diante de aspectos que definem a própria transferência psicanalítica? O analista não é um outro com o qual o sujeito se relaciona no presente, repetindo ou vivendo sob nova forma afetos de um passado longínquo? Tais afetos só podem emergir a partir de um dado relacionado ao psicanalista que se apresenta de forma vívida no presente. Ao se embrenhar nos meandros do tempo atual da transferência, é o passado que se transforma.
Em O Seminário, livro 8 (1991/1992), Lacan analisa O banquete de Platão, mostrando a importância do amor e da beleza para que uma relação transferencial possa ser estabelecida. O texto de Platão descreve um cerimonial em que os participantes elegem o tema amor para tecer elogios. Na ocasião estão presentes Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Agatão e Sócrates, que chega atrasado. Ao final aparece ainda Alcibíades, cuja presença é fundamental para compor o cenário que deve elucidar o amor.
Para Lacan, a relação entre Alcibíades e Sócrates é o paradigma da transferência psicanalítica. Ambos, mais Agatão, ocupam lugar de destaque na análise lacaniana de O banquete. Sócrates preserva-se distante de Alcibíades, mesmo desejando-o. Este, por sua vez, é o representante do desejo na história. Ele entra sem convite e sem nenhum constrangimento, todo enfeitado, bêbedo e mudando completamente os jogos de cena até então vigentes. Inverte as regras do concurso, atribuindo-se a autoridade da presidência. A partir de então, o amor não é mais o tema a ser louvado, mas deve-se dirigir um elogio ao vizinho da direita. Ou seja, se é para conversar sobre amor, que seja em ato, declarando-se abertamente.
Nesse contexto, vemos que a importância dada ao agalma, inicialmente atribuído a Sócrates por Alcibíades, na verdade remete a Agatão – etimologicamente, o admirável. Alcibíades usa o termo agalma para designar aquilo que Sócrates esconde sob sua aparência feiosa ou satírica. Ele ordena: abram o sileno e verão o que há dentro. Silenos eram personagens satíricos, beberrões e feios seguidores do deus Dioniso. Mas não só. O termo designa também embalagens que têm determinado aspecto, justamente a aparência de um sileno. São pequenos badulaques da época, que serviam de caixinhas de joias, ou embalagens para oferta de presentes. Portanto, o importante é o que se encontra escondido no interior.
Segundo Alcibíades, apesar de Sócrates permanecer envolvido nesse invólucro rude e derrisório, seu interior tem aspecto bem distinto. O que ele guarda são admiráveis estátuas dos deuses ou a maravilha das maravilhas. Para ele, deter-se ao que Sócrates pronuncia causa tamanha perturbação que o ouvinte tem a sensação de ter sido golpeado ou parece se sentir possuído. Esse impacto sofrido por Alcibíades na presença de Sócrates é que o leva a considerar a existência de um tesouro nele escondido. O objeto é indefinível e parece ser precioso. Por isso, ele desperta seu desejo e fixa sua determinação em se aproximar do filósofo. Assim, declara ter vislumbrado os agalmata preciosos, de ouro, totalmente belos, extraordinários. E, diante dessa revelação, não há outra coisa a fazer senão corresponder aos desejos de Sócrates. Alcibíades sabe que ele o deseja. Entrega-se de bom grado, passa a desejá-lo. Para seu espanto, Sócrates o rejeita mais de uma vez.
Os efeitos dos agalmata são surpreendentes. Eles guardam um segredo que produz submissão às ordens daquele que os possui. Lacan sugere que há aí uma espécie de magia cativante que leva o sujeito a formular a pergunta Che vuoi? para aquele que supostamente tem a posse do agalma.
O tema da beleza indica novamente uma relação entre a aura e o agalma. Nos primeiros textos em que Benjamin procura defini- la, a aura abarca todas as coisas, podendo transparecer ou se modificar conforme o movimento do objeto. Um adereço, um invólucro ornamental ou um estojo engastam o ser ou a coisa. Como o efeito de um véu sobre o objeto, a aura esconde ao mesmo tempo em que evidencia o que está envolvido, concedendo-lhe um ar de mistério. Para Benjamin, a beleza e a relação de prazer do observador com o objeto são dadas pelo véu da aparência deste e simultaneamente pela sua essência, definida como inominável ou inexprimível. Assim, o invólucro não é um simples acessório descartável. Paradoxalmente, é o véu da aparência que revela a beleza da essência. O segredo de um esplendor não pode ser descoberto pelo levantamento do véu, que teria como consequência a própria destruição do objeto envolvido. Por isso, é possível afirmar que o mistério é parte inexorável do belo. Ele fixa a aparência e o sem expressão em um enigma que indicia parcialmente a ideia da coisa. Em suma, a definição da aura está na distância imposta pelo véu, que encobre e anuncia o belo essencial, refletido na aparência.
Esta nova definição da aura nos devolve uma vez mais a Sócrates. Este sugere que a beleza percebida nele por Alcibíades parece ter algo peculiar que a distingue de todas as outras espécies de beleza. A partir do momento em que Alcibíades a entrevê, empenha-se em trocá-la com Sócrates por algo que este deseja. Para o filósofo, entretanto, se o que ele tem é tão especial, esta troca não deve valer a pena. Há algo, porém, que merece destaque: Sócrates alerta Alcibíades para que este examine as coisas com mais cuidado de modo a não se enganar, pois onde ele vê alguma coisa, nada há.
O que Sócrates oferece ao outro é um lugar vago para que seu desejo seja ali depositado. Por isso, ele não ama. Em sua postura reservada acaba por supostamente conservar a beleza do agalma. Este permanece escamoteado sob um elã misterioso. O enigma, no entanto, não é uma armação de Sócrates, que sempre fez questão de declarar em alto e bom som: "Só sei que nada sei". Ele apenas se recusa a buscar no outro o que ele não tem. Dedica-se a buscar a verdade, e esta só pode estar presente no próprio discurso corrente. Portanto, aquilo que Sócrates deseja não está salvaguardado em alguém, mas se localiza na própria linguagem.
Para Lacan, Sócrates pode ser comparado ao psicanalista na medida em que este se oferece também vago para que o desejo do sujeito possa ser despertado. O neurótico busca a análise ao não saber o que tem. O não saber sobre si remete à tradição socrática do "conhece-te a ti mesmo". No caso da análise, o sujeito que não sabe tem como demanda, ser. O trabalho do psicanalista consiste em escutar o sujeito, fazendo de si uma espécie de recipiente oco. Também não sabe o que tem que pode servir de ímã para o outro. Mas o sujeito só fala na medida em que acredita que o analista guarda em seu interior exatamente aquilo que supriria sua falta ou realizaria. Por isso é que Lacan define o amor como um ato de "dar o que não se tem", e é justamente esse amor que permeia a relação analítica. É por meio dele que o paciente poderá aprender o que lhe falta. Perseguindo uma resposta sobre si, o paciente desemboca em sua falta.
O caráter fulgurante do agalma só existe devido a seu acesso limitado, correspondendo ao objeto parcial. O objeto parcial é o suporte do desejo humano. Só ele preserva um enigma capaz de nos fascinar. Na visão de Lacan, a função do objeto parcial é uma das maiores descobertas da investigação psicanalítica, por se contrapor a um ideal tradicional de plenitude, preenchimento ou círculo completo.
Existem outros temas nas obras desses autores que indicam coincidências profícuas. Aqui, contudo, gostaria de enfatizar alguns aspectos relacionados às artes visuais.
Psicanálise com divã e a arte moderna
As palavras também podem ter uma aura.
Walter Benjamin
Quanto mais de perto se olha uma palavra,
tanto maior a distância donde
ela lança de volta o seu olhar.
Karl Kraus
A palavra, pronunciada pelo paciente que se encontra no divã ou pelo psicanalista na interpretação, é a matéria com a qual este trabalha em seu consultório. Assim como o artista combina cores, o psicanalista amalgama uma tonalidade atribuída a um evento passado com outra experimentada no presente, descobrindo um novo matiz. O trabalho de um psicanalista clássico (Winnicott, 1965/1990, p. 208) pode ser análogo ao do pintor do período moderno. Este executa sua obra, na maior parte das vezes, em um suporte que se tornará quadro (telas ou papel, por exemplo) e o material é, sobretudo, a tinta, que pode ser composta de diferentes ingredientes. Alguns artistas modernos, como Georges Braque ou Pablo Picasso, começam a introduzir, em suas pinturas, alguns elementos diferentes da tinta, como jornal, tíquete de metrô, ou papel de parede. No entanto, esses fragmentos distintos da tinta cumprem o mesmo papel que ela desempenhava, não alterando a forma artística vigente. Se comparados aos veículos hoje existentes, os meios pelos quais o artista moderno se expressa são restritos. Por isso, a inovação permanente se dá na forma, isto é, o estilo de cada artista é que inscreve o novo na modernidade. E o estilo de um sujeito é capaz de contestar o que se torna cânone nas academias de arte. Os limites claros dessas academias deixam margem para que o traço subjetivo do artista emerja como criação, surpreendendo o público justamente na marca singular que a nova pintura instaura. O estilo se aglutina com temas ousados, nunca antes pensados como conteúdo artístico. Mulheres grávidas nuas, como em Klimt, aparecem em suas pinturas de estilo inovador, por exemplo. Além disso, para se lançar ao gesto definitivo, o artista faz esboços, testes com cores, luzes e sombras, focando sua preocupação na figura e no fundo. Ele normalmente pertence a um ambiente artístico delimitado, contra o qual se insurgirá, ou com o qual se vinculará. O caráter utópico, próprio das vanguardas artísticas, torna-se evidente nessa combinatória de elementos aqui expostos: ele emana do novo em face das convenções da tradição.
O psicanalista que preserva sua imagem invisível atrás do divã também tem um suporte delimitado e preciso para realizar o seu trabalho: o enquadre, que na psicanálise inclui não só o divã, mas horários e dias das sessões, a sala e a regra fundamental para o trabalho. A interpretação anunciada pelo psicanalista pode ser considerada análoga ao gesto do artista. Tanto este como aquele se embrenham em uma relação com a matéria da qual emerge o novo. A palavra tem corpo na medida em que é encarnada pela voz feminina ou masculina, decidida ou apreensiva, grave ou aguda etc.
Figura e fundo também são questões para um psicanalista clássico. O modo como ele se enreda com o conteúdo expresso se dá através da distinção entre conteúdo manifesto e conteúdo latente. Mostrar temas recorrentes que se repetem, assim como iluminar novas nuanças, é o que predomina em seu trabalho de interpretação. Também na relação analítica há repetição e inovação. O paciente se comporta de modo a consentir com as regras estabelecidas de antemão. Assim como o artista que repete gêneros, temas, modelos, usa materiais convencionalmente adotados pelos demais e no interior desse conjunto reconhecido como legítimo inova, o paciente chega para sua sessão no horário e dia marcados, deita-se e fala. O analista aguça sua escuta de modo a identificar, seja nos conteúdos transferenciais, seja nos relatos do paciente, aquilo que é sintomático. Mas, vez ou outra, ambos saem desse script e se lançam em gestos que rompem com a repetição fantasmática do paciente ou com as convenções estabelecidas no enquadre.
Preservado pelo divã, o psicanalista destila as palavras antes de anunciá-las verbalmente. Gestos, vestimenta ou móveis têm papel importante na psicanálise convencional, mas ainda conservam função análoga aos jornais e papéis de Braque ou Picasso. Pequenos componentes são adicionados à linguagem predominante, composta de palavras.
Com essas considerações, estou longe de querer insinuar que o caráter de improvisação ou imponderabilidade não exista na arte moderna ou na psicanálise clássica. Ao contrário, como já disse, a voz do psicanalista pode se mostrar trêmula ou mais alta do que previsto, vacilar, precipitar-se quando deveria esperar, hesitar quando deveria se manifestar. O artista idem: ao se lançar ao gesto de pintar um traço, jamais expressa exatamente o que havia imaginado. Aliás, a singularidade se manifesta justamente na expressão do desconhecido.
A extensão da arte contemporânea
Apesar de o caráter da imponderabilidade das ações humanas habitar a arte moderna, nela não se trata de enaltecer esse aspecto, pondo em evidência a precariedade e a debilidade inerentes a todo ato. A arte contemporânea, sim, enobrece a ação. Nela encontramos os mais distintos modos de o artista se relacionar com a matéria. É o fazer que está em jogo. O processo torna-se finalidade. Isto é, o artista esforça-se em manifestar seu percurso, que, como tal, não aparece de forma definitiva, mas inacabada, débil, frágil. A atividade do artista pós-moderno é transpor em matéria digna de apreciação a própria produção de sua obra. Ele põe em evidência o modo como pensa, age, manipula os objetos, distribui-os, organiza-os, incumbindo o fruidor da tarefa de pensar um fim para o que aparenta ser inacabado.
Existem artistas que manifestam a intensidade de seu processo criativo ao escolherem materiais mal-acabados ou pouco sofisticados. Thomas Hirschhorn é um exemplo. Sua obra Restore now, apresentada na 27ª Bienal de São Paulo, trazia fortes imagens de guerra lado a lado com obras consagradas da filosofia, pondo em xeque toda a cultura vigente nessa contrariedade entre a barbárie e os ápices de civilização. Sua potência, entretanto, está na forma como a obra parece ter sido executada. A impressão que o espectador tem é de que, no calor da ideia, o artista se armou de um material eficiente, capaz de dar conta de expressar seus pensamentos e sensações no momento exato em que tudo isso gritava em seu interior. O pensar em ação congela-se em cada uma das imagens construídas. Os materiais utilizados são suficientemente eficazes para acompanhar a velocidade de suas ideias borbulhantes. Fitas adesivas e objetos prontos – como livros ou martelos – são exemplos de materiais que atendem bem a essa urgência do pensar, sincronizada ao movimento das mãos que criam.
A expansão da tridimensionalidade é outro aspecto a ser considerado nas artes plásticas contemporâneas. Ao rasgar uma tela, Lucio Fontana rompeu com os limites dimensionais do quadro e descobriu novos espaços. O ato de Fontana estendeu a tridimensionalidade, antes identificada somente em esculturas, à pintura. Exemplos estão em Nuno Ramos ou Frank Stella. Com Robert Rauschenberg, colagens, que apareciam discretamente compostas com tinta em pinturas modernas, tornam-se uma nova forma de se produzir arte. A delimitação clara entre o que era escultura, desenho, pintura ou fotografia se dissipa para dar vazão a uma arte pluridimensional, sem limitações de linguagem. Por isso, o que se considera escultura hoje também esgarçou os limites da modernidade. A atenção dirigida à tridimensionalidade, ao trabalho a partir da resistência de uma pedra ou coisa do gênero, passa a ser transposta para a autonomia da obra, que deve ultrapassar qualquer intencionalidade do artista. Este simplesmente dá vazão à voz da matéria.
Após as questões sobre figura e fundo nas pinturas, que detiveram a modernidade, a carne da matéria é que se impõe tanto em pinturas como em esculturas e a própria diferenciação entre esses dois gêneros torna-se muito tênue. Essa carne não emerge na forma de representação, como ainda podíamos observar em Bacon – um moderno no século XX. O processo autodestrutivo é inerente às propriedades da matéria e o artista apenas se encarrega de oferecer um suporte para que a decomposição se revele. A matéria orgânica muitas vezes aparece em processo de erosão. Vemos isso, por exemplo, no caso de Beuys, que declara: "A natureza de minhas esculturas não é imutável e definitiva. Várias operações se dão na maior parte delas: reações químicas, fermentações, mudanças de cor, degradação, ressecamento. Tudo está em estado de mudança" (Beuys, citado por Borer 2001, p. 26).
Em suma, a amplitude do pós-moderno começa com a máxima de Duchamp de que todo e qualquer objeto é uma obra potencial e a apreciação estética só depende do olhar.
Psicanálise a passeio: a queda do agalma
E eu viajo para conhecer a minha geografia.
Victor Hugo, citado por Walter Benjamin
Evidentemente a ruptura do enquadre tradicional não é nova na psicanálise. Após a Segunda Guerra Mundial já constatamos muitas formas revolucionárias de trabalho. O próprio Ferenczi, contemporâneo de Freud, questionou os limites técnicos do mestre. A metapsicologia de pós-freudianos, contudo, quase sempre se inspira nos resultados de uma prática tradicional. Nesta a palavra calcada na transferência ganha destaque.
Alguns fragmentos de uma historieta clínica relatada por um acompanhante terapêutico expõem de forma breve mudanças no enquadre clínico e suas consequências para a psicanálise. Aconteceu durante uma viagem. Diante de uma cadeia associativa delirante, Santos (2006), AT, consegue interromper o impenetrável delírio de sua paciente ao apontar um belíssimo pôr do sol que surge através da janela do carro. Na sequência dos acontecimentos, o nervosismo e a agitação dessa mesma moça a fazem avançar um sinal vermelho. Santos expressa sua indignação, mandando-a parar e lhe ceder o volante. O conteúdo do delírio anterior da paciente era sua família. A partir desse momento, desloca-se para Santos, que poderia contar ao psiquiatra o fato ocorrido. O que ela tinha medo era de que este a proibisse de dirigir, pois a moça já havia provocado situações semelhantes.
Assim como as técnicas de reprodução provocam, para Benjamin, a queda da aura, a extensão da atividade do psicanalista para outros espaços que ultrapassam o consultório resulta na queda do agalma, que supostamente estaria em seu interior garantido pela distância mantida no enquadre – sobretudo pelo divã – mesclada à proximidade, que se estabelece no esforço que analista e paciente fazem de mergulhar no discurso escutado por um e proferido pelo outro. A exposição do psicanalista a situações que diferem daquela dada pelo modelo clássico muitas vezes retira a distância necessária para que os efeitos do agalma emanem dele.
Sem o agalma concentrado no analista, a transferência fica diluída em diferentes figuras e outros elementos compõem as cenas analíticas, como o pôr do sol do fragmento clínico. A ação do psicanalista também deixa de ser apenas a escuta e a palavra proferida e ganha uma amplitude insuspeitada para os moldes convencionais, como a bronca dada por Santos em sua paciente. Nesses modelos diversos, a situação analítica (Fédida, 1991) se instaura, mas o agalma aparece em outros suportes.
A queda da aura, com o advento do cinema e da fotografia, liberta o objeto do domínio da tradição. A multiplicação da reprodução substitui a ocorrência única pelo acontecimento em massa, emancipando-a de sua existência parasitária no ritual. A fotografia e a câmera de filmagem podem, por exemplo, salientar aspectos do original acessíveis apenas pela lente regulável, multiplicando infinitamente as possibilidades de perspectivas a que o olhar pode ter acesso. Além disso, a capacidade de reprodução artificial das máquinas transpõe cenários, sons, personagens para lugares bem distantes de sua aparição original. A parte misteriosa e inacessível do objeto autêntico, que o provia de brilho e luminosidade, se rompe, tornando-o opaco, sem a cintilação anterior.
No caso de uma nova modalidade de trabalho psicanalítico, como a de um acompanhante terapêutico, o profissional torna-se veículo, permitindo ao paciente deslizar sobre objetos que integram seus encontros. Embora partam da linguagem – sem linguagem um pôr do sol não é pôr do sol –, tais objetos não encarnam palavras, mas têm outras formas e, no caso, se espalham pela cidade, percorrida por ambos. O agalma foi transportado para outros locais e o analista atravessa o mundo nessa busca com seu paciente. Outras vezes, o acompanhante terapêutico torna-se a matéria com a qual deverá trabalhar ao encarnar no corpo ou na vestimenta suas interpretações e lançar-se em um enredo incerto, no interior do qual é obrigado a performar uma cena ou criar personagens. Criar performances ou happenings significa, então, vestir, colorir ou moldar as intervenções analíticas. A carne do analista entra como material que protagoniza seu trabalho. Os órgãos respiram intensa ou calmamente, a pele transpira, a barba denota desleixo ou acuidade, rugas marcam tempo, gorduras transbordam, unhas feitas ou comidas compõem os gestos das mãos. Nesses cenários, a palavra torna-se somente mais um dentre tantos outros ingredientes da linguagem.
A desgastada polêmica sobre o que é arte na contemporaneidade transfere-se, assim, para o âmbito da psicanálise, que tem os limites de seu ofício posto em xeque. O analista deixa de ser apenas um feixe de projeções, o suposto reservatório do agalma, o polo que servirá para repetir as figuras do passado. Aparece com carne própria, e o que ele faz com ela, como a move, a veste, em suma, como ele lhe confere vida, é foco de atenção do paciente. Este deixa de imaginar a partir de indícios sutis do presente, mesclados com os traços mnemônicos do passado, o que vem a ser aquela figura que o acompanha nos percalços de seu sofrimento psíquico. Trata-se agora de observar esta pessoa em ação, sendo, e daí imitá-la, segui-la, ouvi-la, contradizê-la, irritar-se com ela, fugir dela, encontrar-se ansiosamente com ela. E um AT, que não deixa de ter o infantil como guia de sua escuta, não pode se limitar a apontá-lo, pois também está empenhado em ser e acontecer em determinado espaço. A rua é local de trabalho e a cidade, com toda a sua carga, permeia o tratamento.
Assim como existem artistas modernos na atualidade, é evidente que procedimentos clássicos em psicanálise são absolutamente pertinentes ainda hoje, em muitos casos. A magnitude da palavra em seus diversos prismas emerge no interior de um enquadre tradicional. É certo que em outras modalidades clínicas a importância da palavra se mantém. Entretanto, nelas outros aspectos também compõem as cenas. A fim de que nossa prática seja ampliada com a mesma consistência alcançada pela psicanálise clássica, não seria o momento de refletirmos técnica e metapsicologicamente também sobre o sentido desses componentes diversos da linguagem presentes na clínica extramuros?
Referências
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Endereço para correspondência
Alessandra Affortunati Martins Parente
Rua Girassol, 139/75
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tel.: 11 2373-7646 (com) | 11 3816-0985 (res) | 11 8382-9839 (cel)
E-mail: martins_alessandra@hotmail.com
Recebido: 18/04/2011
Aceito: 04/05/2011
* Psicanalista, psicóloga (PUC-SP), bacharel em Filosofia (FFLCH-USP) e doutoranda em Psicologia Social (IPUSP).