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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.36 no.57 São Paulo June 2014
ARTIGOS
Costura delirante de um Vestido de noiva: um exercício de interpretação psicanalítica nos palcos1
Raving's sewing of Vestido de noiva: an exercise about psychoanalytic's interpretation on stages
Rafael de Melo Costa*,I; Maria Lúcia Castilho Romera**,II; Luiz Carlos Avelino Silva***,II
I Universidade Federal de Goiás – Campus Catalão
II Universidade Federal de Uberlândia. Instituto de Psicologia
RESUMO
Trata-se de um exercício de interpretação psicanalítica em clínica extensa, que para manter a postura interpretativa psicanalítica recorre ao campo da crítica teatral. Analisando a peça Vestido de noiva, buscamos sentidos para uma narrativa teatral que confunde planos: factuais, cronológicos, de história de vida e de vivências internas de uma mulher/personagem. O artigo constrói uma conexão entre esses vários planos que resulta no deslinde de um sentido específico: o da criação, pelo espectador, do enredo que arma a peça – uma história que se conta na mistura de planos reais e delirantes. Este exercício interpretativo no campo teatral carrega no seu cerne a proposta que a transmissão e aprendizagem da psicanálise se dão para além da clínica padrão. Será na afetação sofrida pelo analista e na busca de sentidos provenientes deste abalo afetivo que se desenvolverá a construção e reinvenção de um conhecimento originariamente psicanalítico.
Palavras-chave: Vestido de Noiva, Psicanálise, Teatro, Realidade, Interpretação.
ABSTRACT
This article is an exercise of psychoanalytic interpretation in extensive clinical, that uses criticism theatrical's field, in order to keep the interpretative psychoanalytic posture. Analyzing Vestido de Noiva, we need to find senses for a theatrical narrative that confuses levels: factual, chronological, history life and internal experiences of a woman/character. The article builds a connection between these many plans which results in a discovery of a specific sense: the creation by the viewer of the plot that arms the play – a story that is told in the mix of real and delusional plans. This interpretive exercise in the theatrical field carries at its core the proposal that the psychoanalysis transmission and learning takes place beyond the clinical standard. It will be on the affectation suffered by the analyst and seeking directions from this affective quake that will develop construction and reinvention of an originally psychoanalytic knowledge.
Keywords: Vestido de Noiva, Psychoanalysis, Theater, Reality, Interpretation.
"Toda coerência é, no mínimo, suspeita."
(Nelson Rodrigues citado por Castro, 1997)
Plano 0: Introdução
Nelson Rodrigues: dois substantivos adjetivados; um nome com sobrenome; o brasileiro masculino – amante feminino; anjo carioca pornográfico e fluminense; uma marca cristalizada de ruptura proferida; enfim, duas palavras que chocam.
Partimos de uma ideia sobre o Nelson que vai além dos seus rótulos de jornalista, dramaturgo e escritor. Acreditamos que ele "flagrou verdades imortais que estavam ali, no meio da rua, na nossa cara, e que ninguém via" (Jabor, 2011). Dizia Nelson que se Deus lhe perguntasse se teria feito algo de relevante na vida, responderia: "Sim, Senhor, eu inventei o óbvio". E como é intrigante o óbvio escancarado em frases armadas, chapado em manchetes sensacionalistas, ou ainda, expresso por meio de contos, crônicas e peças.
Com o risco de ser ferido pela própria advertência2, Nelson oscila rumo à unanimidade. Oscila, pois está longe de ser classificado entre os pomposos e imortais literatos nacionais, mesmo porque para ele o problema da literatura nacional é que nenhum escritor sabe bater um escanteio (Jabor, 2011). Porém, vimos que ele se consolida, cada vez mais, como um dos grandes ficcionistas: um irascível interpretante do homem e seu cotidiano. Alguém que "se afasta da superficialidade para entrar de cheio no que concerne à alma" (Gonçalves, 2011, p. 94).
Será a peça Vestido de noiva o campo de investigação deste artigo. Uma investigação em três planos, seguindo o modelo de estrutura da própria obra em questão, arquitetada no entrelaçamento dos planos da realidade, memória e alucinação. Inicialmente, discorreremos sobre o que vem a ser o fenômeno Vestido de noiva, bem como as intenções do autor ao escrever a peça (Realidade); no segundo momento apresentaremos algumas análises consagradas (Memória); por fim, concluiremos, a partir da forma como Freud propõe uma análise, isto é, através do método interpretativo, tendo como interpretante algumas concepções sobre a memória e a lembrança, cuja especificidade não se dá nos fatos em si, tal qual aconteceram, e sim na percepção deles, atravessada pelo momento atual na "busca" desta lembrança (Maluf, 1995) (Alucinação).
Plano 1: Realidade
A realidade que aqui apresentamos é a do fenômeno Vestido de noiva. Encenada em 28 de dezembro de 1943 pelo grupo Os Comediantes (Rio de Janeiro), a peça é considerada pela crítica teatral brasileira como um divisor de águas, que insere o teatro brasileiro na contemporaneidade. Um espetáculo que "renovou o palco brasileiro moderno, quer pelo texto, quer pela direção de Ziembinski" (Magaldi, 1987, p. 12).
Entretanto, Cafezeiro e Gadelha (1996) elucidam que esta produção se constituiu em um campo já trabalhado pelas ideias e propostas de Mário e Oswald de Andrade, pelo Teatro de Brinquedo, Teatro do Estudante e alguns autores do Trianon. Por mais que Nelson seja considerado o autor que levou para os palcos, em doses cavalares, uma maneira de falar inconfundivelmente brasileira, "do ponto de vista do texto, Vestido de noiva tem um antepassado próximo em Amor, de Oduwaldo Vianna [...], quanto aos planos de tempo e espaço em que se estrutura a narrativa e também do ponto de vista da linguagem" (Cafezeiro & Gadelha, 1996, p. 481). Assim sendo, Vestido de noiva passa a ser percebido com um caráter de culminância e não de ruptura, mas isto em nada diminui o prestígio e a genialidade da obra.
Vestido de noiva é a segunda peça de Nelson, escrita após o não tão grandioso efeito de estreia de A Mulher Sem Pecado em 1940. Foi escrita tendo como estrutura um antigo fascínio de Nelson: contar uma história sem obedecer a ordem cronológica dos fatos. Em um texto para a revista Dionysos, de outubro de 1949, Nelson fala sobre a proposta da peça, bem como das técnicas e dificuldades decorrentes de tal ideia:
Inicialmente, havia um problema patético: a peça, por sua própria natureza, e pela técnica que lhe era essencial e inalienável, devia ser toda ela construída na base de cenas desconexas. Como, apesar disso, criar-lhe uma unidade, uma linguagem inteligível, uma ordem íntima e profunda? Como ordenar o caos, torná-lo harmonioso, inteligente? (Rodrigues, 2000, p. 7)
Nelson conseguiu superar estas questões que ele mesmo se colocava e escreveu a história de Alaíde, uma jovem que é atropelada e levada em estado de choque para o hospital. Tudo indica que ela está fora de si, em estado inconsciente, mas sua mente funciona a todo vapor, como é visto pelo expectador. O passado se aflora e entre desejos oprimidos, fatos, reminiscências de leituras e delírios a peça se desenvolve no entrelaçamento de seus três planos: realidade, memória e alucinação (Cavalcanti citado por Cadengue, 2000).
O efeito de tal façanha foi imediato tanto no público quanto na crítica. Segundo Eduardo Portella (citado por Cadengue, 2000), a peça dividiu a crítica teatral em três grupos: os ortodoxos que depunham contra a autenticidade teatral de Nelson; os que viam o caráter inovador e assim aclamavam Vestido de noiva como a primeira grande peça do teatro brasileiro; e, ainda, um grupo que acusava o autor de mistificação e paranoia.
Bóris Trindade (citado por Cadengue, 2000) definiu a peça como difícil, por mais que reconheça que Nelson Rodrigues tenha dado um tratamento jornalístico às manifestações do subconsciente3, propondo-se a fazer o que James Joyce fizera no romance. A este respeito, Piglia destaca que Joyce foi quem melhor fez uso da psicanálise, pois percebeu que na construção de uma narração não se precisa obedecer uma lógica linear e "utilizou a psicanálise de uma maneira notável e produziu na literatura, no modo de narrar, uma revolução sem volta (Piglia, 1998, p. 112).
Ao pensarmos que Nelson sintetizou para a cena teatral brasileira esta revolução na construção de uma narração, retornamos ao nosso ponto inicial de perceber a peça Vestido de noiva como um fenômeno, tanto teatral como no sentido de colocar a manifesto o que normalmente se oculta.
Plano 2: Memória
Rotineiramente o termo "memória" implica na capacidade de guardar, conservar e evocar ideias ou lembranças adquiridas antes, isto é, algo ausente, cronologicamente localizado no tempo passado. No campo literário, memória refere-se a narrações históricas, escritas pela pessoa que vivenciou os fatos a serem descritos. Mas qual o propósito de iniciarmos o tópico apresentando sentidos já tão estabelecidos?
Introduzimos estas visões que caracterizam como simples a relação entre história e memória, na qual "a memória reflete o que aconteceu na verdade e a história reflete a memória" (Burke, 2000, pp. 69-70), para problematizarmos o que a história toma como "verdades": lembranças conservadas em dissertações literárias ou científicas; livros; recordações de fama, nome, crédito e reputação em relação à peça Vestido de noiva.
Afirmamos verdade para intrigar, pois se são estas análises, a seguir apresentadas, as verdadeiras, estaria a nossa como falsa? Ou se acaso, em algum momento, com estas dialogarmos, estaríamos produzindo uma meia verdade? Assim, quando o provérbio chinês diz que "meia verdade é uma mentira inteira" complementamos com a proposta de que "uma verdade inteira é sempre meio ou meia mentira".
Do arsenal de análises, duas nos saltam aos olhos e cremos que nos instrumentalizam para pensarmos sobre esta investigação. A primeira feita, por Eudinyr Fraga, é uma apreensão da obra teatral de Nelson Rodrigues com a lente do expressionismo. A segunda, realizada por Carmine Martuscello, é uma leitura psicanalítica sobre as peças do autor com o intuito de buscar nestas os aspectos da personalidade daquele que as escreveu.
Fraga desde o início esclarece que sua intenção não é a de afirmar que Nelson fora um expressionista, mas sim demonstrar que a sua visão de mundo muito se assemelha a esta concepção existencial e artística. Concepção esta que é a expressão do "homem dilacerado ante o caos universal que o rodeia, manifestando-se em visões subjetivas, frenéticas e delirantes. É a tomada de consciência do conflito entre as pseudo-realidades do mundo e a realidade interna de cada um, através da dor e do sofrimento" (Fraga, 1998, p. 19).
Portanto, vemos no expressionismo um artista disposto a criar uma realidade e não apenas retratá-la, fazendo desta extensão de tensões e necessidades espirituais. E se pretendemos aqui mostrar uma análise feita a partir da realidade criada por Nelson, faz-se mister mencionar que, para Fraga, a peça retrata a tragédia de Alaíde que roubou o namorado de sua irmã Lúcia e após discutir com esta corre para a rua onde é atropelada: "Toda a ação passa-se em sua memória, enquanto está sendo operada, confundindo lembranças com desejos, os mais secretos. Nelson manipula com extrema habilidade três planos: memória, alucinação e realidade quotidiana" (Fraga, 1998, p. 60).
A menção de Fraga sobre a habilidade de Nelson em manipular os três planos é algo ressaltado como um ponto no qual o autor se distancia dos autores expressionistas, que na ânsia de evidenciarem o espaço interno do protagonista apresentam uma realidade distorcida, ao passo que Nelson não abandona a posição de "organizador do caos" (Fraga, 1998, p. 65). E é neste caos que se constroem os personagens que, por mais que partam da óptica da protagonista, não se configuram como abstrações e sim como caricaturas humanas. Pedro, então, deixa de ser apenas um para representar diversos Pedros e a identificação de Alaíde com Madame Clessi toma proporções não de adultério ou de intenções de levar uma vida cortesã, mas sim de realizar a máxima transgressão possível (Fraga, 1998).
Uma questão levantada por Fraga assemelha-se à proposta deste trabalho de pensar as memórias como um sentido dentre muitos outros, fruto não só da realidade em si, e sim da própria percepção de quem os viveu (Maluf, 1995). Neste caminho, Fraga afirma que "começamos a perceber que não existe uma memória em estado puro, ou seja, ela subsiste alterada pelo pensamento liberto da censura social" (Fraga, 1998, p. 66). E a partir desta, aponta a realidade como ficção e que o fascínio da proposta rodrigueana é de não se saber ao certo até que ponto a memória está distorcida pela imaginação de Alaíde, bem como a ambiguidade que torna Madame Clessi a mais real das personagens.
Como anunciado, a outra análise aqui apresentada será a de Martuscello, que tem como objetivo descobrir aspectos da personalidade de Nelson que o teriam motivado no seu processo criador. Dessa forma Martuscello busca extrair de cada peça a motivação inconsciente que a constituiu. A fundamentação desta proposta está na afirmativa de que "a elaboração criadora propiciada pela arte é uma alternativa ao sintoma, e transforma o que seria um impasse patológico numa saída proveitosa e saudável" (Martuscello, 1993, p. 14), ideia extraída de alguns textos freudianos nos quais a elaboração artística é analisada como equivalente às elaborações oníricas.
A peça Vestido de noiva é analisada junto com a peça A serpente, ambas tendo como núcleo principal o drama de duas irmãs que disputam o mesmo homem. E no enredo apresentado por Martuscello ao seu leitor é esta relação de Alaíde e Lúcia o eixo central da trama.
Em sua análise destacam-se três articulações: a análise feita em relação à personagem Clessi, que assume para Alaíde uma posição análoga ao fazer do psicanalista, posição que compartilhamos e que no próximo tópico desenvolveremos; a apreensão de que Nelson assume uma postura de vitória perante a morte, ou ao menos consegue burlá-la, algo associado à não aceitação da própria castração; e, por fim, a elucubração que Martuscello vai construir a partir da reiteração do complexo de Édipo como "a matriz psicológica mais rudimentar do triângulo amoroso" (Martuscello, 1993, p. 246), para assim caracterizar como incestuosa tanto a relação de Clessi com seu jovem namorado como a identificação de Alaíde para com a vida de prostituta.
Sobre esta questão, ainda que se reconheça nessa relação incestuosa a concepção clássica do Édipo, consideramos que Nelson intui mais: Alaíde, moribunda no plano da realidade, ao recordar o diário de Madame Clessi mergulha no que em literatura se chama de mise en abyme, expressão francesa que significa "posta em abismo". Nesse mergulho de Alaíde, provavelmente sem volta, o diário de Madame Clessi se apresenta como um espelho que a reflete, a quem, por sua vez, reflete também, configurando o abismo. Saltam então duas perpectivas: a primeira é que, refletindo enquanto ficção – ou memória de outro –, a realidade psíquica de Alaíde, o diário e a própria tragédia da prostituta explicitam o tom dos desejos de Alaíde; na segunda, mais conceitual, ao invocar o papel da esfinge na peça de Sófocles, Madame Clessi propõe o enigma, cujo não deciframento configurará a tragédia. Clessi é, sob essa perpectiva, o arauto da desgraça que se abaterá sobre Alaíde, mas ao mesmo tempo a única possibilidade de salvação da moribunda de descobrir seu desejo. É uma aula sobre o complexo de Édipo, e nada nos impede de pensar que o gozo negado em vida por Alaíde pode apresentar-se como possibilidade na morte.
Em uma espécie de síntese da análise de Martuscello, poder-se-ia dizer ter ele realizado o que comumente chamamos de psicanálise aplicada. Ao percorrer as peças rodrigueanas realizando uma leitura com base na teoria freudiana, o autor constrói uma análise na qual as peças de algum modo ilustram a teoria freudiana, sem que esta última se afete. Minerbo e Colgs (2006) fazem uma sucinta distinção entre o exercício de psicanálise aplicada e uma interpretação psicanalítica, visto que esta última visa a criar-achar a teoria própria do material analisado, seja ele filme, peça, paciente etc.
Plano 3: Alucinação
Alucino! Alucinamos na e sobre a vida, no real e no imoral. Alucinar em um tempo de ponteiros descompassados, mas que ainda nesta condição registram e fundam sua própria lógica. A alucinação que é de um homem e também constituinte do próprio homem que alucinando cria Alaíde. Em personagem esta nos chega embalada, embrulhada como arte e afirmada como obra, tão obra que a lógica alucinante já nos leva a afirmar que "apresenta-se como um conjunto articulado que possui sua própria afetividade, seu próprio sentido do que é próximo ou distante, verdadeiro ou falso" (Frayse-Pereira, 2004, p. 35).
Proposta feita, como obra/paciente, Vestido de noiva brada por ser analisada. E confessamos que nosso intuito era de realizar uma interpretação psicanalítica, como já exposto, buscar criar a própria teoria da peça. Porém, nosso fazer mostrou-se munido de um arcabouço teórico que instrumentalizava ver a peça a partir de como se configurava seu plano da memória e a maneira como Alaíde articulava suas lembranças.
Não significa que este arcabouço tenha impossibilitado que surgisse uma experiência do nosso contato com a obra, de fato ela emergiu. E assim como os que se arriscaram na façanha de analisá-la, passamos a ter nosso próprio enredo sobre a peça, o qual parte da consideração que Vestido de noiva é uma peça que utilizando-se da metáfora do entre a vida e a morte encena a busca livre, per via de associação, de sentidos possíveis quando não se tem definido o sentido rotineiro da própria história. Em outras palavras, encena a associação livre na e pela qual estamos designados a nos constituir. Na peça vemos afetos que vagam em busca de suas ideias reprimidas. A mistura temporal expressa por meio do embaralhar entre os planos da alucinação, memória e realidade coloca em evidência a intemporalidade do inconsciente que no seu característico tempo nos estrutura enquanto estranhos na própria morada. Mais do que seus conteúdos manifestos e latentes a peça é, por nós apreendida, como uma preciosidade enquanto estruturação da forma de funcionamento mental do homem na sua busca diária de constituição de si.
Diante disso, o que realizamos? Interpretação ou aplicação? Deixamos o impasse para livremente alucinar, ou em termos freudianos, fantasiar sobre Alaíde em compasso ou descompasso com as reminiscências das leituras realizadas.
Já imbuídos da maneira rodrigueana de expor o pensar afirmamos: a existência da realidade cria a alucinação! Nelson pararia por aqui e sua frase, com a autonomia que lhe cabe, passaria a dialogar e trilhar o seu próprio caminho, conhecendo aí amantes e rivais. Porém, como disse José Régio em seu poema Cântico Negro: "Não, não vou por aí! / Só vou por onde me levam meus próprios passos..."4. E assim, influenciados por outros diálogos, julgamos necessário ampliar a questão com mais palavras para que seja possível ao final da explanação estarmos juntos com a convicção de que alucinação e realidade mantêm o mesmo absurdo da existência que a dupla guerra e paz5.
A alucinação é comumente compreendida, tanto no discurso médico quanto no popular, como a convicção da percepção de algo que não se encontra na realidade. Dessa maneira constata-se um bipolo, estando de um lado a realidade como sendo o que de fato existe e é comum a todos e do outro a alucinação, enquanto uma realidade não compartilhada.
Herrmann propõe pensarmos a realidade não como materialidade, se opondo desta forma à alucinação. Este autor elabora uma objetivação metapsicológica metodologicamente relevante na qual a realidade é tida como uma das superfícies da representação, que possui como a outra superfície que a compõe a identidade. Tendo a função de defesa contra o contágio com o real, a representação, seja ela no sentido de constituição de si (Identidade) ou do mundo em que vive (Realidade), é fruto da lógica de produção existente entre o inconsciente tradicional freudiano, que nas teorizações de Herrmann assume o posto de desejo, e a própria ideia de real que evidencia como continente desconhecido também o mundo em que vivemos (Herrmann, 2001). Temos, portanto, um novo ancoradouro que nos permite sair da dualidade acima destacada e pensarmos tanto a alucinação quanto a realidade, esta segunda já não mais em itálico, como representações, mas como oriundas de criações humanas, caracterizando-se em ficções.
Assim como Alaíde, esta investigação usa do seu plano da alucinação para fantasiar rumo à criação e à percepção de outros sentidos, partindo da concepção de que "o importante é que os três planos constroem uma realidade – a da cena" (Lopes citado por Cadengue, 2000, p. 30). E se possível for, propomos pensar a cena enquanto realidade de um plano da vida humana, criado com lógica, razão, pesadelo ou sonho e delírio, visto que estes últimos "mesmo sem traduzirem fatos ligados ao passado, pertencem ao homem (é força de expressão), e o que nos pertence é real, embora viva no rol das coisas esquecidas" (Gomes citado por Cadengue, 2000, p. 32).
O delírio de lembranças que não é traduzido como fatos ligados ao passado, mas que mesmo assim constitui o próprio homem, ratifica a ideia nietzschiana de lembrar o futuro. Entendendo o termo lembrar como uma genuína celebração e estando claro que para este filósofo "quem faz o mesmo de forma criativa gera o novo" (Barrenechea, 2008, p. 60).
Este lembrar produtor está inserido numa ordem desordenada cronologicamente que evidencia uma concepção de tempo correspondente à conclusão a que Einstein chega sobre a passagem do tempo, ao afirmar que esta "deve ser vista como um mero aspecto da nossa consciência sem qualquer significância física objetiva" (citado por Whitrow, 2005, p. 167).
O efeito oriundo do uso da técnica de sobreposição dos planos que permitiu que as cenas não obedecessem ao tempo cronológico evidencia um enredo regido pela temporalidade do inconsciente humano. Inconsciente este que, ao contrário do que muitos pensam, não se caracteriza por uma atemporalidade e sim por ser intemporal.
[...] as três dimensões do tempo fazem a dinâmica dos processos psíquicos, e constata-se que a temporalidade não cronológica do inconsciente se manifesta como uma temporalidade relativa a algumas modalidades de tempo; assim sendo, podemos considerar que o inconsciente é regido por uma intemporalidade [...] sugerindo a noção de um fluxo contínuo incessante e ininterrupto, o que evoca a presença de tempo e não a noção errônea de atemporalidade do inconsciente. (Marçola, Romera & Paravidini, 2010, p. 93)
A realidade humana de constituição de sua instância ilusória e ficcional, isto é, seu eu, vivenciado por Alaíde na peça, é de certa forma conduzida e proporcionada pela personagem de Clessi. Em uma analogia, poder-se-ia pensar através desta no papel desempenhado pelo psicanalista, analogia também presente na análise de Martuscello. É a personagem de Clessi que por meio de seus questionamentos, espantos e excitações rege paulatinamente Alaíde rumo à criação de si, num ritmo que leva em consideração o tempo próprio da protagonista em relação a sua resistência em vivenciar a carga de afeto oriunda de cada nova descoberta.
A atuação de Clessi, vista por esta perspectiva, pode ser percebida em sua postura, desde o início da peça, de auxiliar Alaíde a definir-se ora relembrando o que ouve ora se questionando. Um trecho que ilustra esta função sendo exercida é a descoberta/criação da personagem antagonista da peça, aquela que disputa com Alaíde o amor de Pedro.
Junto à lembrança da preparação de Alaíde para a entrada na igreja Clessi intervém:
CLESSI – Ela só apareceu depois! Você sozinha no quarto, sem ninguém, Alaíde? Uma noiva sempre tem gente perto. O quê? Você pode não se lembrar, mas lá devia ter alguém, sem ser sua mãe! Lembre-se. (Rodrigues, 1981, p. 126)
E assim que constata ser esta pessoa a Mulher de Véu, uma nova realidade é construída e a cena antes realizada na ausência de um participante volta a existir agora com a presença física desta outra personagem. E prossegue tendo agora o embate de Alaíde com a Mulher de Véu em prol de saber qual é a verdadeira dona do amor de Pedro. Diante da nova realidade, Clessi inicia uma sequência de intervenções que culminam na constatação de que a Mulher de Véu é na verdade Lúcia, irmã de Alaíde.
CLESSI (microfone) – Também você não se lembra de nada! Procure vê-la sem véu. Ela não pode ser uma mulher sem rosto. Tem que haver um rosto debaixo do véu. (Rodrigues, 1981, p. 134)
Quando ocorre a reencenação da visita de D. Laura à Alaíde, agora com a presença física da Mulher de Véu, Madame Clessi questiona:
CLESSI (microfone) – Ah, então a pessoa que D. Laura beijou na testa – a tal que você não se lembrava quem era – é a mulher de véu? O que foi que as duas disseram naquela hora, Alaíde? (Rodrigues, 1981, p. 141)
Noutro momento diante da encenação no plano da memória da recusa da Mulher do Véu em ir ao casamento, Clessi faz indagações à Alaíde sobre as causas desta não ir, para assim chegar à conclusão de que a Mulher de Véu é Lúcia.
A ordenação – ausência de personagem; Mulher de Véu; Lúcia – evidencia uma resistência de Alaíde diante da constatação de sua rivalidade com a irmã. Este movimento de esquecimento frente a uma lembrança é elucidado por Freud (1898/1976a) como advindo da busca de qualquer fator psíquico, neste caso a memória, em procurar a liberação de prazer e evitar a sensação de desprazer.
Ainda em Freud temos a afirmativa de que "o tema suprimido se esforça, de todas as formas possíveis, por estabelecer uma conexão com o que não está suprimido" (Freud, 1898/1976a, p. 321). Esforço claramente visível na condição dos diversos personagens masculinos, do plano da alucinação, possuírem o rosto do marido de Alaíde: Pedro.
Neste caso também nota-se a forma como cada personagem com o rosto de Pedro surge para que seja vivenciado o afeto que até então estava deslocado da ideia que fora reprimida. Enquanto em relação a O Homem, personagem que chega ao bordel de Clessi e trata Alaíde como uma prostituta, ela vive a ambivalência de querê-lo e em seguida desprezá-lo com um bofetão. Com o Homem de Capa é acusada de assassina, sentindo-se acusada e oscilando entre a posição de vítima e de gozadora frente à possibilidade de ter assassinado o marido. Em suma, na sua relação com aqueles que possuem o rosto de Pedro, Alaíde vive a atração e repulsa diante do amar e odiar o mesmo homem.
Uma questão levantada por Sábato Magaldi servirá para concluir nossa análise da peça. Este autor destaca que mesmo após a morte de Alaíde, no plano da realidade, seu delírio continua. Como explicativa para tal façanha, afirma ele:
Assim como são tênues as fronteiras entre os planos da memória e da alucinação, nada impede que Alaíde, no hausto final, antecipasse o que ocorreria na realidade. As sequências rápidas que sucedem à morte da heroína – remorso e recuperação de Lúcia, e casamento com o viúvo – poderiam ser ainda a projeção da mente decomposta, embora o autor assinale que se trata do plano da realidade. Mas como julgar real a última imagem, em que Alaíde vai entregar à noiva o buquê de núpcias, na presença fantasmagórica de Clessi? Depois de se fundirem as marchas fúnebre e nupcial, apagam-se as luzes, e só fica iluminado, sob uma luz lunar, o túmulo de Alaíde. É ela quem preside toda a trama. (Magaldi in Rodrigues, 1981, p. 18)
Com uma proposta alucinatória destacamos que esta problematização coloca em xeque toda a análise até aqui desenvolvida, na qual afirmamos que a peça com sua desordem temporal e confluência dos planos ilustra a busca de Alaíde por construção de si. Esta questão levantada por Magaldi evidenciou-nos que quem na verdade assume o papel de criador do enredo é o próprio espectador, estando ele na ilusória condição de autor de Alaíde. Aquele que em meio a reminiscência, lembranças e possíveis fatos (caso esses venham a de alguma forma existir) alucina rumo à criação da realidade. A peça passa então a encenar não a busca de Alaíde de construção de si, mas a possibilitar a experiência afetiva de nos vermos, numa posição que já é nossa por sermos humanos, de construtores da própria ficção, seja em sua superfície social (realidade) ou individual (identidade).
Plano 4: Construção delirante
Não por acaso a estrutura que sustentou esta investigação assemelha-se à estruturação da peça Vestido de noiva. Assim como esta última constrói um panorama com realidades, memórias e alucinações, nós por meio da realidade de uma história em anos que não vivemos, resquícios e ressonâncias de leituras que fizemos e alucinações feitas em nós, acabamos por construir mais uma verdadeira e única análise. Pois como bem disse Manuel de Barros, "tudo que não invento é falso" (Barros, 2010, p. 345).
Na busca por dissertar, piramos. No processo de escrita, fragmentos de textos se alinhavaram para juntos tecerem a coesão de vestido de lírio, e não mais de noiva. Afinal, o que é esta investigação senão uma construção academicamente delirante?
Referências
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Endereço para correspondência
RAFAEL DE MELO COSTA
Av. Floriano Peixoto, 386 – sala 306
38400-100 – Uberlândia – MG
tel.: 34 9147-2887
E-mail: costa.rafaelmelo@gmail.com
MARIA LÚCIA CASTILHO ROMERA
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LUIZ CARLOS AVELINO SILVA
Rua Dr. Luiz Antônio Waack, 1050
38402-030 – Uberlândia – MG
tel.: 34 3232-1756
E-mail: luizavelino@yahoo.com.br
Recebido: 18/11/2013
Aceito: 06/12/2013
* Psicólogo, mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia e professor do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás – Campus Catalão.
** Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia, psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e do Centro de Estudos da Teoria dos Campos (CETEC).
*** Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, doutor em Psicologia da Educação e Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e professor associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.
1 Artigo escrito como requisito de conclusão da disciplina Tópicos Especiais em Crítica e Cultura: dramaturgia( s), mediações e recepções do Programa de Pós-Graduação em Artes – Mestrado da Universidade Federal de Uberlândia, cursada em 2011 e ministrada pelos professores Dr. Luiz Humberto Martins Arantes e Dra. Maria do P. Socorro Calixto Marques, a quem agradecemos pelas contribuições feitas durante a disciplina. Em 2012 foi apresentado no Pré-Congresso Fepal "Invenção e Tradição", realizado em Uberlândia – MG, com o título "Planos Reais? Costura delirante de um vestido sem noiva", tendo sido comentado pela Dra. Leda Herrmann da SBPSP.
2 "Toda unanimidade é burra." (Myrna, 2003, p. 13)
3 A crítica toma a palavra subconsciente no sentido de inconsciente e não como teorizado nos trabalhos de Pierre Janet.
4 Poema publicado em 1925 no livro Poemas de Deus e do Diabo.
5 Ideia desenvolvida na troca de cartas entre Freud e Einstein presente em Freud, 1976b, sob o título "Por que a guerra?"