Services on Demand
article
Indicators
Share
Ide
Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.40 no.65 São Paulo An./June 2018
EM PAUTA | INVEJA
Olhares da inveja em dois contos de Clarice Lispector1
Envy in two stories of Clarice Lispector: foreign legion and Clandestine happiness
Yudith Rosenbaum
Professora de literatura brasileira na Universidade de São Paulo (USP). Publicou, entre outros, os seguintes livros: Manuel Bandeira: uma poesia da ausência (1993), Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector (2006) e Clarice Lispector (2002)
RESUMO
Pretende-se analisar dois contos de Clarice Lispector, "A legião estrangeira" e "Felicidade clandestina", tendo como operador analítico o fenômeno da inveja e suas modulações. A interface da psicanálise com a literatura é o campo em que se situa o presente estudo, uma vez que Freud e Melanie Klein, entre outros, são referências para se pensar a inveja no processo de construção do sujeito. O protagonismo da leitura será dado ao texto e seus procedimentos estilísticos, sendo a teoria uma ferramenta a mais na compreensão dos sentidos das narrativas.
Palavras-chave: Clarice Lispector. Envy. Psychoanalysis
SUMMARY
This essay intends to analyse two short stories by Clarice Lispector, "The Foreign legion" and "Clandestine happiness", having as analytical operator the phenomenon of envy and his modulations. The interface of psychoanalysis and literature is the field in witch the present study is situated, since Freud and Melanie Klein, among others, are references to think the envy in the process of subjective construction . The main focus in this reading will be the text's stylistical procedures, the theory being an instrument to understand the meaning of the narratives.
Keywords: Clarice Lispector. Inveja. Psicanálise
[...] há vários modos que significam ver: um olhar
o outro sem vê-lo, um possuir o outro,
um comer o outro, um apenas estar num canto e o outro estar ali também:
tudo isso significa ver. A barata não me via diretamente,
ela estava comigo. A barata não me via com os olhos
mas com o corpo.
(Clarice Lispector, 1964)
Grandes escritores parecem visitar certos lugares psíquicos, sociais e culturais que, se antes opacos e desconhecidos, passam a existir em toda sua potência através de seu gesto criativo. É como se esses territórios humanos ficassem encobertos por neblina, inacessíveis à nossa consciência ou distantes de uma verdade renovadora, até que a arte não os descortine propriamente, mas faça-os existir como presença transfiguradora, conforme queria Merleau-Ponty: "O mundo fenomenológico não é a explicação de um ser prévio, mas a fundação do ser; a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia, mas, assim como a arte, é realização de uma verdade" (1994, p. 19). A palavra do escritor, no caso da literatura, é uma arma de busca, uma maneira de atingir aquilo que de outro modo continuaria em silêncio e que toma forma na imanência da obra de arte.
Clarice Lispector é dessas escritoras que afiam seu instrumento de procura e arrastam o leitor junto em seu campo de batalha. "As coisas não são fáceis, mas é preciso dizê-las", afirma a autora. Acompanhá-la em dois contos que revelam as vicissitudes da inveja é a proposta deste artigo, arriscando-nos a fazer contato com significações ariscas e sombrias, mas que ganham enorme claridade nas sendas abertas pelos seus textos.
Trata-se dos contos "A legião estrangeira", do livro de mesmo título, publicado em 1964, e "Felicidade clandestina", do volume também homônimo, de 1971. Em ambos há duas narradoras adultas que relembram episódios passados, ressignificando-os pela consciência rememorante. O jogo entre os tempos da enunciação e do enunciado é uma marca textual dos dois contos, à qual se alia o presente da leitura, fazendo o leitor participar da trama narrativa.
***
Parte I: de Eros a Thânatos
Começo pelo texto de 1964, mesmo ano da publicação do romance A paixão segundo G.H., que ofuscou a recepção crítica do segundo livro de contos da autora. Importante lembrar que são livros em que a dimensão metalinguística - que chama a atenção para a própria fatura narrativa, seu modo de se constituir como texto - ganha destaque, como se a autora quisesse mostrar que as questões subjetivas e objetivas são construídas ficcionalmente, desestabilizando as noções de verdade e de realidade. O texto, como se poderia pensar em analogia ao conceito de "realidade psíquica" em Freud, tem a sua própria verdade, que depende do arranjo e do movimento das palavras.
O enredo traz a história de duas vizinhas: a narradora (provável máscara da própria autora, que datilografa trabalhos em casa2) e uma menina de 8 anos, Ofélia, que luta desesperadamente para negar sua infância. A temática do Mal já vem prenunciada (de forma disfarçada) nas repetições do advérbio "mal" no parágrafo de abertura, que introduz o conto com uma cena hipotética de um julgamento:
Se me perguntassem sobre Ofélia e seus pais, teria respondido com o decoro da honestidade: mal os conheci. Diante do mesmo júri ao qual responderia: mal me conheço e para cada cara de jurado diria com o mesmo límpido olhar de quem se hipnotizou para a obediência: mal vos conheço. Mas às vezes acordo do longo sono e volto-me com docilidade para o delicado abismo da desordem. (1992, p. 121, grifos meus)
Há muitos elementos nesse início, desde o desconhecimento de si e do outro, a obediência pela qual a narradora se vê hipnotizada (e Ofélia será o seu algoz) e, por fim, o despertar para o "delicado abismo da desordem", expressão antitética e sugestiva. Talvez ela condense o território para o qual o conto nos conduz e que implica acordar de um "longo sono", tanto a narradora quanto a personagem Ofélia, E, por que não, também nós, leitores.
A história teria ficado adormecida se não fosse o presente de um pintinho comprado na feira na véspera do Natal. É em torno dele que a família da narradora experimenta, no tempo presente que ambienta a primeira parte do conto, a complexa bondade em acolher o pinto assustado e seu "piar desesperado". A narradora, então, discorre sobre "a falta de habilidade de sermos bons" (p. 122), acenando para o que será o contraste maior entre a primeira e a segunda parte da narrativa: a aprendizagem do bem, que marca a vida familiar diante de um pinto desamparado, de um lado, e o "delicado abismo" da inveja de Ofélia, que leva à destruição, na segunda parte. Como diz a biógrafa Nádia Battella Gotlib, trata-se de contrapor "amor de salvação" ao "amor de perdição" (1994, p. 345).
"Então estendi a mão e peguei o pinto" é a frase que encerra o primeiro tempo do conto, em que Eros se impõe com seus laços de ligação. E movida pelo fato recente do Natal, a narradora passa a rememorar, em flashback, os acontecimentos com sua vizinha Ofélia, ocorridos em um Natal distante, em que ela "fora a testemunha de uma menina". Os autos do processo, já mencionados no julgamento inicial, serão dispostos ao leitor, cujo juízo será manipulado pela hábil narradora.
Infância negada
No segundo tempo da narrativa, a menina só entrará no espaço narrativo após seus pais serem apresentados pela narradora, o pai marcado pela violência e a mãe pelo silêncio: "O pai agressivo, a mão se guardando. Família soberba" (p. 125). A família "trigueira como um hindu", o que atribui um traço de estrangeiridade ao grupo, era vista pela narradora como "orgulhosa": "[...] os três trigueiros e bem-vestidos passavam como se fossem à missa, aquela família que vivia sob o signo de um orgulho ou de um martírio oculto, arroxeados como flores da Paixão. Família antiga, aquela" (p. 126).
A mãe, segundo a narradora, virava-lhe a cara após momentos de proximidade, evitando expor-se mais à vizinha. Não se deve desconsiderar o viés crítico da voz narradora em seu gesto discursivo, montando um quadro cujas pesadas tintas preparam a brutalidade da cena final de Ofélia. Pais e filha, mapeados pelas palavras textuais, vivem o martírio da Paixão, inundados de excesso e dramaticidade.
A partir daí, surge Ofélia e seus "longos cachos duros", com suas
[...] olheiras iguais às da mãe, as mesmas gengivas um pouco roxas, a mesma boca fina de quem se cortou. Mas essa, a boca falava. Deu para aparecer em casa. Tocava a campainha, eu abria a portinhola, não via nada, ouvia uma voz decidida:
- Sou eu, Maria Ofélia Maria dos Santos Aguiar. (1992, p. 126)
À dureza dos cachos irá se juntar, ainda, o vestidinho engomado com babados e, sobretudo, seus conselhos, ordens e opiniões formadas, que ela impunha em suas visitas à narradora. O trecho a seguir, embora longo, é exemplar do que o filósofo José Américo Pessanha considera, referindo-se à Ofélia, o "mundo fictício feito só de soluções definitivas"3:
Tinha opinião formada a respeito de tudo. Tudo o que eu fazia era um pouco errado, na sua opinião. Dizia "na minha opinião" em tom ressentido, como se eu lhe devesse ter pedido conselhos, e, que eu não lhe pedia, ela dava. Com seus oito anos bem altivos e bem vividos, dizia que eu na sua opinião não cuidava bem dos meninos; pois meninos quando se dá a mão querem subir na cabeça. Banana não se mistura com leite. Mata. Mas é claro a senhora faz o que quiser; cada um sabe de si. Não era mais hora de estar de robe; sua mãe mudava de roupa logo que saía da cama, mas cada um termina levando a vida que quer. Se eu explicava que era porque ainda não tomara banho, Ofélia ficava quieta, olhando-me atenta. Com alguma suavidade, então, com alguma paciência, acrescentava que não era hora de ainda não ter tomado banho. Nunca era minha a última palavra. (p. 126)
Como se vê, em Ofélia não há espaço para incertezas, falhas, dúvidas. Com seu modo intolerável de usar a palavra "portanto" e ainda mais ferozmente com seus silêncios, ela humilha e atormenta a narradora com palavras e verdades imperativas. Quando esta se pergunta "O que em mim pode atrair essa menina?" (e para Ofélia a vizinha adulta é que era considerada "esquisita"), a resposta estaria justamente na "delicada desordem" recusada pela menina e que, de certo modo, se faz ver na bagunça da casa da narradora, nos seus hábitos pouco disciplinados. Da espontaneidade e criatividade da infância, nada sobrou nesta personagem trágica (como a homônima de Shakespeare, da qual falarei adiante), cuja dura polidez familiar projeta sua sombra na oponente, expulsando de si tudo o que pode demolir o sistema tão bem armado. A identificação projetiva4 se mostra em toda a sua potência no embate entre as personagens. Tudo que é da ordem do lúdico, do despretensioso, do puro fluir da vida, traços que a família parece considerar negativos, tende a ser expulso da menina como um mal a ser evitado. E uma vez depositado na vizinha, ela o combate sem trégua.
Também a narradora mostra seu gozo quando a pequena Ofélia comete um deslize ao definir geografia como um "modo de estudar". Ela considera que a menina incorreu não em erro propriamente, mas em "leve estrabismo de pensamento" (grifo meu), o que antecipa a questão do olhar, cerne do clímax do con-to. Para a enunciadora, o momento teve "a graça de uma queda" e mirando a possibilidade de que a menina enfim se permita errar, "por dentro lhe disse: é assim mesmo que se faz, isso! Vá devagar assim, e um dia vai ser mais fácil ou mais difícil" (p. 128).
De seu lado, vulnerável aos ataques da menina, a narradora se percebe cada vez mais invadida pela pequena intrusa em sua própria casa: "Eu era atraente demais para aquela criança. Tinha defeitos bastantes para seus conselhos, era terreno para o desenvolvimento de sua severidade, já me tornar o domínio daquela minha escrava: ela voltava, sim, levantava os babados, sentava-se" (p. 129).
A tensão entre as personagens cresce e ronda o enredo. O incipiente sadismo de Ofélia, até então refreado pela continência de seu intelectualismo precoce, terá como catalizador o leve piar de um pintinho na cozinha. Assim é narrado o momento em que a menina se apruma, "com os cachos inteiramente mobilizados", diante da perturbadora novidade e inquire a dona da casa:
- Que é isso, disse.
Isso o quê?
- Isso! Disse inflexível.
- Isso? Ficaríamos indefinidamente numa roda de "isso" e "isso!" não fosse a força excepcional daquela criança, que, sem uma palavra, apenas com a extrema autoridade do olhar, me obrigasse a ouvir o que ela própria ouvia. No silêncio da atenção a que ela me forçava, ouvi finalmente o fraco piar do pinto na cozinha.
- É o pinto.
- Pinto? disse desconfiadíssima.
- Comprei um pinto, respondi resignada.
- Pinto! Repetiu como se eu a tivesse insultado.
- Pinto. E nessa coisa ficaríamos. Não fosse certa coisa que vi e que antes nunca vira. (1992, p. 129, grifos meus)
As incontáveis vezes em que o texto faz menção ao olhar de Ofélia5 (e, na frase final da citação, também da narradora) obrigam o leitor crítico a considerar que é pela visão que se exerce o poder dessa menina diante do outro que a ameaça. A "extrema autoridade do olhar" busca, de certa forma, silenciar o ruído disruptor. A "inflexível" Ofélia está prestes a vivenciar o desmoronamento de sua armadura protetora e será de novo pela força de seu olhar que a inveja irromperá em cena antológica, já analisada em ensaio notável sobre o conto por Renato Mezan (1987, pp. 117-140). Retomo aqui a mesma cena, à luz das observações já desenvolvidas anteriormente e aproveitando os insights de Mezan, incontornáveis quando se trata de pensar o lugar do olhar na inveja:
O que era? Mas o que fosse, não estava mais ali. Um pinto faiscara um segundo em seus olhos e neles submergira para nunca ter emergido. E a sombra se fizera. Uma sombra cobrindo a terra. Do instante em que involuntariamente sua boca estremecendo quase pensara "eu também quero", desse instante a escuridão se adensara no fundo dos olhos num desejo retrátil que, se tocassem, mais se fecharia como folha de dormideira. E que recuava diante do impossível que se aproximara e, em tentação, fora quase dela: o escuro dos olhos vacilou como um ouro. Uma astúcia passou-lhe então pelo rosto - se eu não estivesse ali, por astúcia, ela roubaria qualquer coisa. Nos olhos que pestanejavam à dissimulada sagacidade, nos olhos a grande tendência à rapina. Olhou-me rápida e era a inveja, você tem tudo, e a censura, porque não somos a mesma e eu terei um pinto, e a cobiça - ela me queria para ela. [...] ela queria tudo. [...] Diante de meus olhos fascinados, ali diante de mim, como um ectoplasma, ela estava se transformando em criança. Não sem dor. Em silêncio eu via a dor de sua alegria difícil. A lenta cólica de um caracol. Ela passou devagar a língua pelos lábios finos. (Me ajuda, disse seu corpo em bipartição penosa. Estou ajudando, respondeu minha imobilidade.) A agonia lenta. Por momentos os olhos tornaram-se puros cílios, numa avidez de ovo. E a boca de uma fome trêmula. (1992, pp. 130-131, grifos meus)
Esses são os antecedentes do crime, narrados com extrema minúcia por uma narradora que testemunha a decomposição de Ofélia, tomada pelo desejo invejoso. Dificilmente a teoria psicanalítica seria capaz de abarcar, com o mesmo impacto, a epifania corrosiva que acomete a personagem, as sutilezas e vicissitudes que a descrição acima contempla. Chego a pensar que Freud teria inveja da apreensão literária de Clarice Lispector sobre o fenômeno mapeado por ele e depois por Melanie Klein, Hanna Segal e outros... Estão presentes, na aproximação microscópica com que a escritora penetra nas sensações conflituosas de Ofélia, aspectos centrais da metapsicologia freudiana, tão bem analisados por Mezan a partir das convulsões físicas de Ofélia no trecho citado: o caráter involuntário da inveja e as mudanças corporais que dela advêm (boca que estremece, olhos que brilham e pestanejam, sombra que passa pelo rosto); a natureza do "querer" de Ofélia, desejo que transita de "qualquer coisa" a "tudo", revelando a voracidade constitutiva do impulso devorador; por fim, a temática do olhar - que aqui interessa particularmente -, evocando através dos olhos os movimentos rápidos da rapina e da sagacidade (pp. 118-119).
Vale a pena transcrever o comentário de Mezan quando retoma a etimologia da palavra "inveja" e outras referências intertextuais:
Essa associação com os olhos está presente na própria etimologia da palavra "inveja", que provém do latim invídia, formada a partir do radical ved-, que encontramos em vedére. Uma outra menção literária do laço entre o olhar e a inveja nos é oferecida por Dante Alighieri no Canto XIII do Purgatório: os invejosos são punidos com uma orribile costura, pela qual um fio de arame une suas pálpebras, impedindo-os de ver e castigando-lhes o mesmo órgão através do qual pecaram quando vivos. (1987, p. 119)
De fato, Melanie Klein explica, em nota de rodapé de seu estudo sobre a inveja e a gratidão, de 1957, que invídia tem sua raiz no "verbo invídeo - olhar atravessado, olhar maldosamente ou com despeito, lançar mau-olhado, invejar ou relutar mesquinhamente em dar ou reconhecer o que é do outro" (1991, p. 212). Também no mito de Aglauros, nas Metamorfoses, de Ovídio, a marca dos olhos se impõe, como também cita Mezan:
A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol [...] o olhar não se fixa em parte alguma [...] Ela ignora o sorriso, salvo aquele que é excitado pela visão da dor [...] Assiste com despeito aos sucessos dos homens, e este espetáculo a corrói: ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma, e este é seu suplício. (Ovídio citado por Mezan, 1987, p. 125)
Nesse sentido, o olhar de Ofélia é a via pela qual se destila a inveja que ela tem do pintinho, objeto proibido que pertence à narradora. Mas é preciso reconhecer na cena o nascimento de uma criança, antes recoberta pela soberba e pela máscara de uma adulta. É o seu ser infantil que vem à tona quando a menina é tomada pela alegria da descoberta do pinto piando na cozinha. "Ela quase sorria", diz o texto, "mais e mais se deformava, qua-se idêntica a si mesma".
É curioso pensar que o sentimento de inveja crie a dolorosa oportunidade para Ofélia, deformando-se, coincidir consigo mesma. A heroína despedaçada, em momento de pura epifania negativa, surge no estertor de seu suplício. A turbulência da deformação que o leitor acompanha revela quão longe está a personagem de suas pulsões, fantasias e desejos, componentes de sua infância não vivida que, ao irromperem na consciência, carregam um caráter demoníaco imprevisto em tão polida figura.
O nome Ofélia nos convoca a uma rápida comparação da protagonista do conto com a personagem homônima shakespeareana: enquanto a Ofélia de Hamlet enlouquece ao perder suas figuras masculinas com a morte do pai, a ausência do irmão e o afastamento incompreendido do amado Hamlet (que a toma como objeto sádico em sua simulação como louco), a Ofélia de Clarice vivencia a perda de uma completude imaginária. A Ofélia de Shakespeare perde o lugar de um ser-para-o-outro, enquanto a de Clarice perde a si mesma como objeto de contemplação. Ela se vê incompleta por não ter a posse desse objeto idealizado (o pinto), e a onipotência narcísica, tão presente nas visitas à vizinha, sofre um terrível (e necessário) abalo6.
Segundo Mezan, a menina Ofélia, ao "querer tudo", a partir da visão do pinto, buscaria o preenchimento imaginário de sua carência, agora exposta aos olhos da vizinha:
[...] o que importa compreender é que o invejoso começa por atribuir ao outro um estado ou uma condição de que se imagina privado ("você tem tudo") - este é o objeto da inveja -, para em seguida vincular esse estado à posse de um "algo", uma espécie de talismã, do qual é imperativo privar o outro seja por que meio for - e este algo é o suporte da inveja ("e eu terei um ponto"). (Mezan, 1987, p. 124)
Ao tentar abolir em si a fenda do desejo, igualando-se aos deuses em sua hybris, Ofélia é flagrada na desmesura de seu querer invejoso. Antes de sucumbir à inveja, a casca adulta de Ofélia se rompe e vive-se a "agonia de um nascimento". A narradora observa Ofélia e "a dor de sua alegria difícil", "a lenta cólica de um caracol": "Até então eu nunca vira a coragem de ser o outro que se é, a de nascer do próprio parto, e de largar no chão o corpo antigo" (1992, p. 131). Ao lado da natureza destrutiva da inveja (segundo Chaucer, o maior de todos os pecados7), o conto de Clarice não deixa de sublinhar o vislumbre de uma infância que retorna fugazmente. Ofélia brinca e se encanta com o pintinho, esquecendo-se que ele não é seu e que só poderá ser seu à força. A narração constata a transformação: "Já há alguns minutos eu me achava diante de uma criança. Fizera-se a metamorfose" (1992, p. 132).
Cruel diferença
Chegamos aos instantes finais do conto, em que Ofélia vive o "tormento da liberdade", nas palavras da narradora. Esta é a angústia da menina diante do pinto na cozinha e do conflito entre seguir seu ímpeto de amor pelo bichinho ou resguardar-se no orgulho. A narradora reconhece que deixar Ofélia entregue à sua dor era ajudá-la a enfrentar a si mesma, mas também condená-la a suportar "a humilhação de querer tanto": "Com alguma vergonha notei que estava me vingando. A outra sofria, fingia, olhava para o teto. A boca, as olheiras" (1992, p. 132). Dá-se um embate entre a invejada e a invejosa: "Só a hostilidade nos unia" (1992, p. 132), diz a narradora. No vasto campo de afetos da inveja, a agressividade se manifesta e circula entre as duas personagens.
Tendo perdido por instantes sua identidade anterior, conhecida e familiar, o mundo pulsional é posto em movimento, tanto na sua dimensão afetuosa quanto violenta. A narradora parece empatizar agora com sua oponente: "era o amor, sim, o tortuoso amor". De fato, para Ofélia, só ela saberia cuidar do pintinho, mostrando que seu amor está banhado na sua rígida e autoritária estrutura: "Só eu sei que carinho ele gosta; ele escorrega à toa, portanto chão de cozinha não é lugar para pintinho" (1992, p. 134).
E assim vai Ofélia experimentando as garras do amor, como vemos em Sofia, do conto "Os desastres de Sofia" (1964), ou em Joana, de Perto do coração selvagem (1944), todas personagens claricianas desviantes e intensas. Após deixar o pinto na cozinha, a menina resolve subitamente ir para casa. Percebendo um silêncio a mais na sala, a mulher vai em direção à cozinha: "No chão estava o pinto morto. Ofélia! chamei num impulso pela menina fugida" (p. 135).
Não se trata, na inveja, de apenas apossar-se do que é alheio. É preciso obstar o gozo do outro, impedi-lo de "ter tudo". Tornou-se intolerável, para a recém-nascida criança, suportar a felicidade daquela mulher, enquanto ela mesma se via vazia e diferente, despossuída de seu objeto total: "O desejo que acompanha a inveja é assim determinado como um desejo de coincidência, de restauração da plenitude narcísica rompida com a descoberta do limite e da diferença, isto é, do intervalo entre um e outro" (Mezan, 1987, p. 135).
Matar o pinto pode ser lido em diversas chaves8. Algumas leituras entendem que o amor de Ofélia é desastroso e que destrói o outro pelo excesso que sufoca; outras, como a presente análise, acentuam o caráter invejoso desse desastre. Acidente ou crime, o fato é que a inveja está lá e faz o enredo transitar de Eros a Thânatos, tensão irremediável de todos nós.
Parte II: de Thânatos a Eros
Passo, agora, ao segundo texto mencionado, "Felicidade clandestina" (1998)9, que traz novas vicissitudes da inveja, tal como as ficcionaliza Clarice Lispector.
O enredo é conhecido: a narradora adulta relembra seu infortúnio, aos 8 anos em Recife, com a vizinha de mesma idade, cujo pai era dono de uma livraria. Sedenta por ler, mas sem condições financeiras para adquirir livros, a menina se vê enredada no cruel jogo da vizinha rica, que adiava o empréstimo dos livros do pai, mantendo a voraz leitora em seu suplício desejante: "[...] pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina" (1998, p. 11).
O texto configura claramente dois momentos, parecido com o conto anterior, mas invertido. A primeira metade relata as humilhações que a menina sofria nas mãos sádicas da vizinha. A segunda é a redenção pela via amorosa da mãe boa, que estranha as repetições da visita daquela mocinha em sua livraria e a livra do martírio. Quem narra quer também vingar-se do passado torturante, desenhando com palavras cruéis a vizinha maldosa:
Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. (1998, p. 9, grifos meus)
De um lado, a gorda, baixa, sardenta, de busto enorme e excessiva em tudo. As aliterações do fonema /b/ (que se repetem dois parágrafos depois na frase "chupando balas com barulho) ostentam as posses da filha do dono da livraria. De outro, a narradora opõem-se à vizinha abastada (hiperbólica em corpo e em dinheiro), dizendo-se "achatada", ou seja, ainda sem os atributos da maturidade feminina, enquanto a vilã tinha "bustos enormes". A consciência que rememora interpreta a vizinha: "Como ela devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo" (1998, p. 9).
Carência e opulência contrastam desde o início. Diante da desigualdade material entre ambas, refletindo a distância das classes sociais na Recife dos anos 1920 - que foi, de fato, a cidade em que viveu Clarice Lispector da infância até a pré-adolescência, mudando-se para o Rio aos 12 anos, após a morte da mãe, o que atribui ao relato uma feição autobiográfica10-, a narrativa adquire uma face, talvez, vingativa. Afinal, agora é ela, a narradora adulta, que dispõe do controle da ficção como arma de combate. Aos olhos do leitor, ela surge como vítima da sádica menina, que exercia contra ela sua "calma ferocidade". Sem dúvida, a que tem tudo (mas lhe falta imaginação criativa, a julgar pelos pobres cartões-postais que enviava aos colegas, com
escritos sem graça) parece invejar aquela voraz leitora. Esta, por sua vez, acaba suportando uma verdadeira "tortura chinesa" em sua "ânsia de ler". Adiando a entrega do livro tão desejado pela narradora, que voltava no dia seguinte para ouvir, de novo, que o livro havia sido emprestado a outra pessoa, a personagem e seu plano "tranquilo e diabólico" cavam fundas olheiras na leitora frustrada.
Há de se notar que esse texto, ao lado de outros que também flertam com fatos biográficos ocorridos na infância em Recife ("Resto de carnaval" e "Cem anos de perdão" entre eles), desenha um campo da obra voltado para a ritualização de transformações da puberdade. A criança frágil vivencia momentos epifânicos de mudança de patamar em seu desenvolvimento psíquico sexual, mobilizando um turbilhão de emoções a que a escrita busca dar um contorno.
Nota-se no confronto das meninas uma complementariedade entre a inveja de uma e a inveja da outra. Também a que narra deseja o que não tem, permanecendo sempre "boquiaberta" pela voracidade que a mantém no jogo tão sofrido. No entanto, mesmo que inveje a riqueza da vizinha, não é essa a inveja que movimenta o enredo e sim a da maquiavélica garota. Recusando-se a oferecer o livro prometido, ela goza com a dor da outra e faz seus ataques contra a capacidade de fruição estética e imaginativa que, justamente, ela não tinha. Sem dizer que entre as duas havia a diferença física, outro elemento passível de inveja pela menina gorda. Recíproca inveja, aliás, pois as "achatadinhas" não invejavam também a precocidade da outra, enquanto não maduravam?
O livro do pai
Quando a narradora fica sabendo "casualmente" que a vizinha tinha Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, a descrição que faz do livro é bastante sensualizada: "Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses" (1998, p. 10). O caráter erótico desse objeto idealizado salta à vista e talvez por isso sustente a submissão da carente menina. O adjetivo "grosso" também é utilizado para compor a vizinha:
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra (1998, p. 11).
Sadismo e masoquismo caminham juntos, como se vê. O fel que escorre da filha do proprietário da livraria (note-se que ela não tem nome, sendo referida pela filiação material que lhe dá o status invejado pela outra) também libidiniza a cena, assim como o prazer daquela que aceita sofrer. O circuito infernal só será interrompido pela suspeita da mãe da vizinha, que pede explicações para a filha sobre a aparição "muda e diária daquela menina à porta de sua casa". Ao entender tudo,
[...] Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. (1998, p. 11)
A partir desse momento, a narrativa faz a sua peripécia, já que a mãe obriga a filha a emprestar o livro e diz à ávida leitora que ela poderia ficar com ele pelo tempo que quisesse. "Valia mais do que dar o livro", anota a narradora, "é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer" (1998, p. 11). O tempo verbal no presente do indicativo ("é tudo") mostra que a menina do enunciado parece sobrepor-se à adulta da enunciação. Tudo está sendo vivido no aqui e agora, presentificando uma experiência dolorosa, mas que ganha sua salvação.
Ao receber o livro, ela, que antes pulava infantilmente pelas ruas de Recife, sai "andando bem devagar", marcando uma emancipação significativa. "Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. [...] Meu peito estava quente, meu coração pensativo" (1998, p. 12).
As imagens erotizadas se intensificam sobretudo no parágrafo seguinte, trecho fundamental para compreender camadas mais recônditas do texto. Extasiada com a posse do objeto tão cobiçado, entregue pela mãe boa da outra, agora é ela mesma quem estabelece o jogo do adiamento, prolongando os "prazeres preliminares" de um ato sexual simbólico, que explodirá nas frases finais do conto. Mas antes cito a passagem que o prepara:
Chegando em casa não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosa, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. (1998, p. 12)
Mas caberia perguntar: por que felicidade clandestina? E aqui é preciso adentrar um pouco mais no simbolismo do livro, tal como aparece nos parágrafos que encerram o conto:
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante. (1998, p. 12)
A sacralidade do livro, cuja fruição se dá em rito de devoração11 sempre adiado - intensificando o prazer da posse -, apoia-se na identificação metafórica entre livro e amante. A ambiguidade da palavra "amante" nos remete a núpcias transgressoras, que só podem se dar na clandestinidade. A felicidade que se abre com a oferta do livro pela mãe (não por acaso é a mãe...) situa o amor pelo objeto proibido e inalcancável na encruzilhada edípica, sendo o livro uma extensão de quem o contém. Retomo a frase já citada no início desse ensaio: "Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria" (1998, p. 9, grifo meu). Antes do livro está, gramaticalmente, o pai, tão desejado pela narradora12. Num duplo deslocamento, a menina transfere ao pai da outra seus afetos clandestinos e faz do livro também um duplo metonímico do pai cobiçado. O livro será, então, o falo do pai impossível.
*****
O percurso analítico desse conto contrapôs, na primeira parte, o caráter invejoso do olhar da vizinha à voracidade incorporadora e insaciável da voz enunciativa do texto. Ao mesmo tempo, notou-se que a narradora também é tocada pela inveja daquela que tudo tem (e não usufrui), enquanto a vilã da narrativa é marcada igualmente pela oralidade voraz que habita seu corpo.
Ou seja, a dinâmica é complexa e envolve ambas as personagens em tenso conflito, intercambiando aspectos recíprocos.
Na virada da história, a mediação da mãe generosa instaura um outro cenário, avesso aos impulsos tanáticos do início. O presente dos céus é dado sem restrições, abrindo ao infinito sua fruição. Os procedimentos textuais configuram um campo atravessado pelo erotismo e pela fantasmática edípica, na qual o livro surge como um substituto fálico do pai e um preenchimento da carência material. A narradora transgride em sua fantasia a lei da propriedade, adentrando em território do que é alheio (livro, pai).
O conto, portanto, instaura duas atmosferas oponentes: a primeira apresenta a virulência das relações humanas no jogo sádico da invejosa com a voraz leitora. A segunda parte transforma a degradação pérfida em momento epifânico, dominado pela suspensão das leis da realidade, em que a brutalidade é abruptamente expurgada do texto, cedendo lugar de forma absoluta ao sublime erótico e estético.
Se no primeiro conto estudado a destruição é o ponto de chegada do enredo, no segundo o percurso caminha do ódio ao amor. A felicidade clandestina é gozada com um amante fantasístico e através dele dá-se a transformação da pré-púbere em mulher. Eros, assim, toma a forma da palavra, representada pelo livro como suporte da satisfação plena. Dessa maneira, Clarice Lispector nos traz uma flagrante prova de amor à arte, acima de todo infortúnio.
REFERÊNCIAS
Gotlib, N. B. (1994). Uma vida que se conta. São Paulo: Ática. [ Links ]
Klein, M. (1991). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In ______. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1946). [ Links ]
Lispector, Clarice. (1992a). A legião estrangeira. São Paulo: Siciliano. [ Links ]
______. (1992b). A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves. [ Links ]
______. (1998). Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco. [ Links ]
Martins, G. (2010). Estátuas invisíveis. Experiências do espaço público em Clarice Lispector. São Paulo: Nankin; Edusp. [ Links ]
Mezan, R. (1987). A inveja. In S. Cardoso et al. (Org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Pessanha, J. A. M. (1989). O itinerário da paixão. Remate de Males, 9. [ Links ]
Pontieri, R. (1999). Clarice Lispector. Uma poética do olhar. São Paulo: Ateliê Editorial. [ Links ]
Waldman, B. (1992). A paixão segundo C.L. (2ª ed., rev. e ampliada). São Paulo: Escuta. [ Links ]
Endereço para correspondência:
YUDITH ROSENBAUM
Rua Paraguaçu, 174/52
05006-010 São Paulo SP
tels.: 11 3661-6385 / 11 98383-8032
yudith@uol.com.br
Recebido 10.04.2018
Aceito 28.04.2018
1 O presente ensaio é uma versão modificada e ampliada de duas análises que compõem meu livro Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector (2006).
2 Como se vê na frase: "Eu, que então copiava o arquivo do escritório, eu trabalhava e ouvia" (1992, p. 126). Ou ainda, mais adiante: "Eu erguia os olhos da máquina, e não saberia há quanto tempo Ofélia me olhava em silêncio" (1992, p. 127).
3 Em "Clarice Lispector: o itinerário da Paixão", o filósofo José Américo Motta Pessanha considera essa "miniatura de adulto" como "[...] categórica, proverbial, serena diante de um mundo fictício feito só de soluções definitivas ('Empada de legumes não tem tampa'), mundo sem surpresas, resolvido, sem mistério - morto. Ofélia, trágica Ofélia: pura tradição, puro tempo cristalizado, puro culto da memória habitando pequeno corpo de criança-múmia, Ofélia endemoninhada, que não era ela mesma, essa 'menina tão inteligente'" (1989, p. 188).
4 Tomo a expressão da teoria kleiniana, que conceitua a identificação projetiva como um mecanismo de defesa contra ansiedades persecutórias pelo ego arcaico do bebê. O ego cinde suas partes más e as projeta no objeto externo, que passa a ser uma ameaça para o próprio ego. Identificado com o que foi projetado no exterior, o ego mantém com o objeto uma relação agressiva. A esse respeito, ver "Notas sobre alguns mecanismos esquizoides" (Klein, 1991, p. 27).
5 Em cena anterior, temos as frases "Ofélia olhou-me muda, inquisitiva", "Ela sustentou o olhar. O olhar onde - com surpresa e desolação - vi fidelidade, paciente confiança em mim e o silêncio de quem nunca falou","[...] Desviei os olhos". E mais adiante, quando a mãe de Ofélia interpela a narradora: "A mãe olhou-me em leve surpresa - mas a suspeita passou-lhe pelos olhos. E neles eu li: que é que você quer dela"? (1992, p. 128, grifos meus). Para maior aprofundamento desse tópico clariciano, ver Pontieri (1999).
6 Em Hamlet por Lacan, o psicanalista aproxima o nome Ofélia a "O-phallos", entendido falo como "qualquer coisa que possa completar uma falta na subjetividade" (1986, p. 61).
7 "É certo que a inveja é o pior pecado que existe, porque todos os outros são pecados contra uma só virtude, enquanto a inveja é contra toda a virtude e contra tudo que seja bom" (Chaucer, citado por Klein, 1991, p. 221).
8 Berta Waldman, comentando o mesmo conto, afirma: "Ofélia transgride o mandamento por amor, ou melhor, ela mata porque não consegue estabelecer o acordo necessário entre o desejo e o objeto desejado. Inadvertida, avança o sinal e sufoca o pintinho" (1992, p. 162).
9 O mesmo conto foi publicado, em 02.09.1971, como crônica no Jornal do Brasil com o título "Tortura e glória" (1992, pp. 20-21).
10 A biógrafa Nádia Battella Gotlib recupera a história de Clarice e de sua vizinha Reveca, contada pela irmã desta: "Diziam que Clarice tinha inveja de Reveca porque ela tinha boneca de louça suíça, borrachas importadas, lápis de cor, caderno de desenho, tinha tudo estrangeiro, que meu pai comprava. Depois desse caso dos livros, ela nunca mais veio em casa. Ela devorava os livros com os olhos. Acho que nunca tinha visto tanto livro dentro de uma casa. Reveca disse que Clarice uma vez chorou porque um padre disse que não era ela que havia escrito. Ela era muito tímida porque [...] ela era muito inteligente e muito pobre" (1996, p. 100).
11 Ver análise do mesmo conto por Gilberto Martins (2010, pp. 23-40).
12 "Ao fim, parece ser esse o verdadeiro objeto da inveja da protagonista: pais tornados fantasmáticos que atendam a suas necessidades e demandas, internas e externas, imaginárias e concretas" (Martins, 2010, p. 36).