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Ide
Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo Dec. 2011
RESENHAS
Curar do mal de amor
Being cured of the evil of love
Iliana Horta Warchavchik*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
Rolland, Jean-Claude. Curar do mal de amor. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 230 p.
Jean-Claude Rolland nos brinda com um livro instigante, denso e, por vezes, poético. Curar do mal de amor, é uma análise profunda de um desejo secreto e violento que reina na mente humana, o desejo de ser amado por um objeto perdido, escondido em nossa memória. Esse desejo desvenda o complexo mecanismo de um projeto pateticamente humano, o projeto melancólico. Para não sepultar seus mortos, o melancólico afasta-se dos vivos, conquistando aqui na Terra a vida eterna, mas persevera sem outras referências temporais na procura de seus amores.
O livro é composto de três partes, "Paixões";, "Falas"; e "Temporalidades";. "Paixões"; começa com um verso do drama poético Fausto 1, de Goethe, em que Mefistófeles sai por detrás do fogão enquanto a neblina se dissolve, e se apresenta a Fausto em seu gabinete:
FAUSTO:
Com vossa espécie a gente pode ler
Já pelo nome o ilustre ser
Que se revela sem favor
Com a marca de mandaz, blásfemo, destruidor.
Pois bem, quem és então?MEFISTÓFELES:
Sou parte da Energia
Que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria.FAUSTO:
Com tal enigma, que se alega?1
"A invenção do diabo";, capítulo que inicia "Paixões";, é especialmente interessante. Rolland nos situa no terreno da melancolia trazendo referências históricas das tentativas do homem para representar a morte, e suas crenças na continuidade da vida no além, passando pelos egípcios, os mitos gregos, os primeiros cristãos, a famosa gravura de Dürer até Fausto, de Goethe.
O personagem Fausto serve como eixo para sua análise sobre a melancolia. Ele, num lastimável estado psicológico, lamentando a perda de sua juventude e insatisfeito com seus estudos, vende sua alma imortal e se alia ao diabo em troca de sabedoria e gozo fácil da existência.
Assim Rolland descreve o projeto melancólico que precisa ser inibido para que a vida vingue. Na impossibilidade de viver seus lutos e enterrar seus mortos, o melancólico os preserva através de uma vida intensa de representações, uma espécie de "Éden, onde os objetos queridos riem e dançam, pescam e costuram, caçam e leem, sorriem e acariciam";. Sob sua queixa e dor, aquele que vibra com a magia amorosa da melancolia vive as representações da vida no além "como o sésamo de um devaneio infinito";.
Ele prossegue, lembrando-nos que, desde os antigos egípcios, os vivos atribuem aos mortos uma continuidade da vida no além. "A melancolia faz o movimento inverso, transfere essa representação primitiva e narcísica da morte para a própria vida";. Ao romper com a vida que quer lhe impor lutos, o melancólico morre em vida num projeto patético de depois, por meio de identificação, proceder a uma ressurreição conjunta. A tentação de seguir um ser amado quando o perdemos é a solução encontrada pela astúcia do espírito melancólico. No entanto, é preciso fazer oposição a essa atração pela morte.
Propõe dessa forma, a universalidade de um desejo de morrer, uma relação intrínseca de cumplicidade e desejo que o homem mantém com a morte. Essa relação tem registro também nos mitos gregos, nos quais os heróis muitas vezes sucumbem à sedução exercida pela morte. Como Aquiles, que escolhe lutar em Troia e alcançar a glória eterna, morrendo jovem, em vez de ter uma existência longa, mas rotineira e obscura. O objetivo melancólico é um projeto muitas vezes sutil que algum dia tenta a cada um de nós. No entanto, o desejo de morrer e o pavor que o acompanha permanecem aquém da consciência. Rolland pretende mostrar, portanto, como a invenção do diabo é bem-vinda e vem se opor a essa "tendência originária da vida psíquica da qual a melancolia é tanto a realização quanto o vestígio arquetípico";. O melancólico sofre de atração pela morte.
Rolland evoca assim uma ideia importante encontrada já nos primeiros ensaios de Goethe, ou seja, de que o Bem e o Mal não devem ser pensados como opostos irreconciliáveis, mas como dois lados da mesma moeda. Goethe, um decidido não cristão, tinha uma "percepção holística da vida que, longe de ser estática, é um contínuo processo de expansão e contração, um padrão importante para o personagem Fausto";. Longe de ser um impedimento à bondade, o mal é um estímulo que previne a criatividade humana de se atrofiar.
A figura lendária de Fausto, que serviu de base para o poema de proporções épicas de Goethe, surge no século XVI. São poucos os dados sobre a dimensão histórica da personagem real. Sabe-se que Fausto é alemão, humanista e, na audácia da Reforma, um livre-pensador. Segundo informações por vezes incompletas e discordantes, ele praticava a medicina, mas, desiludido com o conhecimento de seu tempo, estudou para se tornar alquimista, astrólogo, mago e vidente. Jactava-se de poder reanimar os mortos. Quando morreu, provavelmente de forma violenta, muitos acreditaram ser aquilo obra do diabo, que sua morte tinha sido sobrenatural.
Goethe transforma a lenda um tanto obscura de um estudioso tentado por um emissário do Inferno, na história de um indivíduo que está pronto para se aliar a Mefistófeles. Segundo Rolland, o Fausto de Goethe teve subitamente a genial ideia de operar uma partição da divindade e de se aliar a uma das partes contra a outra:
[...} daí irá surgir a ideia do pacto, um novo vínculo com o destino, menos marcado pelo ideal e portanto pelo domínio do que pela aliança, e o homem passará a ter uma companhia nova e singular, a do diabo, e seus acólitos, íncubos, súcubos, feiticeiras, cuja tropa colorida, assustadora e pitoresca fornecerá ao imaginário humano um exército mercenário tão inquietante quanto protetor na luta doravante por ele empreendida contra a morte, sua atração, seus deuses.
Com a invenção do diabo, que apenas no século XVI aparece como um personagem complexo na literatura, afastamo-nos de um Deus apenas bondoso e podemos ter o diabo nos alavancando para a vida.
Em Goethe, Mefistófeles é o duplo psicológico de Fausto, que não pode fazer mais do que espelhar, às vezes obscuramente, as muitas facetas inquietas de sua personalidade. Mefisto agora está atualizado, interessado nos vícios contemporâneos, é apresentado como moderno. E qual é o vício? Mefistófeles, em Goethe, não é mais aquele que coloca o homem diante de tentações como era seu papel no Velho e no Novo Testamento. Nas narrativas medievais, o que se almeja não são simplesmente as riquezas ou o gozo fácil da existência mas o desejo de ampliar os estreitos limites do saber humano, "descobrir os fundamentos de tudo, tanto no céu quanto na terra";. Novamente, o pecado é a aspiração ao conhecimento.
Considerando que a figura do diabo continua atual e viva na loucura, que encerra os tesouros arqueológicos da humanidade primitiva, Rolland, no entanto, deve seu interesse por esse tema principalmente por se reconhecer como psicanalista, nessa figura insólita. O trabalho do analista pode ser comparado ao trabalho dessa figura insólita, que vem tirar Fausto de sua melancolia. Diante do desespero melancólico cabe a ele tentar reconciliar o paciente com as coerções da vida, fazer o trabalho de animação das forças psíquicas, para a exigência de viver. Cabe ao trabalho analítico romper a fidelidade passional aos objetos internos, corromper os ideais infantis e narcísicos, o gozo externo, e trocá-los pela aceitação do esforço, da complicação, do trabalho que a vida traz. O analista trabalha ocupando o lugar do morto, e no silêncio de sua escuta evoca as ausências e enredos fantasísticos que o paciente mantêm vivos e concretos.
Rolland, com humor, sugere que deveríamos nos envergonhar da ingratidão diante desse pobre diabo, que aparece junto com a consciência moderna, mostrando como sua invenção foi luciferiana, ou seja, portadora de luz.
Pela lenda que a acompanhou culturalmente, constituindo como que sua projeção, deu mostras de uma sofisticação essencial do aparelho psíquico: dotando-se de uma instância nova, separando a representação de seu modelo, o signo da sua coisa, podendo se proteger da tentação melancólica. Essa instância é a consciência, prova de realidade, auto-observação psíquica.
Nos outros capítulos dessa parte do livro, Rolland se dedica aos temas da paixão, da transferência e da ficção literária, temas que Freud associou de forma estreita. Percorre as obras Gradiva de Jensen e Delírios e sonhos na "Gradiva"; de Freud, para concluir que "a paixão, como o delírio, são rememorações";. O tratamento psicanalítico é a instauração de um tempo e espaço onde a paixão pode se atualizar. "A transferência trabalha pela ressurreição de um objeto perdido por meio de uma atividade de representação";. É um movimento de memória. "Conceber a relação de objeto dessa forma, determinada por uma relação intrapsíquica com um traço inconsciente é algo escandaloso para o pensamento, mesmo para o pensamento analítico... o objeto não é encontrado, mas reencontrado";. A paixão exige de seu objeto uma fidelidade absoluta a certa idealidade, diferentemente do estado amoroso. O analista, ao desfazer a fixação passional ao objeto, separa o objeto originário do objeto de transferência e desvenda a estratégia inconsciente, ou pacto assinado com o próprio sangue, que opera por trás desse aparente parentesco. No entanto, dentro de sua visão metapsicológica, o processo psicótico vem proteger o melancólico dos poderosos desejos de morte que nele operam, diferentemente do entendimento da nosologia psiquiátrica.
Na segunda parte do livro, "Falas";, Rolland analisa a fala do trabalho analítico, exemplificando suas ideias com experiências clínicas. Para ele, o sucesso ou fracasso do tratamento depende da qualidade da fala que nele se produz. O paciente na sessão faz uma leitura de sua paisagem mental e Rolland descreve a atividade mental do analista fora da sessão. A mediação da memória na leitura do inconsciente é um ponto relevante. Esse trabalho ocorre na mente do analista, são fragmentos de sessões que voltam, reflexões teóricas que evocam um paciente, ou mesmo uma meditação autoanalítica que redobra para o analista sua escuta.
São duas as modalidades de leitura que a fala efetua. Na primeira, o "efeito do sentido";, a fala se contenta apenas em transportar de um espaço psíquico para outro, sem transformá-las, as significações definitivas; um processo semelhante à leitura, onde representações organizam uma comunidade de pensamento. A segunda modalidade é uma operação que liga a experiência inconsciente, mais do que a lê. Ela condensa, num mesmo movimento, um trabalho e um trabalho de rememoração, de "efeito de fala";. Desse efeito resulta uma criação verbal, com significações inauditas, semelhante a uma escrita poética. O efeito do sentido opera na superfície do inteligível, enquanto o efeito da fala opera na carne da língua, modifica a relação do sujeito com sua memória, sem que ele o saiba. Essa abertura se dá pela mediação da transferência, que articula a memória e o desejo com a fala.
Para o autor, a fala na análise opera contra seu desejo inconsciente, ela é momentaneamente sua cúmplice, mas tira-lhe de seu poder de satisfação alucinatória. Rolland se debruça sobre outros modos de pensar que não a linguagem, como a identificação, os sonhos e a transferência. Numa nota a Silberer, Freud escreve: ";Considero os processos psíquicos que organizam o sonho um material de pensamento igual aos outros";. Nesse sentido, o analista tem de conhecer e estudar esses mecanismos psíquicos, fazer sua metapsicologia, e esquecê-los e ignorá-los até certo ponto, para evitar passar por cima da linguagem do paciente, tornando-se uma espécie de profeta. Rolland ainda traz para discussão os processos psíquicos dos sonhos baseando-se no Cap. V de A interpretação dos sonhos, de Freud, e discorre sobre a memória e fala do analista se reportando à Nota sobre o bloco mágico e Construções em análise.
Na terceira parte do livro, Rolland discorre sobre a noção de temporalidade, que ele relaciona de forma intrínseca com o tema da imortalidade e do narcisismo. Algumas ideias importantes veiculadas nessa parte.
Para os povos primitivos, a ideia de morte natural não existia; para eles, cada morte tinha relação com a influência de um inimigo, ou de um espírito maligno. A morte vista como algo do sagrado ou acidental não era considerada algo intrínseco ao curso natural da vida.
A crença na imortalidade surge como meio para escapar do fardo da existência. E é a partir da constatação da mortalidade que surge a ideia de temporalidade.
Rolland cita o texto de Freud, Além do princípio do prazer, e a ideia de que "a mortalidade seria uma aquisição tardia da natureza e um progresso, pelo menos do ponto de vista econômico";. E questiona: porque atribuir ao homem uma pulsão de morte se ele não fosse virtualmente imortal? Rolland escreve:
O que Freud e a psicanálise introduziram especificamente na representação tradicional da temporalidade é uma práxis revolucionária, um projeto: transformar a relação entre o sujeito humano e seu tempo subjetivo, inverter a passividade inexorável que o aprisiona numa compulsão de destino, convertendo-a numa atividade mediante a qual esse mesmo sujeito se arranca de certa imemorialidade do passado para substituí-la por um presente, portanto, uma história, portanto, um futuro. O tratamento abre para o analisando a conquista de um tempo, que espontaneamente, o submete à lei cega.
Freud instaura um tempo externo e um tempo subjetivo, um desejo de viver e um desejo de morrer, ferindo assim, o narcisismo humano.
Rolland nos lembra, entretanto, que a consciência do tempo é atributo apenas de uma parte do aparelho psíquico. A categoria do tempo é alheia ao inconsciente, essência do psiquismo, e essa ausência é que define o inconsciente. Essa ausência define também o analista já que ele carece de vocabulário para falar dessa negatividade do tempo, recorrendo muitas vezes aos filósofos, que, no entanto, tratam do tempo como um valor positivo.
Para Freud os homens não dotaram somente os seus deuses de um privilégio de imortalidade, mas também os seus filhos, aos quais se atribuem todas as perfeições e se esquecem todos os defeitos.
Rolland considera o narcisismo o ponto mais espinhoso da teoria analítica, de onde brota a subjetividade contra a morte e contra a vida. A crença na imortalidade, fruto do narcisismo, contamina as crianças desde o nascimento, submetendo-as a ideais que se oporão ao movimento civilizatório. A temporalidade é uma aquisição que vem do reconhecimento da morte e da sexualidade infantil ou seja, das feridas narcísicas que as frustrações libidinais infligem ao ser humano.
A temporalidade psíquica é, portanto, produto de moções fundamentais, originárias. O sentimento do tempo, assim como o sentimento de autoestima, a consciência, a alucinação onírica ou o ritual obsessivo são produções psíquicas como outra qualquer. Mas é o sentimento do tempo que "inscreve a sucessão dos instantes numa continuidade, ou seja, numa articulação lógica";, independente de seus conteúdos e de sua significação. Cabe a nós, psicanalistas, abandonar a trama dessa temporalidade pré-consciente e centrarmos nossa escuta no nível das operações próprias da sexualidade infantil e do recalcamento, que são constitutivas de uma temporalidade primária.
Esses são apenas alguns dos interessantes caminhos percorridos por Jean-Claude Rolland em Curar do mal de amor, e de forma alguma substituem uma leitura atenta da rica articulação de seu pensamento teórico-clínico.
Referências
Goethe, J. W. (1997). Fausto. (Jenny Klabin Segall, trad.). Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica. pp. 1-24. [ Links ]
Endereço para correspondência
Iliana Horta Warchavchik
Rua João Lourenço, 683/122
04508-031 – São Paulo – SP
tel.: 11 3846-8827
E-mail: ilianaw@uol.com.br
Recebido: 18/10/2011
Aceito: 28/10/2011
* Membro filiado da SBPSP.
1 Tradução de Jenny Klabin Segall. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997, p. 71.