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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.37 no.58 São Paulo July 2014
EM PAUTA - O DINHEIRO
Dinheiro e psicanálise
Money and psichoanalysis
Dora Tognolli*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
RESUMO
O texto parte de conceitos importantes, como valor de uso e valor de troca, mercadoria e fetiche, levando em conta as ideias marxistas e freudianas, na tentativa de conferir um status mais complexo ao tema. Discute também algumas situações peculiares, que ocorrem na clínica psicanalítica, mediadas pelo dinheiro, que resvalam em sentimentos de vergonha, impasses, mal-estar, transferências negativas. E coloca a seguinte questão: até que ponto os psicanalistas estão preparados para lidar com o tema dinheiro, que, ao lado da sexualidade humana, Freud erigiu como grande tabu?
Palavras-chave: Mercadoria, Fetiche, Transferência, Vergonha, Tabu.
ABSTRACT
The text departs from important concepts such as the value of use and exchange, merchandise and fetish. Taking into account the ideas of Marx and Freud, it attempts to confer the theme a more complex status. It also approaches some peculiar situations that occur in the psychoanalitical clinic, mediated by money, which are at the edge of feelings of shame, dilemma, discomfort, negative transferences. And it lays the following question: up to what point are psychoanalists prepared to deal with the issue of money, which, besides human sexuality, was erected by Freud as a great taboo?
Keywords: Money, Merchandise, Fetish, Transferece, Shame, Taboo.
O dinheiro não é tudo. Tudo é a falta de dinheiro.
Millôr Fernandes
Não quero dinheiro.../ Eu só quero amar/ Só quero amar/
Só quero amar...
Tim Maia
Introdução
O dinheiro está tão incorporado ao cotidiano, que chega a ser banalizado de tal forma que não nos damos conta de sua complexidade. Quem não se viu em dificuldades ao explicar a uma criança seu caráter simbólico? Falamos que dinheiro não cai de árvores, que passamos o dia todo fora de casa para garantir o sustento da família, em tom muitas vezes sacrificial e dramático. E sem nos darmos conta, transmitimos uma dupla mensagem: que dinheiro não é tudo, mas que tudo fazemos para obtê-lo. As formas de educação monetária fazem parte dos ensinamentos que transmitimos: a mesada, o cofrinho que prevê a economia e o cuidado com as moedas, a responsabilidade de fazer compras, trazer o troco e saldar as dívidas.
A escolha de uma profissão tem como uma de suas metas a autonomia, a entrada no mundo adulto, e é marcada com a remuneração; um valor do trabalho de cada um, que garante as trocas e a sobrevivência. O psicanalista não escapa disso: tem um trabalho remunerado, ao qual é atribuído um valor.
A questão central deste texto é a discussão da profissão de psicanalista dentro do mundo das trocas, das mercadorias.
A abordagem do tema por um psicanalista é pontuada de riscos: a superficialidade diante de conceitos econômicos, de um lado; a postura moralizante anticapitalista e anticonsumista, de outro, que desconsidera que o dinheiro pode ser sim uma fonte de prazer e o regulador de todas as trocas sociais; ou as queixas diante de uma profissão dita elitista, cara, intangível, impossível.
Em função do tratamento dado ao tema do dinheiro, em nossos meios profissionais, onde ele ganha ares de tabu, cabe trazê-lo à tona e problematizá-lo.
Painel
Como ponto de partida, tomo o método de Aby Warburg (1866-1929). Warburg foi um célebre historiador de arte alemão que se dedicou ao estudo de obras do Renascimento. Warburg não se limitou a tecer uma historiografia das obras estudadas. Sua forma de pensamento estabelece uma conexão entre as forças do passado, que podem irromper em produções do presente. Essas forças operam de um modo latente, ultrapassando barreiras históricas que reduzem a mera importância cronológica e sincrônica dos fatos. Como se o passado irrompesse e se manifestasse no presente, resultando em algo novo, muito distante de mera repetição. O conceito de memória, na concepção de Warburg, inclui a tensão constante entre as reminiscências e a vida atual, presente, como num processo criativo sempre em movimento.
Entre 1924 e 1929, após uma internação prolongada no hospital de Biswanger, na Suíça, diagnosticado como esquizofrênico, Warburg inaugurou uma proposta de exposição denominada Atlas Mnemosyne (Warburg, 2010), até hoje reproduzida e tomada como exemplo por muitos artistas e pensadores. Warburg reuniu diversos objetos de sua investigação em painéis móveis, que eram montados, remontados, desmontados, repletos de imagens, cuja distribuição espacial reconfigurava a ordem e as classificações lógicas. Para Warburg, qualquer imagem, independentemente da cultura onde fora gerada, implicava um cruzamento de múltiplas migrações. Como num exercício de livre associação, as imagens, dispostas em painéis, inauguravam um diálogo criativo e abriam sentidos diversos. Num mesmo painel, podemos nos deparar com uma cópia do Nascimento de Vênus, de Botticelli; uma ânfora grega; uma foto de jornal de época.
A observação dos painéis de Warburg provoca estranhamento, uma vez que rompem com a classificação lógica e temporal dos objetos; com isso, abrem-se novas perspectivas, através do encadeamento proposto.
Para iniciar o texto, apresento um painel que tem como núcleo a palavra dinheiro, a partir da qual são geradas associações, representadas pelos significantes enumerados, com a proposta de iniciar um diálogo que deixa no ar mais perguntas do que conclusões.
Mercadoria, fetiche, marcas
Marx teoriza, magistralmente, o poder do dinheiro (Marx, 1978): objeto por excelência. Na medida em que possui a propriedade de comprar tudo, ganha o status de onipotência. O que os homens não podem enquanto homens, podem a partir do dinheiro; os homens não são mais o que são, mas o que o dinheiro lhes permite ser. O dinheiro é o objeto mais permeável a deslocamentos e condensações – mecanismos que a Psicanálise identifica nas operações humanas.
Marx aponta a contradição inerente ao conceito de mercadoria: a mercadoria contém em si o valor de uso – objeto que atende minhas necessidades; e o valor de troca – que contém o trabalho humano e as transformações dele decorrentes, ao lado de diversos outros significados. O dinheiro é o regulador dessa dupla e contraditória face da mercadoria – valor por excelência.
O valor de uso, que não guarda em si nenhum mistério, é o suporte para o valor de troca. As transformações dos produtos, propiciadas pela tecnologia, afastam cada vez mais as coisas de seu valor de uso, revestido simbolicamente numa rede sem fim. Os homens transformam a natureza, para poder habitá-la e significá-la; com o comércio e o advento das moedas, os objetos transformam-se em mercadorias, adquirindo um valor externo a eles.
No primeiro capítulo do Capital (Marx, 1983, p. 70), quando introduz o conceito de fetiche da mercadoria, Marx desvenda o caráter alienado do mundo regido pelo capital, onde as pessoas são coisas, e as coisas, pessoas, já que revestidas de valores sociais. Dentro dessa concepção, fetiche nada mais é do que a atribuição de um valor simbólico a algo material. Não se trata mais da coisa, mas de uma espécie de aura com que cada objeto foi envolvido.
Os objetos/mercadorias passam a exercer um poder enigmático sobre as pessoas. O trabalhador não se reconhece no objeto feito por ele ou por sua comunidade. Também não participa do valor atribuído a esse objeto, mesmo porque para Marx a grande questão não é o comércio ou a mercadoria, e sim a mais-valia que esse processo engendra. O dono do capital, o herdeiro, o rico, é quem possui a verdadeira chave desse sistema perverso e desigual.
Dentro da obra de Marx, temos uma visão profunda do ambiente moderno, que até hoje vivenciamos.
Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas: todas as novas relações se tornam antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens finalmente são levados a enfrentar [...] as verdadeiras condições de suas vidas e suas relações com seus companheiros humanos. (Marx, citado por Berman, 2007, p. 31)
Para Marx, a burguesia transformou todos seus valores pessoais em valor de troca. Toda conduta humana, se precificada, adquire valor: numa espécie de liberdade sem princípios. Nosso valor humano transmuta-se em valor de mercado, e quanto maior nosso preço, melhor. Vamos até onde podemos ir, de preferência, sem limites. Parece cruel, mas é assim que o mercado funciona, e fazemos parte dessa circulação.
Num salto temporal, se pensarmos no significado das marcas (brands) e de seu valor, fica mais evidente o processo de reificação, teorizado por Marx, levado às últimas consequências. Se os diversos objetos fabricados se igualam, tornam-se commodities: seu preço está sujeito à unificação e sobra menos margem para o lucro. As marcas são uma espécie de aura, que incrementam o valor de troca e justificam que se cobre mais. Sua construção é um exercício de engenharia sofisticada, cujo resultado é o afastamento cada vez maior dos objetos de sua materialidade e aspectos tangíveis.
Um exemplo vivo dessa situação: nos idos de 1980, quando a atividade das agências de publicidade estava em franca ascensão no Brasil, o mercado de pesquisas e de comunicação esmerava-se em estudar demandas e criar marcas locais; uma agência local foi incumbida de lançar uma marca de sabonetes em Portugal, que, comparado ao Brasil, era uma terra inexplorada do ponto de vista dos marqueteiros. Ao conhecer o país, a agência percebeu que em Portugal um sabonete servia apenas para lavar/limpar o corpo. Ou seja, mero valor de uso. A estratégia de comunicação pretendeu ir além desse valor de uso, transformando o sabonete no "sabonete das estrelas" (slogan já presente no Brasil), o que justificaria seu preço superior aos exemplares locais, também chamados "marca-barbante". Aliás, a expressão marca-barbante significa marca barata, sem prestígio: derivada das primeiras cervejas cujo processo de fechamento era feito com barbantes, antes da invenção da tampa vedada com pressão, que hoje conhecemos. Na sociedade de consumo, nenhuma marca quer ser marca-barbante: nenhum profissional também o quer...
Dentro desse panorama, vale a pena a leitura de relatos da segunda metade do século XIX, época dos grandes salões e exposições universais, que causaram grande impacto dentro das cidades. Tais relatos nos dão uma ideia dos primórdios da mercadoria. No livro Estâncias, Agamben (2006) reproduz cartas de Rilke, de 1912 e 1925, onde fica claro esse choque. Rilke questiona a aparência dos objetos, seu simulacro, seu aspecto intangível, a perda de sua ligação material e o predomínio de seu caráter simbólico. A reação de Rilke revela certa nostalgia do mero valor de uso dos objetos, que, quando expostos em vitrines glamourosas, como as exposições e salões de Paris, observados pelo poeta, ganham um clima misterioso e enigmático.
A grande questão é que esse deslocamento de sentidos, essa aura da qual os objetos ficam revestidos, nos aliena de seu real valor, a ponto de não sabermos mais o significado que cada coisa tem para nós.
Esse raciocínio reconduz à ideia de fetiche, que guarda em si um paradoxo: entre os muitos sentidos que a palavra carrega, um deles é de que o fetiche reveste um objeto ou parte de um objeto cotidiano, que passa a ocupar o lugar do objeto inacessível que satisfaz a ilusão de completude. O objeto fetiche remete a algo que nunca pode ser possuído, já que inexistente no mundo dos objetos: dentro do modelo freudiano, o pênis da mãe, objeto perdido, que nunca existiu. O fetiche jamais coincide com o objeto em sua materialidade.
Se ficarmos à margem de uma perspectiva patologizante, que coloca o fetiche como perversão, podemos considerar que ele nos conduz ao mundo primitivo, onde os objetos são percebidos além e aquém de sua utilidade, numa espécie de topos-outopos revestidos de uma aura, de uma ilusão.
As brincadeiras das crianças nos contam que há algo além numa boneca ou carrinho, ou algo entre o sujeito e o objeto, uma área intermediária, onde reside o fetiche. Em sua etimologia, a palavra fetiche liga-se a factício, artefato: algo artificial, produzido pelos homens.
Portanto, os objetos humanos, construídos, estariam muito próximos da ideia de fetiche. Num grau máximo, se essa área predomina, entramos no território da alucinação, do delírio, da perversão, ou da arte, como a via Baudelaire: a obra de arte próxima da mercadoria, provocação de estranhamento, mistério e até inutilidade.
Voltando à mercadoria, ela guarda essa aura de fetiche, etiquetada pelo dinheiro. Das moedas de ouro e prata (valorosas), caminhamos para moedas de metal leve, papéis, cartões de plástico e marcas. Em poucos anos, paramos de valorizar e precificar os objetos por suas qualidades materiais: litros, gramas, volumes. O valor hoje advém da marca, da etiqueta: estágio elaborado da mercadoria que Marx sequer poderia supor. Há poucos anos, comprávamos produtos valorizados, como lençóis da ilha da Madeira, cashmere inglês, Vinho do Porto, café brasileiro, perfume francês: selos de origem. Hoje, compramos Nike, Louis Vuitton, Calvin Klein, Apple. Esse é nosso idioma.
Freud e o dinheiro
A teoria freudiana traz em si um desafio: a passagem dos objetos do plano sentimental e social para um plano psíquico, interno. Um charuto muitas vezes não é só um charuto, mas também é um charuto. O mesmo se passa com o dinheiro. Cabe então um olhar endereçado ao dinheiro, além de muita coisa que ele representa, como objeto interno, substituto e equivalente de outros objetos.
Freud aborda a temática do dinheiro em várias publicações e cartas. Vale recortar esse tema em seu cotidiano: em diversas correspondências (Fliess, Ernest Jones, Otto Rank), por exemplo, ele discorre sobre a relação peculiar que os americanos guardam com o dinheiro: ironiza sua astúcia e atenção exagerada às questões monetárias: "a América não presta para nada, além de render dinheiro" (Gay, 1989, p. 510).
Na época de Freud, a acusação direta aos Estados Unidos, que enfatizava sua compulsão por dólares, era quase um clichê. Freud chegou a considerar os americanos vítimas de uma espécie de retenção sádico-anal, que se manifestava em todas as suas relações e campos de atividades – nos negócios, na política, na cultura, no amor.
Em 1920, Freud recusa um convite para passar seis meses em Nova York, por 10 mil dólares. Como se os americanos aproveitassem a pobreza dos europeus, e quisessem comprá-los de forma barata.
O caráter anal é tema de diversos textos freudianos. No texto mais clássico ("Caráter e erotismo anal", 1908/1978a), Freud aponta que no inconsciente existe uma equivalência entre objetos: fezes/dinheiro/filhos/pênis – objetos intercambiáveis e facilmente confundidos. O objeto anal, representado pelas fezes e seus equivalentes, guarda características peculiares: não existe para o outro antes de sua expulsão, e mal se apresenta, desaparece para o sujeito. Ou seja, quando é expulso, se perde, é aniquilado. Portanto, um objeto de alto custo, um fazer (fezes – faecis – fazer) que dá trabalho e logo se perde na rede social. Sem contar que é um objeto maldito, tabu, que não deve ser tocado. No registro obsessivo, típico desse objeto anal, uma das angústias é de que o outro não aprove o que sai de dentro de mim, o que produzo. Outra classe de angústias é que, ao dar, eu me perca: uma saída para esse impasse é reter.
Numa carta a Fliess, de 22 de dezembro de 1897, Freud, ao relatar o caso de uma jovem obsessiva, comenta:
A própria palavra "fazer" passou por uma transformação análoga de sentido. Uma antiga fantasia minha, que eu gostaria de recomendar a sua sagacidade lingüística, versa sobre a derivação dos nossos verbos a partir desses termos originalmente copro-eróticos. Mal posso enumerar-lhe todas as coisas que, para mim, se transformam em... excremento (um novo Midas!). Isso se harmoniza perfeitamente com a teoria do mau-cheiro interno. Acima de tudo, o próprio dinheiro. Creio que isso se dá através da palavra "sujo" como designar "avarento". (Freud, citado por Masson, 1986, p. 289)
Curiosamente, o dinheiro, de um lado tão valorizado, é considerado sujo, deve ser escondido, não pode ser tocado. Nas transações comerciais, é comum que separemos o momento de pagar: ele pode estragar a cena. Valor/sujeira; retenção/vergonha. É comum silenciarmos em assuntos de dinheiro. Quanto ganhamos, quanto guardamos.
Há um relato curioso no livro de Peter Gay (Gay, 1989, p. 159): em 1905, Freud é consultado por um poeta suíço, Bruno Goetz. Ao atender o jovem, ciente de sua condição econômica difícil, Freud introduz o tema da pobreza: em certo momento, pergunta ao poeta quando comeu seu último bife. Após a consulta, Freud entrega a ele um envelope, e o agradece pelo prazer que sua poesia lhe proporcionou. Mais tarde, ao chegar ao hotel, o jovem poeta dá-se conta de que Freud havia colocado duzentas coroas no envelope. Neste caso, quem pagou foi o médico, e não o paciente.
Outra vez, em 1921, para ajudar Lou Andreas Salomé, envia a ela dinheiro para as despesas com sua viagem a Viena. Ainda em 1922, Lou Andreas Salomé aceita 20 mil marcos de Freud, em função de sua clínica parca.
Nesses exemplos, fica clara a proposta de Freud: não fazer segredo diante de assuntos monetários, e ao mesmo tempo não erigir o vil metal como Sr. de nossas vidas – postura que tem conotações mais de generosidade do que ambição mesquinha. Os psicanalistas incluem o dinheiro na rede de significantes, tendo o cuidado de observar em cada paciente, caso a caso, como entra essa circulação, tendo em vista a economia psíquica, a geração de angústia, a sensação de poder, os objetos idealizados, o superego – entre outras coisas. E em seu próprio caso? Como funciona esse objeto, na prática psicanalítica, dentro do mundo e da assembleia interna de objetos e entidades de cada analista?
A Psicanálise como Mercadoria
Numa reunião institucional, ocorrida há pouco tempo, o coordenador fez uma pergunta que silenciou diversos psicanalistas: "quem de vocês vive do trabalho em consultório?" Silêncio na sala...
A pergunta deve ter tocado numa área de segredo? Numa área na qual não devemos tocar? Neste caso, estamos beirando a dupla face do dinheiro: objeto de deleite e vergonha; preocupante na falta e no excesso.
Em reuniões de psicanalistas, é muito comum observarmos que o setting é alvo de cuidadosas recomendações: frequência, divã, tempo de análise. Sem dúvida, os honorários fazem parte do setting, mas não são tratados abertamente entre colegas de profissão. Qual será a razão?
Algumas associações de pacientes encaram mais de frente essa questão do que os própiros psicanalistas:
Você parece prostituta: entra um, sai outro, deita um, deita outro, e cobra caro, hein?
Os psicanalistas só têm uma diferença dos padres: como eles, devem guardar segredo e escutar sem preconceito, só que cobram...
Resolvi parar: depois de dois meses, não senti diferença. Se melhorei, foi por causa do remédio. R$300,00 por sessão, menos de uma hora de conversa... é demais pra mim.
Quero parar de vir aqui: é muito caro! Com esse dinheiro, podia comprar um monte de coisas... (dito por uma criança de 8 anos)
Em alguns atendimentos, a questão do dinheiro surge e vira tema. Muitos pacientes tocam em nossas feridas narcísicas do valor que temos sem constrangimento. O que temos a dizer? Resistência? Inveja? Barganha por amor? O fato é que veicula interrogantes sobre nosso valor, sobre como podemos sustentar essas acusações, na transferência.
Cabe traçar um itinerário desse objeto por excelência, nas nossas formações, na nossa cultura e na clínica cotidiana. Como os painéis de Warburg, fazermos nossos próprios painéis para favorecer certas circulações cristalizadas e atualizá-las, tendo como tela a clínica atual.
A esse ingrediente sagrado, de tabu, que o dinheiro carrega, acrescentamos o país onde vivemos, caracterizado por desigualdades econômicas imensas, com heranças de escravidão cruel cujos efeitos marcam até hoje os estratos sociais, onde o povo parece estar acordando (ou não?) diante de segredos e maus-tratos que ocorreram com o dinheiro público, onde os estádios de futebol, "para europeu ver", mais se parecem ideias fora de lugar, uma vez que não há saúde e escolas públicas dignas de seus frequentadores.
Trata-se também de pensarmos a Psicanálise no Brasil: mais precisamente em São Paulo, considerada cara, para poucos, cara até para nós, do ramo. As instituições de formação estão inseridas num contexto, que vai muito além do mundo interno: esse contexto precisa ser problematizado. Essa é uma dívida que temos para com a nossa profissão. A discussão está aberta e em aberto.
No livro A apreensão do belo (Meltzer, 1994), há um capítulo que trata da violência e das fronteiras mentais. Destaco a diferenciação que o autor faz entre intimidade e segredo. A intimidade tem a ver com objetos internos integrados, em movimento, onde circula certa liberdade e criatividade; já o segredo é da ordem da violência e do poder; pressupõe uma instância quase divina e cruel, que tudo julga e pune. Nesse sentido, aproximo o aspecto de segredo, comum, nas temáticas do dinheiro, como uma problemática que deve ser encarada.
Independentemente da escola ou do autor de nossas afinidades eletivas, a Psicanálise promove um retorno ao infantil, ao lugar de onde viemos e para onde sempre retornamos, já que nunca é totalmente ultrapassado. O adulto quer progredir, enriquecer, transformar-se "no cara", que tem "a coisa". Nesse sentido, evita entrar em contato com esses estratos da falta, da melancolia, dos objetos perdidos, dos objetos nunca possuídos. O dinheiro esforça-se para apagar vestígios, tapar os buracos, pagar as dívidas, recusar-se às origens e a esse infantil. A Psicanálise deve ir na contramão desse movimento. Nossa mercadoria pode não ser tão sedutora, para muitos...
Para entender a face de tabu e segredo que o tema dinheiro carrega, não basta fazermos uso apenas das teorias psicanalíticas.
Quando Marx fala da perda do halo, da profanação do sagrado, de certa banalização das profissões, todas elas equiparadas pelo dinheiro (Berman, 2007, p. 140), inclui todos os profissionais na categoria dos assalariados – professores, advogados, médicos. A perda do halo é uma espécie de metáfora que se refere à profanação das diversas ocupações: tudo é desmistificado, nada é tão intocável.
A perda do halo traz um aspecto libertador, mas outro terrorífico. Se sou livre, todos também são: um pode atropelar o outro, competir com o outro, a partir de sua força de trabalho/mercadoria. Só que novos halos são reinventados, revestindo cada profissão com novos significantes. Uma vida despida de halos parece assustadora. Depois de Nietzsche, quando passou-se a considerar que Deus estava morto, o que pode sustentar o humano?
Um profissional liberal, que oferece a si mesmo como mercadoria, também é colocado em xeque, e sua remuneração é a contrapartida de seu valor, do que ele entrega. Seu trabalho também sofre os mesmos processos de um assalariado: após entregar seu produto, mediante uma remuneração, ele fica separado dele.
As instituições de formação podem se encarregar de oferecer esse halo, espécie de certificado de garantia de mercadoria de qualidade, mas elas também cobram seu preço. Muitas funcionam como igrejas, locais sagrados, que legislam sobre as ocupações e as vidas de seus cooperadores. Novos halos se reproduzem e devem ser sempre problematizados. Circundar alguém com um halo é de certa forma negar um perigo que corremos: da alienação, do desamparo, do desvalor. Ao mesmo tempo, retirarmos os halos é um ato corajoso, que nos expõe demais, talvez de forma insuportável.
Mais saudável pensarmos numa tensão que ocupa as profissões, para sustentá-las enquanto mercadoria e permitir que ocupem um lugar social.
Talvez a Psicanálise tenha passado por uma fase inaugural, sagrada, mistificada, onde o halo protegia a cabeça e a alma de quem o portava. Cultivar esse momento pode ser anacrônico e perigoso: uma negação de sua profanação. Por outro lado, negar seu valor totalmente seria destruí-la.
Nosso silêncio e a forma tabu como tratamos as questões de dinheiro, ligadas à profissão, podem ser um resto melancólico e nostálgico do halo perdido.
Quando Freud se recusa a ficar tanto tempo em Nova York, negando-se a vender barato suas produções aos americanos, mal sabia ele que isso já tinha acontecido, na Clark University, quando foi anos antes proferir suas conferências e levar a peste. Mesmo assim, Freud oferece uma resistência corajosa, demonstrando que o dinheiro não é o falo, o significante princeps, mas que há outros significantes que dialogam com ele, antídotos da alienação e da tentativa de ocupar lugares sagrados e cristalizados.
Walter Benjamin (1985), no texto em que trata de Baudelaire, descreve o início da prática dos "réclams", na imprensa, que também veiculava atividades literárias, como crônicas e fait divers de bulevar. No meio da massa de informações, os editores introduziam o "réclam" – nota autônoma, paga, aparentemente sem conexão com as demais informações, para estimular a venda de livros, por exemplo. Muitos escritores, a partir de suas crônicas, garantiam a venda dos periódicos, ou seja, transferiam valor a estas publicações.
Assim, em meados de 1840 os jornais começaram a viver de anúncios, e entre seus produtos figuravam os artigos literários. A mercadoria literária poderia render bastante aos escritores.
Benjamin nos conta que Baudelaire possuía um olhar profundo para esse fenômeno, conforme texto de 1846:
Assim também é a literatura, que reproduz a substância mais difícil de avaliar, antes de tudo um enchimento de linhas, e o arquiteto literário cujo simples nome não promete lucros tem de vender a qualquer preço. (Benjamin, 1985, p. 29)
Segundo Benjamin, Baudelaire permaneceu mal colocado e obteve poucos ganhos do mercado literário, mas entendeu como poucos suas regras, comparando o literato a uma "puta": seu soneto A Musa Venal (Baudelaire, 2006), trata desse tema. Baudelaire situa o literato como o flâneur que se dirige à feira, como se quisesse só flanar, mas, na verdade, está em busca de um comprador.
Para concluir, transcrevo aqui um poema de Baudelaire:
Para ter sapatos, ela vendeu sua alma;
Mas o bom Deus riria se, perto dessa infame,
Eu bancasse o tartufo e fingisse altivez,
Eu, que vendo meu pensamento, e quero ser autor.
(Baudelaire, citado por Benjamin, 1985, p. 30)
Referências
Agamben, G. (2006). Estancias – La palabra y el fantasma en la cultura occidental. Valencia: Pre-Textos.
Baudelaire, C. (2006). As Flores do Mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. [ Links ]
Benjamin, W. (1985). Obras Escolhidas III. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
Berman, M. (2007). Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Freud, S. (1978a). Caráter e erotismo anal. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. IX, pp. 173-181). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1908). [ Links ]
Freud, S. (1978b). Fetichismo. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vol. XXI, pp. 175-185). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1927). [ Links ]
Gay, P. (1989). Freud. Uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Marx, K. (1978). Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos. São Paulo: Abril Cultural (Os pensadores). [ Links ]
Marx, K. (1983). O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1867). [ Links ]
Masson, J. F. (1986). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilheim Fliess. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Meltzer, D. (1994). A apreensão do belo. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Warburg, A. (2010). Atlas Mnemosyne. Madri: Akal. [ Links ]
Endereço para correspondência
DORA TOGNOLLI
Alameda Rio Negro, 911 – cj. 712 – Alphaville
06454-000 – Barueri – SP
tel.: 11 4191-6936
E-mail: dora.tg@terra.com.br
Recebido: 05/05/2014
Aceito: 16/05/2014
* Médico. Especialista em Psiquiatria. Psicanalista diretor do departamento de crianças e adolescentes da Asociación Psicoanalítica Argentina. Autor de Psicoanálisis de la televisión e de Erótica del dinero.