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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo June 2014

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e homossexualidade – da apropriação à desapropriação médico-moral

 

Psychoanalysis and homosexuality – from the medical morality appropriation to its expropriation

 

 

Eduardo de São Thiago Martins*; Rodrigo Lage Leite**; Tiago da Silva Porto***; Oswaldo Ferreira Leite Netto****

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Estimulado pelas manifestações sociais de junho de 2013 contrárias ao "projeto de cura gay", o artigo circunscreve, pela perspectiva foucaultiana, os movimentos históricos e conceituais de apropriação e desapropriação médico-moral da homossexualidade pela psicanálise. Tendo a sexualidade como plataforma de dissecção e defesa do pensamento psicanalítico, os autores refletem sobre a pertinência do tema na vida cotidiana da instituição psicanalítica.

Palavras-chave: Psicanálise, Homossexualidade, Apropriação médico-moral, Preconceito, Psiquiatria.


ABSTRACT

Instigated by the social demonstrations of June 2013 against the "gay healing project", this paper concentrates, from a Michel Foucault's perspective, on the psychoanalysis' historical and conceptual movements of medical morality appropriation and expropriation of homosexuality. Conceiving sexuality as a platform of dissection and defense of the psychoanalytic thought, the authors ponder over the pertinence of the subject in the psychoanalytic institution everyday life.

Keywords: Psychoanalysis, Homosexuality, Medical morality appropriation, Prejudice, Psychiatry.


 

 

As manifestações de junho no Brasil colocaram em evidência uma profusão de vozes heterogêneas, indicativas de demandas variadas, muitas vezes contraditórias, da sociedade. Inicialmente associadas com reivindicações acerca do preço das passagens do transporte público, ganharam vários outros sentidos, como crítica à corrupção e mau uso do dinheiro público, defesa da liberdade de expressão, repúdio aos abusos da polícia e uma gama ampla de outros questionamentos da vida social. No bojo das reivindicações, ecoaram também em todo o país manifestações contrárias ao projeto de lei complementar 234/2011, de autoria do deputado federal João Campos (PSDB-GO), que tramitava na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, da Câmara dos Deputados, presidida pelo deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), e popularmente conhecido como "projeto de cura gay".

Esse projeto continha dois eixos centrais: suspender as proibições do Conselho Federal de Psicologia para que psicólogos oferecessem tratamento a homossexuais e para que falassem publicamente, em nome da psicologia, associando homossexualidade e doença. A força das manifestações populares fez com que o projeto fosse arquivado, mas abriu caminho para que se pudesse pensar, de maneira muito mais ampla, sobre os pressupostos epistemológicos que sustentam o entendimento que se tem hoje da sexualidade humana, incluindo a homossexualidade.

Para se pensar em um "projeto de cura gay", precisaríamos em primeiro lugar pensar como chegamos à realidade anacrônica de encarar a sexualidade, incluindo a homossexualidade, como doença. Isto significa entender de que maneira os movimentos da sexualidade humana desde sempre, com sua multiplicidade de formas e expressões, incluindo as relações entre pessoas do mesmo sexo, foram encampados pelo saber dito científico, médico, e passaram da condição de algo sem um nome, algo dos homens e das mulheres, algo da intimidade desejante dos seres, valorizado ou não, idealizado ou execrado, para algo que tinha agora um nome – homossexualidade – que era determinante da personalidade, do caráter e da própria essência do sujeito. E, sobretudo, que passava a ser objeto de estudo da medicina, associado à noção de doença.

As práticas sexuais entre indivíduos do mesmo sexo, ao longo da história, foram experimentadas de diferentes maneiras. Ora supervalorizadas, como na Grécia Antiga, alçadas à importância formadora e fundadora do humano, ora desvalorizadas e até mesmo criminalizadas, sujeitas à pena de morte, fato ainda atual em algumas sociedades.

As justificativas para reprovação das relações homossexuais têm origens diversas. Muitas vezes, motivos religiosos estão no centro da questão, associando sexo e pecado. Outras vezes, fatores jurídicos relacionados às questões econômicas e de poder interferem na maneira como a sexualidade é socialmente determinada. Recorrer a Michel Foucault e à sua História da Sexualidade ajuda a rastrear, a partir da análise dos discursos, o que subjaz às diferentes compreensões da sexualidade em diferentes épocas. Através da perspectiva foucaultiana, pode-se obter grande esclarecimento sobre as lógicas de poder e de controle que regulam os discursos sobre a sexualidade, e também sobre os mecanismos pelos quais este controle se dá.

[...] o ponto importante será saber sob que formas, através de que canais, fluindo através de que discursos o poder consegue chegar às mais tênues e mais individuais das condutas. Que caminhos lhe permitem atingir as formas raras ou quase imperceptíveis do desejo, de que maneira o poder penetra e controla o prazer cotidiano – tudo isso com efeitos que podem ser de recusa, bloqueio, desqualificação mas, também, de incitação, de intensificação, em suma, as técnicas "polimorfas do poder". (Foucault, 2012, p. 18)

Tentaremos circunscrever no presente artigo, a partir desta perspectiva foucaultiana, o momento histórico em que o sexo entre indivíduos do mesmo sexo ganha um nome – homossexualidade – e os desdobramentos que surgem a partir daí. Este marco é importante porque engendra, de maneira ambivalente, um avanço e um problema. Por um lado, tira a homossexualidade da seara obscura da criminalidade, por outro, através da busca positivista de uma explicação médica para essa experiência humana, lança as bases para sua patologização.

 

1. A medicina positivista e o controle da sexualidade

O movimento higienista, surgido a partir da segunda metade do século XIX, pertenceu

a um momento histórico que apoiava a expressão sexual desde que restrita ao laço matrimonial, ou seja, apenas as relações conjugais heterossexuais vinculadas à reprodução e à transmissão de bens eram endossadas. Em qualquer outra esfera ou contexto a relação sexual era estigmatizada. (Vieira, 2009, p. 490)

Foucault denuncia essa específica relação entre sexo e poder ao descrever o uso da vigilância dos comportamentos sexuais, como forma de sustentação da estrutura social e econômica da burguesia vitoriana.

A sexualidade [...] muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar. [...] E se o estéril insiste, e se mostra demasiadamente, vira anormal: receberá este status e deverá pagar sanções. (Foucault, 2012, pp. 9-10)

Dois pontos relacionados ao movimento higienista e ao discurso médico-científico que ele utilizava são de grande importância: do ponto de vista dos objetivos, a regulação da sexualidade para proteção da ordem política e econômica. Matrimônio e patrimônio. O sexo monogâmico heterossexual no centro da norma e da sustentação da estrutura social; do ponto de vista do método científico, a catalogação e classificação do comportamento humano, o que dificilmente permite algo para além do registro binário normal versus patológico.

É a partir destes pontos de vista que a sexologia, "nova ciência médica do século XIX, esmerada na tarefa positivista de classificar tipos e comportamentos sexuais" (Vieira, 2009, p. 490), irá delimitar os comportamentos que serão por ela catalogados e estudados. Assim, a escolha do objeto para o estudo dito científico é feita segundo um viés moral, associado com uma lógica de poder. Instaura-se uma apropriação médico-moral da sexualidade, segundo termo utilizado por Georges Lanteri-Laura.

O psicanalista Carlos Augusto Peixoto Jr., numa crítica interessante sobre esse processo, afirma que, assim, "o saber científico sobre o sexo não conseguirá senão instaurar um moralismo fraudulento com pretensões de objetividade" (Peixoto Junior, 1999, p. 33).

 

2. Os sexólogos do século XIX e seus discursos sobre a homossexualidade

Em grande parte dos países da Europa, a sodomia era considerada crime até o final do século XIX.

O Código Penal do reino da Prússia punia a sodomia entre homens e, após a proclamação do Império alemão, essa medida foi estendida a todos os Estados que o compunham [...]. Na dupla monarquia austro-húngara, a lei punia, além disso a homossexualidade feminina. (Lanteri-Laura, 1994, p. 29)

Dessa maneira, a atuação dos sexólogos e psiquiatras nesta época teve importância na descaracterização do aspecto delituoso das relações homossexuais, e na luta por sua descriminalização.

De maneira geral, os primeiros estudos apontavam a homossexualidade como algo que "nada tinha de monstruoso, mas representava uma variedade rara e talvez doentia do acesso ao gozo, susceptível de tratamento" (Lanteri-Laura, 1994, p. 29). Aproximando a homossexualidade do grupo dos "neuróticos", e afastando-a das monomanias instintivas, Westphal orienta a nova perspectiva que se dará à homossexualidade: distante do crime e da alienação, mas associada à neurose, à medicina e a uma condição patológica.

Nesta época surgiram as primeiras propostas de tratamento para a homossexualidade, num registro epistemológico compatível com as ideias do polêmico "projeto de cura gay" de 2011.

Schrenck-Notzing [...] propunha ordenar ao invertido, sob efeito de hipnose, que procurasse uma prostituta e tivesse sucesso num coito heterossexual [...] "numa palavra, suprimir seu centro superior, substituindo-o pelo do terapeuta; concebemos haver nisso um meio extremamente poderoso de agir sobre um centro e, em particular sobre o centro sexual". (Lanteri-Laura, 1994, pp. 32-33)

A dança dos discursos sobre a homossexualidade no contexto da sexologia do século XIX mostra como gradativamente essa experiência sexual humana foi alçada de maneira irrefutável à condição de doença. Westphal (1870) postulou uma "sensibilidade sexual contrária", algo congênito, portanto natural e diferente da devassidão – mas, a própria expressão utilizada já sugeria uma anormalidade: contrária em relação a quê? KraftEbing (1894) partia da premissa de que o desejo sexual era em si perigoso para a civilização, ameaçador da ordem social, beirando sempre a doença. Por isso, deveria ser vigiado. Havellock Ellis (1897) introduziu o termo "inversão sexual". Haveria, então, um desejo não invertido?

Retomando as noções de controle e regulação da sexualidade propostas por Foucault, e de apropriação médico-moral proposta por Georges Lanteri-Laura, podemos perceber como estes discursos sobre a homossexualidade foram engendrados pela medicina e passaram a integrar o entendimento científico e popular sobre ela, com ecos ainda hoje. Até a segunda metade do século XIX não existia homossexualidade.

Havia, certamente, mulheres e homens que mantinham relações com parceiros do mesmo sexo e que podiam tornar-se alvo de reprovação ou punição por transgressão sexual. Porém esses atos não os marcavam como pessoas inerentemente ou fundamentalmente diferentes das outras. Em suma, a atividade sexual não constituía um marcador ou determinante da identidade. (Vieira, 2009, p. 489)

A partir dessa criação, inúmeras possibilidades de compreensão da homossexualidade vêm sendo postuladas, seja a partir de diferentes pontos de vista teóricos, seja a partir de demandas da sociedade, que rejeitam as premissas morais e as estratégias de controle e poder oriundas do final do século XIX, endereçando novas questões sobre a vida e a sexualidade humana.

 

3. Psicanálise e homossexualidade – avanços e ambivalências

Em matéria de sexualidade, somos todos, no momento, doentes ou sãos, não mais do que hipócritas. Será muito bom se obtivermos, em consequência dessa franqueza geral, uma certa dose de tolerância quanto às questões sexuais. [...] E também aqui há trabalho suficiente para se fazer nos próximos cem anos – nos quais nossa civilização terá de aprender a conviver com as reivindicações de nossa sexualidade. (Freud, 1898/2006, pp. 254, 264)

Não faltam citações ao longo de toda a obra de Freud que comprovem a empenhada ocupação do autor em libertar a humanidade para a pluralidade de seus comportamentos, sexuais ou não, como livre expressão da pulsão cujo aprisionamento moral conceituaria o "sintoma psicanalítico".

Na esfera pública, Freud se manifestou em questões relacionadas à homossexualidade, como, por exemplo, na sua descriminalização. Em um posicionamento para o jornal vienense Die Zeit, acerca da acusação de homossexualismo a uma importante personalidade da época, escreveu:

A homossexualidade não é algo a ser tratado nos tribunais. [...] Eu tenho a firme convicção que os homossexuais não devem ser tratados como doentes, pois uma tal orientação não é uma doença. Isto nos obrigaria a qualificar como doentes um grande número de pensadores que admiramos justamente em razão de sua saúde mental. (Freud citado por Ceccarelli, 2008, p. 76)

Homem de seu tempo, entretanto, ao longo das sucessivas edições de seus "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud acabou atenuando a potência revolucionária da primeira delas, de 1905, que implode radicalmente a norma, proposta pela biologia, da função exclusivamente procriadora do instinto sexual. Demonstrando a toda humanidade o polimorfismo e a perversão de sua constituição sexual, Freud nos promove e nos distingue definitivamente do resto do reino animal.

O autor comunica pelo próprio texto – e reforça pela característica pendular das diversas edições, que ora despatologizam e subvertem, e ora se reaproximam da unificação da pulsão sob a primazia da genitalidade – a necessidade que temos dos parâmetros de normalidade, mas percebe que tais parâmetros são ditados não por uma suposta natureza das coisas, mas por convenções culturais de uma civilização da qual ele se assumia parte, civilização esta que barra e controla a libido perante a multiplicidade de investimentos possíveis que se apresentam ao humano.

O psicanalista desavisado, se perder de vista a noção foucaultiana de formação discursiva – noção que nos obriga a questionar as condições históricas, culturais, sociais e políticas que levam à produção de quaisquer saberes, e que nos atenta para os jogos de poder presentes na proliferação destes discursos – pode entender desta atenuação e do movimento pendular das ideias freudianas uma impertinência conceitual.

Tal desaviso frequentemente produz mal-entendidos teóricos que se fixam como preconceitos psicanalíticos, e que levam a uma compreensão normativa da psicanálise, supondo modelos desenvolvimentistas de maturação psíquica, uma sexualidade organizada em fases estanques, e uma questionável ideia da resolução do complexo de Édipo, como roteiro objetivo, concreto, e simplista.

A despeito de tal movimento pendular, é inegável a ruptura radical que Freud realiza, deixando uma fenda conceitual decisiva, que pode servir de fulcro para pensarmos a sexualidade humana em uma perspectiva muito diferente da doença-cura. Nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud parte das premissas dos contemporâneos, como Havellock Ellis, mas gradativamente as refuta, criando um verdadeiro "terreno minado".

A partir da noção de aberração, e de termos como inversão e perversão, propõe a ideia transgressora do afrouxamento entre pulsão e objeto – "apenas uma soldadura". A patologia se aproxima, aos poucos, da norma. Usa o termo "invertido" de Westphal e Havellock Ellis, mas critica as teses de "degeneração, caráter congênito e hermafroditismo psíquico" (Peixoto Junior, 1998/1999, pp. 61-62) neste grupo. Formula as noções de uma sexualidade infantil perversa-polimorfa e autoerótica, e de uma bissexualidade constitucional na base da vida humana.

Com essas construções, subverte as noções de normal e patológico e dá subsídios para a conclusão de Garcia-Roza, segundo a qual "a sexualidade humana é em si própria aberrante" (Peixoto Junior, 1998/1999, p. 65). No tocante à compreensão das escolhas objetais homo ou heterossexual, Freud é claro ao afirmar:

[...] a psicanálise considera que a escolha de um objeto, independentemente de seu sexo – que recai igualmente em objetos femininos e masculinos – tal como ocorre na infância, nos estágios primitivos da sociedade e nos primeiros períodos da história, é a base original da qual, como consequência da restrição num ou noutro sentido, se desenvolvem tanto os tipos normais quanto os invertidos. [...] Assim, do ponto de vista da psicanálise, o interesse sexual exclusivo de homens por mulheres também constitui um problema que precisa ser elucidado, pois não é fato evidente por si mesmo baseado em uma atração, afinal, de natureza química. (Freud, 1905/1976, p. 146)

 

4. Os caminhos da desapropriação médico-moral da homossexualidade

A observação da experiência homossexual ao longo da história, associada à análise dos discursos sobre ela – sobretudo a partir da criação do termo homossexualidade, e sua apropriação pela medicina – torna óbvio que a tipificação desta experiência sexual como anormalidade ou aberração sempre foi construída a partir de concepções morais ou estratégias de controle e regulação.

A busca de uma determinação causal – biológica, médica – ou de uma explicação universal – psicológica ou psicanalítica – sempre partiram de uma circunscrição inadequada, invertida do objeto de estudo. O poder, a moral e os bons costumes é que apontavam a experiência como anormal. E a partir daí buscavam-se explicações. A ciência era convocada, por tabela, a estudar e explicar o que as sociedades e seus preconceitos interrogavam sobre o que assustava ou incomodava.

Assim sendo, é impossível que a compreensão da homossexualidade como algo anormal ou desviante seja desfeita a partir de descobertas ou teorias científicas. Uma vez que esta ideia parte de concepções morais e de poder, sua revisão só poderá ser efetivamente realizada a partir da desconstrução dessas premissas, e da reorientação das questões que o mundo endereça aos cientistas e psicanalistas, não o contrário.

Psiquiatria e psicanálise têm revisado seus equívocos e proposto novas maneiras de observar a vida erótica, em maior sintonia com o mundo contemporâneo e suas questões. O poder da massa, as pressões sociais e o ativismo político acerca da diversidade sexual foram e são centrais nestas revisões e nestas mudanças. Só assim a desapropriação médico-moral da homossexualidade no mundo, na psiquiatria e na psicanálise tem sido possível.

A mesma psiquiatria que aprisiona e classifica, como toda autoridade, também pode libertar. No século XIX, foram os sexólogos que trouxeram as práticas sexuais para as rodas científicas, libertando-as da exclusividade dos salões masculinos, mas contendo-as em categorias e nomeações.

Em 1984, a Associação Brasileira de Psiquiatria se posicionou contra a discriminação e considerou a homossexualidade como algo não prejudicial à população, seguida pelo Conselho Federal de Psicologia em 1985, que deixou de considerá-la um desvio sexual. Seis anos mais tarde, em 1990, a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da décima edição da Classificação Internacional de Doenças (CID), sendo que, em 1973, a Associação Americana de Psiquiatra já a havia retirado de seu Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM). Isso se deu 21 anos após sua inclusão, em 1952, e somente após sucessivas tentativas falhas de comprovação científica da homossexualidade como distúrbio mental.

Nos meios psicanalíticos, em 2002 seria editada a regra de não discriminação da International Psychoanalytical Association (IPA), após eventos como o Congresso de Barcelona (1997), através de forte pressão internacional protagonizada pela American Psychoanalytical Association (APsaA), que já havia adotado uma política oficial de não discriminação em 1991 e 1992.

Na base de seu compromisso com valores éticos e humanísticos, a IPA se opõe a discriminações de qualquer tipo. Isto inclui, mas não se limita a, qualquer discriminação baseada em idade, raça, gênero, origem étnica, crença religiosa ou orientação homossexual.
A seleção de candidatos para o treino em psicanálise será feita somente com base em qualidades diretamente concernentes à sua habilidade de aprender e funcionar como um psicanalista. Adiante, é esperado que este mesmo padrão seja usado na indicação e promoção de membros de posições educacionais, incluindo analistas didatas e supervisores. (Bulamah & Kupermann, 2013, p. 161)

Os jogos de poderes implicados nestes movimentos são evidentes. Nenhuma dessas ações – seja de inclusão ou de exclusão da homossexualidade da categoria de doença – ocorreu abruptamente, mas apenas como resultado de fortes jogos de interesse, de protestos e militâncias. Os movimentos de massa de junho de 2013 contra a chamada "cura gay" não foram diferentes.

 

5. Por que falar de homossexualidade? – psicopatologia da vida cotidiana gay na instituição psicanalítica

Muitas vezes, questiona-se a pertinência de se falar sobre homossexualidade na instituição psicanalítica. Seria adequado abordar um assunto amplo, de maneira genérica, em um campo cujo vértice prioriza a singularidade do indivíduo, na perspectiva da relação analítica?

Segundo Thamy Ayouch, uma possibilidade de abordagem das mudanças sociais contemporâneas pela psicanálise poderia ser não pelo viés da homossexualidade, e sim a partir da homofobia, uma vez que em qualquer concepção hierarquizada das sexualidades pode haver homofobia (informação verbal, 2013). Assim, retornando às responsabilidades da instituição psicanalítica, Elisabeth Roudinesco ressalta a homofobia por denegação.

Hoje em dia, ninguém mais na IPA ousa confessar-se publicamente homofóbico. Decerto, o ódio contra a homossexualidade persiste com a mesma violência. Assume, entretanto, uma fisionomia diferente daquela de antigamente, enunciando-se sob a forma de uma denegação, um pouco como o antissemitismo das sociedades democráticas de hoje. (Roudinesco, 2009, pp. 53-54)

Muitas vezes, o "calar-se", o "não tocar no assunto", o "não considerar como objeto pertinente ao campo psicanalítico", não só as homossexualidades como também as heterossexualidades, constitui uma forma de fobia por denegação, por parte das instituições. Tratar do preconceito e da homofobia no meio psicanalítico é assunto delicado e controverso. Em geral é tema corrente nos bastidores da vida institucional, mas abordado de maneira indireta, às vezes de maneira reativa ou anedótica, outras vezes, com excessiva cautela e receio.

Ainda hoje ouvimos falar de colegas que aconselham aos candidatos que omitam ou que mintam em suas entrevistas de seleção sobre suas relações homossexuais; ouvimos relatos de entrevistadores que se ocupam longamente dos detalhes íntimos e comportamentais da vida sexual do entrevistado, numa curiosidade opressora e preconceituosa.

No início de 2013, ocasião da formação do Grupo de Estudos "Psicanálise e Homossexualidade", na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), chamava a atenção a recepção ambivalente de alguns colegas que, se por um lado demonstravam entusiasmo, por outro sinalizavam diferentes preocupações. Receios com a "estigmatização" dos frequentadores do grupo, ou outras questões, como, por exemplo, concernentes a seu nome, mais particularmente ao termo "homossexualidade". Os próprios votos de coragem transmitidos ao coordenador refletem o impacto ainda hoje causado pelo tema nos meios institucionais.

A observação de lapsos e ambivalências discursivas em diversas situações da vida institucional também expõem de maneira clara preconceitos subjacentes à maneira como ainda se olha para homossexualidade. É comum analistas iniciarem seus relatos clínicos com a frase: "Trata-se de um paciente homossexual que...". Uma observação atenta denuncia o uso ocasional de termos como "vida sexual normal", ou mesmo o engendramento de teorias sobre as escolhas objetais e identificações masculinas ou femininas, onde estão implícitas hierarquias sexuais, registros binários da sexualidade e desejos, muitas vezes inconscientes, do analista de direcionamento da vida sexual de seus pacientes.

Não podemos deixar de questionar criticamente, por outro lado, os discursos reativos, de "normalização" da homossexualidade, que entram na mesma lógica dos discursos de patologização. Alguns movimentos gays, a partir da ideia de uma suposta identidade homossexual, criam guetos ideológicos que se vertem para uma "heterofobia". Nos meios psicanalíticos, algumas sociedades se fecham entre homossexuais, dando a eles a exclusividade ou a preferência no atendimento de seus pares, como se apenas analistas homossexuais entendessem analisandos homossexuais, "perpetrando, mais uma vez, a violência simbólica que os discrimina" (Ceccarelli, 2008, p. 84).

Didier Eribon bem distingue, através das ideias de Sartre de serialidade e de grupos de fusão, a passagem que o indivíduo faz do coletivo (passivo) ao grupo (ativo). Percebemos a passividade e a atividade dos diferentes movimentos militantes existentes, aqueles que propagam discursos normativos e dispersivos ao avesso, e aqueles que questionam as estruturas e agem sobre elas. Esta passagem implica "em reconhecer o outro numa relação de 'reciprocidade' e de interioridade, escolher o laço que me une a ele, embora, até aí, no 'coletivo', esse laço me fosse anunciado e imposto do exterior" (Eribon, 2008, p. 164).

 

6. Conclusão

Em seu trabalho "Psicanálise e Gênero: além da ontologia", Thamy Ayouch escreve:

Grande parte da dimensão política da psicanálise consiste em lutar contra o simplismo do pensamento, o que implica que o discurso psicanalítico não se deixe engessar em proposições simples. A teorização psicanalítica não é uma doutrina unívoca. [...] ela convoca, para ser lida, o trabalho do processo analítico; não é nunca terminada e concluída, e tem de ser acompanhada por uma práxis analítica que encontra a singularidade clínica, as transformações sociais e o diálogo com outras teorias. [...] É responsabilidade dos psicanalistas evitar a fascinação narcisista de uma teoria fechada. (Ayouch, 2013, p. 9)

O mesmo autor lembra que os conceitos da psicanálise, participando de formações discursivas, podem funcionar como formas de poder através da nomeação, que agem sobre o indivíduo, sujeitando-o. E questiona:

Face a isso, pode a psicanálise ficar numa postura isolada e afastada das mudanças sociais da nossa época e das implicações políticas de seu próprio discurso? A clínica da singularidade a isentaria de uma reflexão sobre as implicações sociais e políticas de seus dispositivos teóricos e práticos? (Ayouch, 2013, p. 5)

Refazer o caminho da apropriação médico-moral da homossexualidade e percorrer a trilha de sua desapropriação permite compreender preconceitos e equívocos, e também propor outros caminhos para se pensar a diversidade sexual, no tocante à sua orientação, ou às questões de gênero.

Em tempos de projetos de "cura gay", acreditamos na potência da psicanálise para propor maneiras mais sofisticadas de se pensar a diversidade sexual. Para além de certo e errado, de normal e patológico, construtos frágeis demais quando olhamos para a clínica e, sobretudo, para a vida.

 

Referências

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Bulamah, L. C. & Kupermann, D. (2013). Notas para uma história de discriminação no movimento psicanalítico. Revista Estudos da Língua(gem), 11 (1), 147-164.         [ Links ]

Ceccarelli, P. R. (2008). A invenção da homossexualidade. Revista Bagoas, 2, 71-93.         [ Links ]

Eribon, D. (2008). Reflexões sobre a questão gay (P. Abreu, trad.). Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

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Freud, S. (2006). A sexualidade na etiologia das neuroses. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (M. Salomão, trad., vol. 3, pp. 249-270). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1898).         [ Links ]

Lanteri-Laura, G. (1994). Leitura das perversões (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1979).         [ Links ]

Peixoto Junior, C. A. (1999). Metamorfoses entre o sexual e o social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. (Trabalho original publicado em 1998).         [ Links ]

Roudinesco, E. (2009). Psicanálise e homossexualidade. In E. Roudinesco. Em defesa da psicanálise: ensaios e entrevistas (M. A. C. Jorge, textos reunidos, apresentação e revisão; A. Telles, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
RODRIGO LAGE LEITE
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Recebido: 18/11/2013
Aceito: 22/11/2013

 

 

* Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Médico psiquiatra pelo Instituto de Psiquiatria da FM-USP.
** Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Médico psiquiatra pelo Instituto de Psiquiatria da FM-USP.
*** Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Médico pela Faculdade de Medicina – USP.
**** Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Médico psiquiatra pelo Instituto de Psiquiatria da FM-USP. Diretor do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria – FM-USP. Coordenador do Grupo de Estudos "Psicanálise e homossexualidade" – SBPSP.