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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.63 São Paulo Jan./June 2017

 

EM PAUTA | PENSAMENTO CLÍNICO E CULTURA DO ESPETÁCULO

 

Intimidade da clínica: a questão do íntimo1

 

Clinical intimacy: on the intimate matter

 

 

Leda Herrmann

Psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Presidente do Centro de Estudos da Teoria dos Campos (CETEC). Autora de Andaimes do real: a construção de um pensamento (2007)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora trabalha o tema da intimidade da clínica proposto pelo pensamento de Fabio Herrmann, avançando considerações a ela inerentes sobre o estranho diálogo que se constrói na sessão analítica. Na teoria dos campos, a intimidade da clínica não diz respeito apenas à relação analista/paciente, constitui-se em um tema clínico-teórico e passeia pelo que fundamenta a clínica, tendo como perspectiva sua condição princeps de propiciadora da construção de conhecimentos em Psicanálise. O texto procura acompanhar a forma pela qual na intimidade da clínica nosso método interpretativo persegue a sustentação da eficácia terapêutica da Psicanálise, não perdendo de vista a questão do por que a terapia psicanalítica funciona, e na explicitação de como cura.

Palavras-chave: Intimidade da clínica. Teoria dos campos. Fabio Herrmann.


SUMMARY

The author deals with the clinical intimacy as discussed in Fabio Herrmann's work, developed as a psychoanalytic subject. She also points out its relation with the uncanny dialogue proper to an analytic session. In multiple fields theory, the clinical intimacy goes beyond the analyst/patient relationship. It is a clinical-theoretical subject that goes along the path of clinical grounds while being the primal source for the construction of psychoanalytic knowledge. The paper discusses that our interpretative method holds psychoanalytic therapeutic efficacy by means of clinical intimacy. Nonetheless, it does not get apart from a) why psychoanalytic therapy functions, b) how it cures.

Keywords: Clinical intimacy. Multiple fields theory. Fabio Herrmann.


 

 

Para começar

A questão do íntimo na intersecção do pensamento clínico e da cultura do espetáculo é a ousada proposta da equipe editorial para este número da ide. Ousada porque atual e atual por dar voz e permitir pensar na própria emergência da psicanálise no início do século 20. Ao surgir inventando uma profissão, a do tratamento psicoterápico para a histeria de conversão, a psicanálise constrói-se, pelo desenvolvimento do pensamento freudiano, como específica disciplina de conhecimento sobre o sentido do homem e de seu mundo.

A aceleração do desenvolvimento tecnológico, iniciado pela revolução industrial, transforma a própria condição do mundo apresentar-se a seu homem, não mais pela experiência que possa ter de seu conhecimento direto na observação da natureza que o rodeia, mas pela informação que lhe chega em imagens e mensagens veiculadas pelos meios de comunicação em ritmo cada vez mais acelerado. Para Fabio Herrmann, estas condições que começam a constituir-se na passagem do século 19 para o 20 são determinantes do "Momento da psicanálise", de seu surgimento com Freud (Herrmann, 1980). Um mundo que se dá a conhecer por meio de informação e imagens tornava muito difícil sua compreensão através dos recursos das ciências naturais. Fazia falta um modo de pensar que buscasse o sentido de uma forma de contato consigo e com a realidade, que passa a ser intermediada por representações read made sem a participação direta do sujeito habitante de um mundo que se mostra indiretamente nessas imagens pré-fabricadas. Segundo Herrmann, esse passo é dado por Freud ao inventar a psicanálise.

Minha contribuição à reflexão proposta pela ide sobre a questão do íntimo neste início de século 21 está dirigida a uma específica condição da clínica, explorada pelo pensamento de Herrmann na teoria dos campos, e que permitiu o desenvolvimento de um tema por ele nomeado intimidade da clínica. Esse tema faz trabalhar, na clínica, a ação própria de nosso método interpretativo (Herrmann, 2015).

 

A intimidade da clínica e a descoberta freudiana

A psicanálise surge de um singular chamado freudiano dirigido à compreensão da histeria de conversão. Freud, ao se decidir pela clínica médica, depois de sua experiência inicial de pesquisador, institui um trabalho clínico de colaboração com Breuer no tratamento daqueles casos pela hipnose e, para se calçar nessa área, começa a frequentar as aulas de Charcot na Salpêtrière. Como resultado desses estudos e do trabalho clínico com as histéricas, Freud leva mais à frente a proposta de Breuer e passa a tomar em consideração, nas manifestações do sofrimento psíquico apresentado por elas, possíveis sentidos que poderiam emergir e se mostrar para a histérica e seu mundo.

Foi assim que Freud, ao pensar o sentido do sintoma da conversão histérica, deu um giro de 180º na psiquiatria, para lá da medicina e da neurologia de seu tempo. Para os neurologistas, a conversão histérica era incompreensível, uma vez ser-lhes impossível estabelecer o caminho para a relação, nesses quadros, entre supostos transtornos funcionais de partes do cérebro com a paralisia orgânica do sintoma histérico.

Baseado nos resultados obtidos inicialmente por Breuer no tratamento por hipnose dessas pacientes, Freud mudou a pergunta, passando das relações neurológicas buscadas no sintoma para a busca de sentidos possíveis à compreensão da história da manifestação do sintoma na história da paciente, compreensão de impossível acesso à paciente como representações de si. Seu interesse e descoberta foi dar a esse "desconhecido" a condição psíquica de inconsciente com força de "esquecimento" de memórias relacionadas de alguma forma ao aparecimento do sintoma.

Tal descoberta, que levou à invenção da psicanálise como talking cure, é abordada por Freud em vários artigos. Encontro no artigo de 1924, "Resumo da psicanálise", sua forma mais precisa e sintética no trecho que cito:

O procedimento terapêutico de Breuer consistia em induzir a enferma, sob hipnose, a recordar os traumas esquecidos e reagir a eles com intensas exteriorizações de afeto. Com isso desaparecia o sintoma que até então estava no lugar dessas exteriorizações emocionais. Portanto, o mesmo procedimento servia simultaneamente à pesquisa e à eliminação da enfermidade, e também essa inusual combinação foi depois mantida na psicanálise. (Freud, 1924, p. 227)

É esse o ponto de partida da construção de um novo ramo do conhecimento da relação do sofrimento psíquico de homem e mundo e do surgimento de uma profissão de cura desse sofrimento, como acima referi. Freud, ao elaborar suas hipóteses teóricas para a compreensão da histeria e das histéricas, cria o método interpretativo psicanalítico, tornando possível o surgimento tanto de uma virada epistemológica para a ciência em geral - que pode ir se afastando do caminho trilhado pelas hard sciences - como ir estabelecendo as condições dessa ciência nova que, concomitantemente, investiga e cura. São essas condições que produzem conhecimento sobre as situações investigadas com o objetivo de cura da relação do homem com seu mundo, e sobre a própria intimidade do processo dessas descobertas, ou seja, os alcances e especificações do próprio método interpretativo.

 

A intimidade da clínica na teoria dos campos

Mais um pequeno espaço introdutório há que ser tratado neste texto para não deixar capenga a exposição a que me propus sobre a intimidade da clínica como tema proposto e desenvolvido pela teoria dos campos. Fiel à aposta freudiana, o pensamento de Fabio Herrmann trabalha o objeto da psicanálise, o sentido humano, a psique, para além da dicotomia interior/exterior, individual/social. O sentido humano, a psique, estende-se do homem ao seu mundo, o mundo também penetrando seu homem. Nosso método interpretativo para a investigação desse objeto em situação de cura debruça-se ou inclina-se - fiel à etiologia do termo clínica - sobre situações da terapia que praticamos em nossos consultórios, com os pacientes que nos procuram e em situações outras que buscam deslindar os sentidos das configurações tomadas pelo mundo em que vivemos. Encontramos inúmeras situações exemplares da amplidão do objeto da psicanálise em muitos textos de Freud, desde "Psicopatologia da vida cotidiana" (1901) a "Totem e tabu" (19013), "Mal-estar na civilização" (1930) e "Moisés e o monoteísmo" (1939), por exemplo. As análises aí empreendidas não isolam psique individual de psique social, ao contrário, tomam em consideração, pelo método interpretativo desenvolvido por Freud, as condições culturais de sua contemporaneidade, procurando relacioná-las com as próprias teorias que ele ia criando para compreender a psique do homem inserido nessas condições2. São também exemplares, na teoria dos campos, os desenvolvimentos de Fabio Herrmann sobre as configurações que tomaram o pensamento e o ato, desde a segunda metade do século 20, nas formas de pensamento autoritário e regime do atentado (Herrmann, 2001a).

É por essa entrada no reino do sentido, a psique, que surge na teoria dos campos o tema intimidade da clínica, quando seu foco dirige-se à situação do tratamento psicanalítico. Não se limita, então, à intimidade entre analista e paciente em uma sessão analítica, mas ao que fundamenta a clínica e permite, a partir dela, construção teórica psicanalítica, isto é, novos conhecimentos ou "psicanálises possíveis". É a intimidade da clínica que garante a permanência da dimensão heurística implicada no método interpretativo e que permite a construção de novos conhecimentos por propiciar o surgimento de sentidos novos para o paciente, quebrando a repetição sintomática de autorrepresentações inamovíveis, ou de desenhos de campos sociais que começam a se mostrar, mesmo que timidamente.

A intimidade da clínica persegue a sustentação da eficácia terapêutica da psicanálise, de seu método interpretativo, o que nos fornece resposta ao por que a psicanálise funciona e nos lembra como cura, segundo a inusual conjugação de conhecimento e cura inventada por Freud.

Assim, a intimidade da clínica caminha pelos meandros dessa conjunção inusual. Ela implica a contemporaneidade de dois movimentos, o conhecimento e a cura que, por exemplo, na medicina geralmente são sucessivos - a cura de uma doença depende de um movimento anterior de investigação sobre a patologia considerada e a descoberta do agente para tratá-la.

Penso que agora é hora da apresentação de uma vinheta clínica como ilustração desse caminho de duas direções simultâneas que o método interpretativo nos permite.

Um paciente no início do trabalho analítico - ao qual se dirigiu devido ao sofrimento que experimentava por ter vivido situação de perda traumática na família -, em uma sessão, passa a contar detalhadamente como se esforça por valorizar o trabalho dos membros da equipe que dirige, queixando-se do chefe que frequentemente o faz assumir responsabilidades e tarefas próprias porque teme um mau desempenho de sua parte.

Ouço-o e, conjugando a situação que o levou à análise - a armadilha que sentia que a vida lhe tinha preparado naquela perda traumática - com a queixa sobre o chefe que sucede a seu relato do esforço para valorizar os membros de sua equipe de trabalho, faço menção à presença em sua fala de uma situação em que é explorado e não explora. Aponto-lhe, também, que é obrigado a procurar ajuda nesse momento de profundo sofrimento pessoal.

Ao ouvir de mim o adjetivo "explorado", repete-o e começa a discorrer sobre o comportamento repetitivo do chefe de se ausentar sempre que vislumbra ter de enfrentar uma situação em que não se sente preparado. Por exemplo, uma reunião a ser conduzida em inglês, língua que não domina completamente.

Da descrição passa à explicação dos motivos dessas ausências - acha que o chefe fica tão tenso com a perspectiva de um desempenho insatisfatório e reage com episódios de forte enxaqueca. Daí, para explicações supostas de por que o chefe é assim.

Percebo que o que está surgindo nesse discurso é a própria vivência de fragilidade que meu paciente procura contornar, aliando-se a mim para cuidar hipoteticamente do chefe e, implicitamente, de sua dor.

De certa forma podemos pensar no sentido que para ele está se formando, de que agora está muito difícil reconhecer-se como um adulto bem-sucedido que encontrou por si o caminho de seu sucesso profissional, e, ao mesmo tempo, de que está fragilizado pela tragédia vivida na família.

"Mas não é você que vai resolver os problemas dele", é o que digo, tomando em consideração esse paradoxo de se representar capaz como homo faber e simultaneamente em sofrimento por não ter podido impedir a tragédia familiar.

O silêncio que segue a essa minha intervenção é por mim interrompido com o anúncio do fim da sessão.

O paciente, ao sair, diz algo como: "É, não é meu problema. Aqui sou eu meu problema".

 

Considerações sobre a intimidade do momento clínico

A intimidade da clínica caminha pelo próprio desenrolar do processo terapêutico da psicanálise. Ela caminha pelos meandros da conjunção inusual freudiana.

Meu paciente atravessa o trauma da impossível elaboração da dramática perda de pessoa muito próxima. Esse sofrimento o traz à análise. É um sofrimento recheado de outros sentimentos também não elaborados no decorrer de sua vida enquanto criança e adolescente, mas que encontraram uma solução de continuidade nas conquistas da fase adulta: realização profissional, obtenção de estável situação econômica e de uma família em formação - seus filhos estavam nascendo.

Ele chega à análise para tratar do sofrimento por seu luto. Espera alívio para esse sofrimento. Considerações sobre seu trabalho logo passam a fazer parte de nossas conversas. Falar da dificuldade que experimenta no trabalho me pareceu, no campo transferencial, a forma possível que encontra para abordar seu momento sofrido, sem se referir diretamente à tragédia familiar pela situação emocional que estava vivendo de um luto doído, impossível de ser negado mas precisando ser disfarçado. É essa consideração ao campo transferencial que me permite apreender, conforme o que vai me contando de sua vida atual, que a segurança com que se representava nas atividades de trabalho agora traz preocupações, ao perceber que faz mais do que implica a sua função na empresa. O setor de planejamentos, do qual integra a subchefia, vai assumindo para ele, na minha escuta, a conotação de responsabilidade total.

Empenhar-se na batalha do trabalho, trazendo para mim as dificuldades que ia vivendo, pareceu-me cumprir dupla função, a de consertar no trabalho o que não pôde prever para impedir a perda que o fragilizou, e poder mostrar-se para mim, representar-se, não tão desprovido de recursos pessoais que a vivência da situação traumática lhe impunha. Ao mesmo tempo, o tema de insatisfações no trabalho permitia, na conversa psicanalítica, tratar comigo de dificuldades suas. O sentido que em tudo isso parecia emergir era a novidade de se perceber em dificuldades e falar delas antes de ter encontrado uma solução a priori. Ou ele encarava as dificuldades, e aí as queixas eram dele para com ele, mas as soluções já haviam sido encontradas e postas em ação, ou, quando esse processo habitual não resultava, porque a sua solução não era partilhada pelo outro, agarrava-se a ela e "esquecia o problema", pois não era mais dele. E foi o padrão que sempre manteve no relacionamento com a pessoa da família que perdeu.

Assim, pela imposição do método interpretativo, pude escutar com um ouvido a sucessão de queixas no trabalho, e com outro, a reverberação de uma perda de elaboração muito difícil. Ou seja, considerando o campo transferencial, dei-me conta de que o assunto "trabalho", abordado pelas dificuldades que ele ia enfrentando, era a forma menos doída com que podia revestir o tema de seu sofrimento. Nesse assunto também me trazia um desvalimento, mas de maneira menos dolorosa e menos impotente que no da morte, pois a morte é sempre sem retorno.

Na vinheta, o movimento interpretativo de minha escuta apreende, na queixa a respeito do trabalho, uma situação de vivência de exploração sem poder ser expressa em palavras. É o que lhe aponto ao dizer, diante das justificativas que começava a desfiar sobre as dificuldades do chefe: "Mas não é você que vai resolver o problema dele".

A expressão em palavras acontecera, mas acompanhada de outras longas queixas em relação ao chefe e à sobrecarga que vive no trabalho, porque o chefe esquiva-se de suas responsabilidades, que posso entender como uma justificativa do paciente para mim e para ele por ocupar a posição de "explorado". Mas essa justificativa denuncia que no campo transferencial meu paciente precisa encontrar alguma forma de controle para o desamparo que vive ao expor para mim sua fragilidade. Encontra-a na fragilidade que aponta para o chefe.

À fragilidade que emerge como uma autorrepresentação nova, meu paciente antepõe sua "potência" para "explicar" a fragilidade do chefe. A minha intervenção, apontando que não é ele que resolverá os problemas do chefe, produz um choque entre - e coloca em xeque - potências e impotências.

Sua sentença, emitida no momento de deixar a sala de análise, é também o anúncio de que há que dar lugar para a presença de um eu com problemas e fragilizado. Ela é expressa como o arremate ao vórtice de representações que lhe surgiram no "choque entre potências e impotências" vivido na sessão. Esse eu, quando se manifestou, como no movimento de procurar análise, teve que sair de cena. Representar-se como alguém que não consegue cuidar de si só lhe foi permitido, na sessão, substituindo esse alguém, ele mesmo, pelo chefe.

O processo interpretativo está em movimento. Provocou o surgimento de uma das especificidades do sofrimento do paciente por romper o campo aprisionante da impossibilidade de representar-se frágil, fragilizado. O inefável do trauma pôde ser "apontado" na metaforização da situação "explorado que não explora", que apreende e considera longamente, mas substituindo-se pelo chefe. O movimento em direção à cura aparece como um complemento a essa sua longa fala - constata que "Aqui sou eu meu problema", constatação que só pode ser dita quando pode emergir para o paciente a autorrepresentação de fragilidade.

 

Considerações sobre a intimidade da clínica e a estranha conversa analítica

Na psicanálise é a própria forma que toma sua investigação, como método interpretativo, que, ao desvelar (para analista e paciente) sentidos ainda inaparentes do discurso, liberta, para o paciente, a possibilidade do surgimento de outras representações de si. Mas esse nosso método interpretativo supõe uma estranha conversa na sessão analítica.

Sem dúvida a forma interpretativa do diálogo analítico é estranha quando pensamos no diálogo próprio entre amigos. Na conversa do dia a dia, seja ela qual for, há uma espécie de acordo tácito de compreensão. Assim, por efeito desse acordo, tudo que é dito dirige-se ao âmbito de certo tema: o filme que dois ou três amigos acabam de assistir, o último escândalo descoberto no país por alguma operação de nome esdrúxulo da polícia federal ou as partidas de futebol daquele fim de semana.

O assunto de uma conversa, amigável ou não, aparentemente esgota-se em sua parte visível e comunicável. No entanto, a palavra humana é equívoca e nossa comunicação polissêmica, e se estendemos um pouco a noção de assunto, devido à condição de equivocidade inerente à palavra, essa noção engloba uma parte maior, submersa, composta pelo conjunto dos pressupostos determinantes do sentido das palavras trocadas.

É para essa parte submersa que a teoria dos campos alerta nossa consideração, quando afirma ser ela composta de regras. Observando-se qualquer conversa como um bate-papo, podemos dar-nos conta de que algumas regras estão quase à flor da consciência, outras completamente inacessíveis. Quando estamos na roda do assunto de uma conversa de amigos, ao redor de uma mesa de bar e a observamos mais isentamente, é fácil perceber que os assuntos tratados e circulando com rapidez possuem um propósito comum dominante, pois cada qual procura impressionar os outros mostrando que tem razão, ou sabe mais. Podemos dizer que aí está vigente a regra da superioridade argumentativa que deve ser respeitada pelos parceiros, pois não cabe na conversa falar da conversa. Por outro lado, no campo do bate-papo, é quase inapreensível o reflexo de disposições vigentes da realidade sobre o discurso que acontece no bate-papo. Mas os assuntos dispostos em uma determinada ordem, a distância física entre os amigos bebericando, são indicativos das representações que asseguram a identidade do grupo, das relações de subserviência que determinam quem deve ser escutado sem interrupção, quem pode ser criticado etc.

Na conversa psicanalítica, por sua forma interpretativa, o elemento mais evidente é que analista e paciente não estão falando do mesmo assunto, pois o analista "fala da conversa", ou busca sentidos ainda não explícitos, mas compreendidos na conversa, no diálogo que se monta. Assim, a teoria dos campos põe em evidência a específica propriedade do diálogo analítico da escuta do analista dar-se fora do campo proposto como tema pelo paciente. Essa propriedade lhe é dada pelo método interpretativo de busca e emersão de sentidos inventado por Freud. Por exemplo, o paciente diz: "Briguei no escritório, gosto dos colegas, mas preciso impor ordem com a turma, porque meu chefe é muito exigente comigo", e o analista responde, escuta, de outra forma, em outro campo. Em vez de pensar na exigência do chefe que o leva a indispor-se com os colegas, tema proposto pelo paciente, pensa nos sentidos contidos nessa comunicação, como, por exemplo, o que faz o paciente mostrar-se queixoso, ou por que o paciente conta isso naquele momento. Isto é, chega às regras determinantes daquele discurso e nele submersas, mas que começam a aparecer como a ponta de um iceberg quando a escuta do analista dirige-se, também, para captar a disposição emocional na comunicação estabelecida, e que freudianamente diz respeito à junção de afeto e representação.

Esta característica da estranha conversa própria da sessão de análise é parte inerente da intimidade da clínica de que estamos tratando. Evidencia-se no diálogo analítico um intervalo, por parte do analista, para acompanhar a atribuição de sentido proposta pelo paciente em sua fala. Esse intervalo dá o tom, ou a qualidade, para a forma interpretativa própria ao diálogo entre analista e analisando. Ao desrespeitar o acordo tácito em torno do tema trazido, como apontado acima, saindo do campo da "conversa entre amigos", o analista possibilita que o paciente experimente o mesmo intervalo na apreensão de sentidos. O característico da interpretação psicanalítica, de considerar a possibilidade de outro significado naquela fala, impõe tanto ao analista como ao paciente um retardamento no preenchimento de significação que vai deixar que surja o que há de surgir. Caminhando para lá do sentido consensualmente aceito pelos participantes do diálogo, a compreensão da escuta analítica abre-se para outros sentidos possíveis. Assim, as representações do paciente são tensionadas por essa escuta fora do campo de sentido que o paciente oferecia intencionalmente ao analista, até que esse campo, formado pelas regras inconscientes que determinavam aquele conjunto de representações, rompa-se. E é por isso que o que há de surgir, por ruptura do campo que suportava a autorrepresentação do paciente, é outro sentido ou outra autorrepresentação, novas fantasias, enfim. Essa é a descrição da ação do método interpretativo, ou seja, a ação por ruptura de campo, na conceituação metodológica da teoria dos campos. É esta ação, a do método, que a intimidade da clínica habita. No exemplo simplório do paciente queixoso da exigência do chefe que o faz brigar com os companheiros, por efeito da conversa estranha pode surgir a autorrepresentação da própria exigência mais exigente que a do chefe. Pode o paciente ver-se mais realista que o rei, por ação da intimidade da clínica.

Tomar em consideração as condições do diálogo analítico, da conversa estranha, específica da sessão analítica na vigência da intimidade da clínica, conduz o pensamento da teoria dos campos à exploração dos próprios fundamentos da psicanálise. O que se nos evidencia de pronto nesse exercício é que o efeito terapêutico das psicoterapias interpretativas se dá nesse vazio representacional provocado pela demora no preenchimento de significação - preenchimento ao qual o paciente resiste -, mas que permite que surjam outros sentidos possíveis, porém inaparentes ou não presentes ainda.

Fabio Herrmann, em sua obra e por esse tema da intimidade da clínica, mostra-nos que o método interpretativo, criado por Freud, impõe um regime especial de conversa na sessão analítica. Como acima referido, o analista com uma orelha escuta o que o paciente lhe conta, com outra, tenta escutar o que mais pode significar tudo isso que com a primeira ouviu. Uma escuta descentrada, atenta a sentidos outros dos manifestamente trazidos, permite a desrotinização da conversa quotidiana armada geralmente sobre a perseguição a um tema explícito, que organiza a conversa por uma espécie de acordo de compreensão. Não há que deixar de registrar que a conversa estranha da sessão, por desrespeitar os limites do tema proposto pelo paciente, constrói-se metaforicamente, pois os sentidos possíveis emergentes ope-ram como metáforas de e para outros sentidos.

E tudo se passa na intimidade da clínica pelo desconhecimento a priori de analista e paciente sobre o que deverá surgir, pois a verdade psíquica, reino dos sentidos, só é aparente e só pode se mostrar nas representações que vão se formando de relações já estabelecidas, com nós mesmos, com o outro, com e entre um grupo.

 

REFERÊNCIAS

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Herrmann, F. (1980). O momento da psicanálise. Revista Brasileira de Psicanálise, 14(2),149-166.         [ Links ]

______. (2001a). O pensamento e o ato. In F. Herrmann. Andaimes do real: psicanálise do quotidiano (3ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

______. (2001b). Andaimes do real: o método da psicanálise. (3ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

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______. (2015). Intimidade da clínica. In Sobre os fundamentos da psicanálise. Quatro cursos e um preâmbulo (2ª Parte, pp. 225-336). Londres: Karnac Books.         [ Links ]

Herrmann, L. (2007). Campo transferencial. Percurso, (38),23-30.         [ Links ]

Roudinesco, E. (2016). Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
LEDA HERRMANN
Rua Girassol, 34/102
05433-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3088-8123
herrmannfl@globo.com

Recebido 02.05.2017
Aceito 28.05.2017

 

 

1 Este texto trabalha ideias de dois outros apresentados ao XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise, Campo Grande, 2013: "Intimidade da clínica - Teoria dos campos", na mesa redonda Tempo, transferência e intimidade, e "Uma estranha conversa: a contemporaneidade do par analítico", tema livre.
2 Uma profícua exposição desse procedimento está contida na biografia de Freud escrita por Roudinesco (2016).

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