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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.37 no.58 São Paulo July 2014
ARTIGOS
Vergonha: sofrimento e dignidade
Shame: suffering and dignity
Marina K. Bilenky*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
RESUMO
A vergonha é um sentimento que gradualmente vem sendo mais estudado no meio psicanalítico. De origem narcísica, é constitutivo do ser humano, está no centro do processo de construção da subjetividade e é fundamental como regulador dos vínculos sociais. Porém, devido a seu caráter traumático, a vergonha provoca defesas intensas que levam ao encobrimento. Uma escuta mais atenta para esse sentimento aponta para questões de ordem narcísica, iluminando aspectos do funcionamento psíquico do paciente que ficam protegidos e pouco acessíveis ao pensamento e elaboração.
Palavras-chave: Vergonha, Subjetividade, Ideal do eu, Culpa, Encobrimento.
ABSTRACT
The sentiment of shame has gradually been more and more studied in the psychoanalytical field. From its narcissistic origin, it is constitutive of the human being. It is in the center of the process of subjectivity construction and fundamental as social ties regulator. But, due to its traumatic characteristic, shame causes strong defenses that lead to concealment. A more acute listening of this sentiment points to narcissistic issues, enlightning aspects of the patient's psychological functioning that otherwise would remain hidden and inaccessible to thinking and working through.
Keywords: Shame, Subjectivity, Ego ideal, Guilt, Concealment.
Gabriel tem vergonha de seus dentes, de suas pernas, de tudo. Olha e se esconde entre as mãos ou com a cabeça baixa. A raiva ferve por dentro. Não consegue se expor e exigir o que lhe é de direito. As falas se embaralham, a cabeça se esvazia, tropeça nas palavras e não sai nada. O desespero toma conta. Passa a temer o que pode fazer: matar, destruir, o outro a quem se endereçam suas demandas.
Tem uma história trágica: um irmão foi assassinado quando ele era ainda um menino; o outro estava envolvido com drogas e foi morto ao tentar escapar da prisão. Gabriel se culpa dessas mortes e passa os dias sofrendo de vergonha. Culpa e vergonha. Não tem como elaborar estas vivências. Sente-se feio, tem dificuldade de olhar as pessoas nos olhos. Tem vergonha de si, tem vergonha do que fez na época em que acompanhava o irmão, tem vergonha do que não conseguiu fazer.
A vergonha é um sentimento extremamente penoso e doloroso. De origem narcísica, é ferida difícil de cicatrizar, permanece indelével na memória: "Pequeno desastre visceral, que resiste ao esquecimento e clama por um agir que não aconteceu, pois, na maioria das vezes, está relacionada a situações de impotência" (Zygouris, 1995, pp. 159-160). Sentimento social, surge quando o olhar do outro vê o que não deveria ser visto; é o rubor inoportuno, a umidade da pele, a tremedeira, o gaguejar, o branco; revelação de uma falha sem reparação; a imagem manchada, a desqualificação; a vontade de sumir da face da terra. "A vergonha assinala a confissão de uma derrota, a revelação de uma fraqueza, a perda das aparências e da dignidade e a imagem de seu mundo interior desmascarado aos olhos do outro." (Green, 2003, p. 1657)1 A vergonha é um afeto historicamente pouco estudado e pouco incluído no pensamento psicanalítico. Recentemente, começa a aparecer na literatura, ganhando corpo conceitual e sendo utilizado como ferramenta para a compreensão e estudo dos fenômenos encontrados na clínica, provavelmente porque o mundo contemporâneo, com sua tirania de que precisamos aparecer para existir, acaba produzindo patologias em que a vergonha e sua consequente inibição causam dificuldades e impedimentos que levam as pessoas aos consultórios em busca de auxílio.
Claude Janin (2003/2006)2 coloca a hipótese de que a vergonha não teria sido tratada pelos psicanalistas devido à resistência a elaborar um afeto que pode ser produzido, ele próprio, lateralmente, como resultado dessa mesma elaboração.
Freud cita a vergonha, principalmente, nos seus textos iniciais. Ele a situa, junto com o nojo e a moralidade, como uma das barreiras repressoras da sexualidade, ao lado das pulsões pré-genitais. Essa ligação às fases pré-genitais explica não apenas sua prevalência narcisista, mas também seu caráter intransigente, cruel e sem reparação possível (Green, 1983/1988).
Vergonha
O olhar é este objeto perdido e repentinamente encontrado
na conflagração da vergonha pela introdução do outro.
(Lacan citado por Green, 2003, p. 1648)
Agamben coloca a vergonha no centro do processo de subjetivação. Dedica um capítulo do livro O que resta de Auschwitz para a compreensão do significado da vergonha que Primo Levi relata ter sentido no primeiro encontro com seus libertadores do campo de extermínio: um constrangimento, a dificuldade de se encararem – a vergonha é o sentimento doloroso que eclode na tomada de consciência do horror que jamais poderá ser apagado.
Em primeiro lugar, Agamben desenvolve a tese de que a grande questão em relação a Auschwitz não é a culpa – ao contrário do que tantos autores chegaram a considerar –, rechaçando, inclusive, a hipótese de que poderia ser uma culpa trágica. Ele afirma que esse acontecimento histórico marca a inauguração de uma nova ética para o mundo contemporâneo, pois se trata de um mal cometido que não tem volta nem conserto possível. "Para além do bem e do mal não está a inocência do devir, porém uma vergonha não só sem culpa, mas, por assim dizer, já sem tempo", escreve (2008, p. 107). A vergonha é aquilo que sobrevive ao sujeito que se viu tomado por este acontecimento que não pode ser assumido; ela marca o momento de encontro de prisioneiros e libertadores com a revelação para o mundo exterior de uma intimidade em estado bruto, da qual não se poderá jamais descolar; marca o momento em que todos os olhares se cruzam e todos se percebem diante de uma realidade inominável.
O que está em jogo, para Agamben, é o entendimento dos limites entre o humano e o não humano e, como decorrência desse interesse, ele vai estudar o processo de construção da subjetividade. A tese que o autor desenvolve é a de que a subjetividade tem, constitutivamente, a forma de uma subjetivação e de uma dessubjetivação. A subjetivação implica o momento em que o homem adquire consciência de si como sujeito e é ativo, enquanto a dessubjetivação diz respeito ao momento em que o homem se vê destituído da possibilidade de ser sujeito de seus próprios atos, tornando-se tão passivo, que não pode assumir-se nessa condição. A subjetividade seria formada, então, nesse duplo movimento: constituir-se como sujeito e, ao mesmo tempo, perder-se para se ver sendo objeto do outro. Por isso, para Agamben, a subjetividade seria, no seu íntimo, vergonha, pois nela o sujeito converte-se em testemunha de seu próprio desconcerto, da perda de si como sujeito, de sua dessubjetivação (2008, p. 110). O rubor é o resto que aparece quando o homem se percebe sendo sujeito e objeto simultaneamente.
O autor conclui o capítulo afirmando que
o lugar do humano está cindido, porque o homem tem lugar na fratura entre o ser que vive e o ser que fala, entre o não humano e o humano. Ou seja: o homem tem lugar no não lugar do homem, na frustrada articulação entre o ser que vive e o logos. O homem é o ser que falta a si mesmo e consiste unicamente neste faltar-se e na errância que isso abre. (Agamben, 2008, p. 137)
Trata-se aqui do desenvolvimento de ideias relativas ao mais íntimo processo de humanização. O homem só se torna humano na medida em que pode separar-se de si mesmo como ser biológico e, usando a razão e a linguagem, inserir-se no mundo dos outros homens. No momento em que entro no mundo da razão e da linguagem, eu posso me revelar ao outro, eu sou, mas também me descolo de mim.
É nesse movimento de exteriorização, entre o separar-se de si, ver-se e ver-se sendo visto, que o sujeito se constitui enquanto tal. E é a vergonha que aparece como o resto que descortina esse processo.
Culturas da vergonha e culturas da culpa
Tanto a vergonha como a culpa são afetos relacionados à moralidade e servem como reguladores sociais do comportamento humano.
Em 1946, Ruth Benedict (1946/2011), ao procurar entender o funcionamento da sociedade japonesa, chegou à conclusão de que há sociedades em que o sentimento ético que predomina como regulador social do comportamento dos indivíduos é a vergonha e outras em que esse sentimento é a culpa. Às primeiras, cujo exemplo é o Japão, chamou de culturas da vergonha, e às outras, representadas pelas sociedades ocidentais modernas, chamou de culturas da culpa.
As culturas da vergonha são sociedades tradicionalistas com estrutura altamente hierarquizada, cujos códigos de honra e ideais ancestrais são usados como fonte fidedigna de medida para determinar a moralidade da ação de seus integrantes. Nelas, os indivíduos escolhem agir eticamente para não ter sua imagem manchada diante de seus pares, para preservar sua honra e dignidade. O sentimento de vergonha é intimamente ligado a ideais e valores relacionados à honra. A vergonha aparece quando o ato transgressivo é exposto ao olhar do outro; é um sentimento da ordem do público; é tanto maior quanto maior for a importância dada a quem testemunhou o ato vexatório. Não há reparação possível para uma imagem degradada nem existe a possibilidade de se compartilhar esse sentimento. O envergonhado teme não poder olhar mais nos olhos de seus semelhantes, pois todos compartilham dos mesmos ideais. Sua única saída é o isolamento e, em última instância, a escolha é pelo isolamento mais radical, a morte (Venturi & Verztman, 2012, pp. 125-126).
Já as culturas da culpa são baseadas em sociedades individualistas, cujo regulador do comportamento moral, a culpa, é internalizado. O sujeito age de acordo com as leis para não se sentir culpado. A culpa é emoção privada e não precisa do olhar do outro para aparecer. Ela se remete às leis abstratas que regem as condutas do homem em sociedade, e é em relação a essas leis que o indivíduo mede o grau de sua transgressão. A culpa pode ser expiada, tem reparação através do arrependimento e do sofrimento e pode ser partilhada e aliviada.
No caso dos japoneses, o fato de constituírem uma cultura mais fechada faz com que cada um se sinta visto por um outro que é ele mesmo, produzindo um cerco de olhares identificatórios (Herrmann citado por Barone, 2004). Neste contexto, aparecer e se destacar pode ser tão perigoso quanto perder a própria identidade.
Lídia, jovem adolescente de origem japonesa, chega para a análise porque, desde que seu corpo se transformou com o advento da puberdade, não pode mais mostrá-lo a ninguém. Não importa o clima, usa sempre o mesmo casaco de moletom com capuz que esconde suas formas, calça comprida, o corpo todo coberto. Foi a primeira de sua turma a entrar na puberdade. Não há palavras para se descrever nem sentimentos para relatar. Não há representação. Do corpo não fala, só o esconde. As palavras da analista, as associações que oferece, não encontram nenhum tipo de eco. Nada. Um sono e um entorpecimento profundos tomam conta da analista, que luta para sobreviver aos encontros. Os filmes de terror, em especial os de possessão, vão dominando as sessões, num misto de fascínio e medo, e a ideia de sumir ao ser possuída por outro, o terror de não existir, de deixar de existir na presença do outro, vai ganhando contorno e figuração. A vergonha aparece como proteção contra o desmanchar-se diante do outro e desaparecer. A ideia de que não pode constituir-se como sujeito diante de outro sujeito, leva-a a cobrir a diferença numa tentativa de preservar o eu ameaçado.
Vergonha e culpa
A vergonha confunde-se com a culpa, mas são bastante diferentes. A culpa é resultado de um mal causado ao outro, é dirigida ao outro que foi lesado, imaginária ou verdadeiramente; na vergonha, o mal causado é contra a própria pessoa, é sua imagem que foi atingida. Na culpa, há reparação; na vergonha, não há como consertar a imagem manchada.
A vergonha aponta para uma falha na imagem do sujeito – uma falha decisiva, como um defeito de fabricação. Já a culpa aponta para um ato humano ditado pela vontade e sempre relacionado a uma transgressão. A vergonha, mesmo quando aparece como resultado da exposição de uma transgressão, tem um caráter mais global: não é o ato em si que é julgado, mas a pessoa inteira.
A culpa é um afeto que reflete a expansão do poder e a infração dos direitos dos outros; a vergonha é o afeto que acompanha a exposição de uma falha. A culpa limita a força; a vergonha recobre a fraqueza. A culpa é a guardiã das relações de objeto; a vergonha, a guardiã da realidade interna (Wurmser, 1981). A culpa é de ordem objetal; a vergonha é de ordem narcisista.
Vergonha e culpa coexistem na maioria das pessoas, mas devem ser distinguidas na análise, pelo fato de apontarem para configurações psíquicas de naturezas muito diferentes. Ao tratar do narcisismo moral, Green (1983/1988) exemplifica essa diferença em relação ao complexo de castração, de modo que a distinção fica muito evidente. Diz ele que a culpa em relação à masturbação apoia-se no temor de castração. A castração seria a punição por um desejo proibido ou pela agressividade dirigida ao objeto. No caso da vergonha, o caráter destrutivo do sentimento é bem maior: é global e absoluto. Nela, não se trata do temor de ser castrado, mas da própria ideia da castração como algo insuportável, na medida em que seria a prova de uma mácula indelével que pode contaminar ao mínimo contato. Green acrescenta que somente uma desintrincação do narcisismo em relação ao vínculo objetal permite dotar a vergonha de tal importância. Como toda desintrincação favorece a pulsão de morte, o suicídio por vergonha pode ser mais bem compreendido.
Vergonha e pudor
Clara, menina extrovertida e carismática, em seu aniversário de 2 anos, mostra uma alegria contagiante, canta parabéns junto com a família, sorri e bate palmas. Doze meses depois, no aniversário de 3 anos, quando aparece o bolo com as velinhas, ela se esconde e, ao lado da mesma alegria contagiante, revela-se um novo sentimento: uma alegria envergonhada. Ela demonstra ter tomado consciência dos olhares que se depositam sobre sua pessoa.
A vergonha é um sentimento social. Surge diante do olhar do outro. Na fusão, indiferenciação eu-mundo do início da vida, a criança não percebe a existência de si e do outro. Mas, quando começa a pensar e a usar a linguagem, ela pode separar-se do mundo que a cerca. A vergonha entra em cena a partir do momento em que o outro passa a existir conscientemente para a criança e, com ele, seu olhar. Ela não ocorre antes da separação com o objeto primário, mas apenas com a entrada do terceiro.
Na Bíblia, no "Gênesis", esse relato que atravessou os séculos, a vergonha surge no momento em que o homem se torna consciente de sua nudez diante do olhar do outro. Kant (2010) brinca com essa passagem bíblica e escreve um estudo sobre o início da história humana; diz que o homem deveria ser guiado somente por Deus, ou seja, pelos instintos, mas que não obedeceu a esta determinação. Pelo fato de possuir o dom da razão, descobriu ter a faculdade de escolher sua conduta e, por isso, comeu o fruto da árvore proibida, a árvore do conhecimento; a partir de então, tendo subvertido a ordem "natural" determinada por Deus, o homem separou-se do reino animal e criou seu próprio destino.
Após comer o fruto proibido, ao entrar no mundo da civilização com a instauração do desejo, Adão é chamado a comparecer diante de Deus. É nesse instante que percebe sua nudez e precisa escondê-la. A vergonha surge diante do duplo movimento da tomada de consciência de si e da entrada do terceiro, no momento em que o sujeito se vê e se vê sendo visto ao mesmo tempo.
Vergonha de si
Por um lado, o olhar do outro é parte fundamental do processo de constituição da subjetividade, e a vergonha que surge na tomada de consciência de si é fundamental como sentimento que regula a relação desse sujeito com o mundo que o cerca. Por outro lado, um olhar muito crítico ou um olhar que não reconhece os desejos e necessidades da criança como legítimos e, portanto, merecedores de consideração e cuidados pode inibir ou prejudicar o desenvolvimento, provocando a reação de subtrair-se a esse olhar e levando a um encolhimento do sujeito.
Fairbairn (1944), para explicar a divisão do ego e a criação de um ego sabotador, desenvolve a ideia de que, ao não ser atendida em suas demandas, a criança precisa proteger o objeto, seja para que o objeto continue a amá-la, seja para que ele não se vingue de seu ódio. Assim, à experiência de frustração, a criança reage para dentro e não para fora. Num nível muito primitivo, a frustração vem acompanhada de uma experiência de desintegração e morte psíquica iminente. Quando a criança é um pouco mais velha, a experiência de frustração é traduzida como menosprezo ou diminuição de seu valor, e a criança sente vergonha dos próprios desejos. Num outro nível, essa situação pode ser vivida como humilhação.
Em virtude dessas experiências de humilhação e vergonha, a criança se sente reduzida a um estado de inutilidade, miséria afetiva e depauperamento. A percepção de seu valor próprio é ameaçada e ela se sente mal no sentido de "inferior".
Ciccone e Ferrant (citados por Pacheco-Ferreira, 2012, p. 174) desenvolvem ideias que se aproximam das de Fairbairn. Distinguem diferentes graus de vergonha dependendo da qualidade de recusa do adulto à satisfação do movimento pulsional da criança: a vergonha sinal de alarme corresponde a uma proibição adequada do adulto ("Isso não é legal") e leva ao recalque daquela moção pulsional; a vergonha plenamente experimentada diz respeito à desqualificação do movimento pulsional ("Você não é legal; você é ruim"); finalmente, a vergonha de ser, forma mais grave, refere-se a uma ação que nega a própria existência do movimento pulsional (o sujeito é não visto e não sentido e perde sua capacidade de se ver e sentir).
Quando não é visto pelo outro e suas demandas, qualidades ou fantasias são desqualificadas no sentido de não serem atendidas e reconhecidas como movimentos que têm valor, a tendência é sentir vergonha e se fechar.
É frequente o paciente evitar os temas que lhe causam vergonha na análise, mas também podemos assistir a momentos em que ele se esforça para superá-la e procura alguma forma de compartilhar aquela situação. Tais momentos nos colocam frente à dor e ao sofrimento desse tipo de vivência, e a dificuldade de relatar essas experiências aparece no esforço para quebrar a resistência de evocá-las, mais uma vez, e principalmente, diante de um outro, que se torna testemunha daquilo que tão laboriosamente o paciente luta para esconder. Quando nos dedicamos a realmente ouvir e, com essa escuta, ajudamos o paciente a explorar esse sentimento, podemos, com ele, percorrer novos caminhos associativos e ampliar as possibilidades de abertura e exposição ao outro, o que inclusive pode resultar em um aumento das relações do sujeito no meio social a que pertence. Podemos perceber o quanto o indivíduo se fecha e se protege pelo fato de temer o julgamento e olhares críticos dos outros, quando sente que os outros significativos que o rodeiam não têm interesse real em entrar em seu mundo e compreendê-lo. Aspectos significativos do mundo do paciente permanecem protegidos contra a invasão dos outros e, consequentemente, tornam-se pouco acessíveis ao próprio sujeito. Essa blindagem funciona como defesa contra qualquer aproximação que ameace a imagem quebradiça que o sujeito tem de si.
A vergonha e o encobrimento
Se uma solução para a culpa pode ser o recalcamento e, com ele, o esquecimento, de modo que o contato com a dor seja evitado, para a vergonha e feridas narcísicas, o destino é o "soterramento". Elas não podem ser esquecidas e são conservadas congeladas. Isso implica a construção de camadas em volta do núcleo vergonhoso, como um curativo. Para evitar a dor, é preciso realizar estratégias de evitação semelhantes às estratégias fóbicas (Ciccone & Ferrant citados por Pacheco-Ferreira, 2012, p. 176).
Segundo Zygouris (1995), a vergonha dificilmente é esquecida porque está inscrita não apenas como representação, uma lembrança dolorosa, mas como experiência traumática – inscrita, portanto, no próprio corpo. Se do lado do afeto em relação ao objeto ela deriva da angústia, há um aspecto pulsional que lhe dá fundamento corporal e que se revela no rubor, na umidade da pele, no tremor.
Dessa maneira, na impossibilidade de ser recalcada e esquecida, a saída encontrada para a vergonha é o encobrimento. Ela suscita no envergonhado a reação de procurar esconder aquilo que a provoca, seja uma característica física ou uma qualidade que o sujeito considera vergonhosa, seja uma situação em que o sujeito sente que alguma falha sua pode ser revelada. Muitas vezes, a vergonha aponta para uma falha que é sentida como uma ocorrência para além da vontade humana, como se fosse um destino; vem carregada de angústia e dá lugar a inibições, fechamento sobre si mesmo, impossibilidade de desenvolvimento. Como sublinha Green, a vergonha desencadeia, entre outras consequências, a "procura desesperada de um espaço subtraído ao olhar, que não deixa outra saída senão o desaparecimento de si na imagem insustentável da exposição" (2003, p. 1647).
A questão com a vergonha é o movimento de se esconder, de não poder arriscar mostrar uma imagem desqualificada de si. À exigência de atingir uma meta idealizada, que se crê inatingível devido à distância existente entre o eu e o ideal do eu, responde-se com o encobrimento. É possível que uma ideia que permeia essa situação seja a de que o indivíduo sente que só pode ser amado se sua imagem estiver próxima ao ideal do eu. O rompimento da ligação com o ideal é o que provoca a vergonha e é a partir dessa ameaça que decorre a crueldade desse sentimento.
Nesse universo, acompanhamos o sofrimento daqueles indivíduos que têm uma grande dificuldade com a exposição. Isso pode acontecer devido à distância que o sujeito sente que existe entre ele e o mundo ao qual deseja pertencer, distância causada por alguma diferença intransponível – como ser de outra etnia, possuir características físicas muito destoantes ou ter algum tipo de deficiência – ou que existe apenas imaginariamente. O indivíduo se sente tão separado dos outros que não encontra meios de quebrar essa distância. De qualquer modo, há uma tentativa de se tornar invisível e de esconder qualquer coisa que possa ser considerada como imperfeição. Essa distância vem acompanhada de uma crítica e de uma exigência muito grandes da pessoa com relação a ela mesma; na impossibilidade de se arriscar, errar e aprender, ela se paralisa.
A vergonha revela o temor de um olhar mais persecutório que erotizado, que tudo vê e tudo descobre. O envergonhado sente que os olhares o trespassam e que todos podem enxergar o que lhe vai por dentro. É uma vivência angustiante, pois o sujeito quer ser visto, mas teme ser visto demais. Entra-se no mundo do narcisismo, no isolamento, na dificuldade de se expor e se relacionar.
Green (2003) traça a metapsicologia desses olhares multiplicados que o envergonhado sente que são depositados sobre si. Guiando-se por Freud, afirma que a criança, desde sempre, teria uma ligação sexualizada com a mãe, ao passo que, em relação ao pai, sua ligação estaria baseada em uma identificação a um modelo, o que teria o caráter de uma dessexualização ou de uma sublimação, que realizaria a transformação da libido objetal em libido narcísica.
De um lado, há esse investimento de objeto erotizado, que realiza verdadeira ancoragem do corpo da criança no corpo da mãe e que produz prazer sempre pedindo renovação; de outro lado, há o olhar do pai, que enxerga essa relação com a mãe e que faz o corte, obrigando esse prazer a encontrar seu destino no recalcamento. Quando a criança se identifica com o pai, interioriza esse olhar lançado sobre o prazer e o engloba. Na vergonha, esse olhar retorna ignorando a operação que lhe deu origem, com o prazer transformado em desqualificação, e obrigando a uma repetição permanente de fuga do olhar desse outro que se não viu, sabe de outros que viram, e assim indefinidamente.
A vergonha e o ideal do eu
A vergonha também pode surgir de repente, quando diante de alguma situação aparece uma fratura entre a imagem que se tem de si e a imagem ideal. A vergonha irrompe quando os objetivos do ideal do eu não são atingidos, e o sujeito se vê em uma situação em que imagina que todos perceberão essa quebra. Devido a seu caráter cruel e castrador, a vergonha atua de modo a levar o sujeito a tentativas de inibir qualquer atividade que possa revelar a descontinuidade em relação a seu ideal.
Joana estava acostumada a falar em público e o fazia sem problemas. Atualmente, porém, ruboriza e gagueja. O sofrimento é intenso – ela sofre com a exposição e também com a revelação de sua vergonha. O fato de ter-se tornado diretora, desejo perseguido e conquistado, colocou-a nessa situação impossível. Ocupar essa posição faz com que ela se depare com dois modelos idealizados. De um lado, a mulher poderosa sobre o salto; de outro, aquela que sabe tudo mas é humilde, que não pode pisar no outro para demonstrar sua superioridade. No momento em que precisa se colocar nesse lugar, ela se parte em duas. Se afirma suas ideias e seu saber, imediatamente precisa se diminuir para ser simpática ao público. E, no momento em que se diminui, imediatamente sente ter perdido o lugar de poderosa. Enquanto age, ela se observa agindo, sai de dentro de si e procura saber qual a imagem que projeta sobre os outros, o que a impossibilita de pensar e atuar. Ela trava. Ruborizada, gagueja e sofre.
Estamos no terreno da idealização. A vergonha pode aparecer, como no caso de Joana, num determinado momento da vida, em que de repente o sujeito se confronta com o sentimento de insuficiência diante do modelo que tem dentro de si. Nesse nosso mundo que prega a autonomia e a competência individuais, a ideia de que cada um é o único responsável por seus projetos e crescimento pessoal favorece o recrudescimento e a tirania do ideal.
***
A vergonha é um sentimento multifacetado. Aparece com diferentes intensidades, podendo manifestar-se como simples pudor até atingir um grau de sofrimento intenso. Pode surgir em alguma situação circunstancial ou se referir ao ser do indivíduo, colocado em xeque como um todo e perdurar ao longo de anos.
Nós, psicanalistas, estamos mais habituados a focar na angústia ou em sua falta, procurando, a partir dela, o encontro com o ser humano que vem a nós em busca de alívio para os mais diversos tipos de sofrimento. Mas, se pudermos ampliar esse foco e incluir uma escuta mais atenta para o sentimento de vergonha, isto pode funcionar como porta de entrada para questões de ordem narcísica, iluminando aspectos do funcionamento psíquico do paciente que muitas vezes ficam protegidos devido a uma defesa mais ou menos intensa que leva ao isolamento e à inibição.
A vergonha aparece em distintas gradações, provocando reações que vão de bloqueios mais pontuais até grandes dificuldades de desenvolvimento, ou mesmo a impossibilidade de interação social; pode recobrir um pavor de desaparecimento e surgir como defesa contra a emergência de angústias sem nome, ou pode ser aquilo que deflagra uma inibição de exposição – exposição que revelaria a distância com o ideal; manifesta-se como resultado de um olhar que não legitima os desejos e o mundo interno do sujeito, levando-o a se esconder e proteger desse olhar julgador, que se torna torturante quando projetado para muitos outros olhares; mas também, sentimento básico do ser humano, diz respeito à dignidade e é fundamental como regulador dos vínculos sociais.
Referências
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Endereço para correspondência
MARINA K. BILENKY
Rua Capote Valente, 432, cj. 46
05409-001 – São Paulo – SP
tel.: 11 3085-6020
E-mail: marinabilenky@gmail.com
Recebido: 02/04/2014
Aceito: 09/05/2014
* Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
1 Tradução nossa, assim como nas demais citações de obras consultadas em língua estrangeira.
2 Esse artigo refere-se a um relatório apresentado por Janin no 63º Congresso dos Psicanalistas de Língua Francesa, realizado em Lyon, ao qual tive acesso após a escrita do presente trabalho.