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Print version ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.42 no.70 São Paulo July/Dec. 2020
EM PAUTA | A VIDA COMO OBRA DE ARTE
O rico e dramático mundo (interno) de Fernando Pessoa
Fernando Pessoa's rich and dramatic (internal) world
Flávio Rotta CorrêaI; Carlos Augusto Ferrari FilhoII; Ana Cristina Azambuja TofaniIII; Tatiana BlochteinIV
IMembro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)
IIMembro efetivo e assistente de ensino da SPPA
IIIMembro aspirante graduado do Instituto de Psicanálise da SPPA
IVPsicanalista
RESUMO
Partindo da prosa, poemas e cartas de Fernando Pessoa, busca-se entender diálogos externos e internos do autor. Tentando penetrar nas trocas entre Fernando Pessoa e seus heterônimos, dialoga-se a partir de ideias de Freud, Klein, Winnicott, Fairbairn e Ogden, em uma abordagem livre e espontânea. Discute-se o fenômeno da dissociação da personalidade a partir do estudo de aspectos da fecunda vida criativa de Fernando Pessoa, em particular seus heterônimos. Poder-se-ia pensar que para alguns criativos o uso da arte constitui-se efetiva saída sublimatória? Focando na teoria das relações de objeto, examina-se o singular caso da relação entre Fernando Pessoa e seus heterônimos, fato que parece confirmar a hipótese de que narrativas imaginativas em prosa e verso permitiriam uma certa reacomodação adaptativa ao jogo pulsional durante a constituição subjetiva do sujeito.
Palavras-chave: Fernando Pessoa. Heterônimos. Relações internas de objeto.
SUMMARY
From Fernando Pessoa's prose, poems and letters, we have tried to understand the external and the internal dialogues of the author. Trying to penetrate on the exchanges between Fernando Pessoa and his heteronyms, we create a dialogue based on ideas from Freud, Klein, Winnicott, Fairbairn and Ogden, in a free and spontaneous way. The phenomena of personality dissociation is discussed through the study of the fruitful creative life of Fernando Pessoa, particularly his heteronyms. Could we have thought that for some creative individuals the use of art could constitute and effective sublimating exit? Focusing on the theory of object relations, the unique case of the relationship between Fernando Pessoa and his heteronyms is examined, which seems to confirm the hypothesis that narratives imagined as prose and verse would allow a certain adaptive re-accommodation to the drive game during the subjective constitution of the subject.
keywords: Fernando Pessoa. Heteronyms. Internal subject relations.
A origem dos meus heterônimos é o fundo traço de
histeria que existe em mim [...]
a origem mental dos meus heterônimos está na minha
tendência orgânica e constante para a
despersonalização e para a dissimulação [...]
nos homens a histeria assume principalmente aspectos
mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia.
(Fernando Pessoa, 1935/2006, p. 206)1
Introdução
O impacto que as obras poéticas provocam tem sido apontado em estudos psicanalíticos e na literatura em geral. São incontáveis, por outro lado, os ensaios que discorrem sobre o efeito desintoxicante do ato criativo para a manutenção de uma certa homeostase psíquica. Focando na teoria das relações de objeto, da forma como propõe Ogden (1989), examina-se o singular caso da relação entre Fernando Pessoa e seus heterônimos, situação que parece confirmar a hipótese de que narrativas imaginativas em prosa e verso permitiriam uma certa reacomodação adaptativa ao jogo pulsional durante a constituição subjetiva do sujeito.
A íntima relação, na qual muitas vezes confunde-se autor e personagens, manifesta-se através de inserções intencionais, claramente biográficas, nas narrativas que vão compondo a vida dos personagens, ou quando, de forma inconsciente, algum elemento - por exemplo, uma fantasia - ganha uma nova possibilidade existencial, agora como constituinte de suas subjetividades. Há algumas características que tornam a correspondência docemente banal, como a de qualquer casal daquele tempo: uma certa infantilização, os apelidos íntimos (ele a chamava de Bebê e era tratado por ela como Nininho), os ciúmes, as dúvidas, os códigos pessoais. Mas, como se trata de Fernando Pessoa, o espaço para a singeleza era dividido pela complexidade de sua constituição pessoal e de sua alma atormentada e múltipla. Assim, logo entram em cena outros Fernandos.
Fernando Pessoa
Fins do século XIX e início do século XX. Desenvolvimento da psicanálise que tem seus inícios com tratamento de transtornos histéricos (dissociativos). Nasce em Lisboa, em 1888 (13 de junho), Fernando Pessoa, genial autor de uma obra literária em prosa e verso, objeto de estudos pela sua beleza e profundidade na expressão da alma humana, seus conflitos e seus sofrimentos. Escreveu sob diversos nomes e personalidades - seus heterônimos -, produtos de sua estrutura "histeroneurastênica" (segundo seu autodiagnóstico), um transtorno dissociativo, característica psíquica que na época era o objeto primordial da psicanálise. A impressionante obra poética desse autor, que nos aproxima de suas emoções e fantasias, ao descortinar ao leitor sua intimidade e seu mundo interno, enriquece nossa busca de compreensão da mente humana.
Em 1893 morre seu pai e, no ano seguinte, seu irmão, com menos de lano de idade. Nasce Chevalier de Pas (primeiro heterônimo) - "desde criança tive a tendência de criar em meu entorno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram" (Carta a Casais, 1935/2006). Também escreve seu primeiro poema - "Minha querida mamã". Em 1895, sua mãe casa-se pela segunda vez com o cônsul de Portugal em Durban (África do Sul), onde Fernando Pessoa passa a maior parte da juventude recebendo educação inglesa e já demonstrando talento para a literatura. Em 1899, cria Alexander Search, através do qual envia cartas a si mesmo. Em 1901, morre sua irmã Madalena de 2 anos, e regressa com a família para Portugal. Depois de um período em Lisboa, retorna a Durban, onde permanece até 1905, quando regressa para Lisboa. Em 1907, morre sua avó, com quem morava desde sua volta. Ela deixa-lhe uma herança que é utilizada para montar uma pequena tipografia, que vai à falência. Em 1912, estreou como crítico literário. Em 8 de março de 1914, "acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando de um papel, comecei a escrever [...] e escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal de minha vida" (Carta a Casais). "É raro um país e uma língua ganharem num só dia quatro poetas maiores. Mas foi precisamente o que ocorreu em Lisboa. No dia 8 de março de 1914" (Steiner, 1996/2017, pp. 46-49). Tinham nascido Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Em 1920, conhece Ofélia Queiroz, com quem mantém por uns meses um namoro rompido por ele, que recomeça em 1929, para terminar definitivamente em 1931. Morre em Lisboa em 30 de novembro de 1935.
Alguns de seus escritos foram concebidos à luz da literatura policial, que muito fascinou Pessoa. Outros entendem que a poesia de cunho confessional e memorialista evoca sua infância, quando a melancolia se instaura e a nostalgia torna-se frequente. Suas cartas de correspondência amorosa podem ser consideradas um documento sintomatológico extremamente expressivo de sua patologia. Nestas manifestava o desejo salutar de reintegração de sua personalidade fraturada. Em sua biblioteca foram encontradas fichas de leitura da obra de Freud, investigando seu "mal" (Ferreira, 2012). Seu autodiagnóstico descrevia sintomas de transtorno bipolar (psicose maníaco-depressiva), inclinações patológicas e pendor suicida. A dissociação de personalidade que o acometia levava à hipótese de um distúrbio de personalidade múltipla.
O consumo excessivo e contumaz de álcool provavelmente pôs fim ao seu sofrimento.
Carta a senhora D. Ofélia Queiroz
Pela minha parte, e como íntimo e sincero amigo que sou do meliante de cuja comunicação (com sacrifício) me encarrega, aconselho V. Ex.ª a pegar na imagem mental, que acaso tenha formado do indivíduo cuja citação está estragando este papel razoavelmente branco, e deitar essa imagem mental na pia, por ser materialmente impossível dar esse justo destino à entidade fingidamente humana a quem ele competiria, se houvesse justiça no mundo.
Resposta
Exmo. Senhor Engenheiro Álvaro de Campos Permita-me que discorde por completo com a primeira parte da sua carta, porque nem posso consentir que V.ª Ex.ª trate o Exmo. Sr. Fernando Pessoa, pessoa que muito prezo, por abjeto e miserável indivíduo nem compreendo que, sendo seu particular e querido amigo o possa tratar tão desprimorosamente.
Como vê estamos sempre em completa desarmonia, nem podia deixar de ser, pedindo-lhe por especial fineza, que não volte a escrever-me.
Quanto às observações que me faz, como foram ditadas pelo Sr. Fernando Pessoa, farei quanto em mim caiba por lhe ser agradável [...].
(Apud Zenith, 2013, p. 217)
Elementos psicanalíticos
A descrição do desenvolvimento inicial do ego feita por Freud em 1915, ainda dentro da primeira tópica, refere-se à capacidade de que, através de uma incipiente estruturação psíquica, desenvolva-se ativamente, não só a distinção entre o interno e o externo, como, também, a possibilidade de processar, via identificação e projeção, as primitivas experiências de prazer-desprazer.
O ego da realidade original [...] se transforma num ego de prazer purificado [onde] o mundo externo está dividido numa parte que é agradável, que se incorporou a si mesmo, e num remanescente que lhe é estranho. Isolou uma parte do próprio Eu, que projeta no mundo externo e sente como hostil. O sujeito coincide com o prazer e o mundo externo com o desprazer. (1915/1974, p. 157)
É como se essa divisão do ego se mantivesse vivificada em Pessoa na separação entre sujeito (autodestrutivo) e heterônimos (criativo). Como pensar o complexo processo de simbolização nas fenomenologias clínicas determinadas pela dissociação do ego, considerando-se essa fundante cisão entre o prazeroso e o desprazeroso? Por hipótese, não caberia imaginar que em determinadas situações, como nos transtornos dissociativos, a exemplo do indivíduo Fernando Pessoa, nas relações entre o sujeito e seus objetos internos, precipitados em torno das experiências, tanto de desinvestidura como de investidura, teriam decisiva importância para a configuração e funcionamento do self? Demarcando, portanto, um possível equilíbrio econômico entre Eros e Tânatos para o sujeito exatamente a partir das suas relações internas de objeto?
Fairbairn (1943), apud Ogden (2014), substitui o modelo es-trutural/metáfora da mente de Freud (1923/1974) por um modelo em que a mente é concebida como um "mundo interno", no qual as partes excindidas e reprimidas do self entram em relações de objetos estáveis e potencialmente alteráveis umas com as outras. É possível relacionar esse modelo de mente, em que o bebê incorpora o seio a fim de controlá-lo e relaciona-se com objetos interiorizados, devido à falta de relações satisfatórias com objetos do mundo externo. Ou seja, ao criar uma relação interna de objeto (com a mãe não amorosa), o bebê dirige seu amor objetal nascente para um objeto interno, um objeto que é parte dele mesmo.
Os objetos internos coexistem e dialogam entre si como os heterônimos em Fernando Pessoa. Talvez essa visão explique por que alguns heterônimos seguem vigentes desde a data de sua criação, outros foram tão passageiros. Do ponto de vista de Freud, pensando em relação ao escrito em "Luto e melancolia" (1917/2006), observa-se que o objeto não foi perdido na medida em que o objeto que abandona foi substituído por uma parte da pessoa. Para Fairbairn (1944), apud Ogden (2014), o bebê divide a mãe não amorosa em mãe tantalizadora e mãe rejeitadora. Esses aspectos da personalidade (do bebê) que estão completamente identificados com os aspectos atraentes e com os aspectos rejeitadores (da mãe) também estão excindidos do ego central. Os esforços do bebê em transformar objetos insatisfatórios em objetos satisfatórios, revertendo desse modo o efeito tóxico imaginário do amor do bebê na mãe, é a motivação única mais importante a sustentar a estrutura do mundo de objetos internos.
TABACARIA
Não sou nada
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do
[mundo.
(Álvaro de Campos)
Nas palavras de Ogden:
a internalização de uma relação de objeto inclui necessariamente uma cisão do Eu em partes que, ao serem reprimidas, constituem objetos internos que mantém entre si relações inconscientes particulares. Essa relação interna fica configurada pela natureza da relação original de objeto mas, em nenhuma hipótese, mantém com ela uma correspondência exata, e, por outro lado, é potencialmente modificável através de vivencias posteriores. A relação interna de objeto pode mais adiante ser externalizada novamente mediante a projeção e a identificação projetiva em um marco interpessoal, gerando assim os fenômenos de transferência e contratransferência da análise e todas as demais interações interpessoais.2(1989, pp. 107-108)
NÃO SEI QUANTAS ALMAS TENHO
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
(Fernando Pessoa)
Obra literária e seu impacto estético: relações entre o escritor e seus leitores
Busca-se entender o impacto que as obras poéticas produzem. Freud (1908[1907]/1993) diz que em cada homem há um poeta, e somente com o último homem morrerá o último poeta. O poeta faz o mesmo que uma criança que brinca: cria um mundo fantástico e o toma como sério, se sente ligado a ele sem diferenciá-lo da realidade. Nessa irrealidade do mundo poético nascem consequências importantes para a técnica artística, e muitas emoções penosas podem converter-se numa fonte de prazer para o auditório do poeta. Ocorre que o homem ao crescer para de brincar, renunciando assim ao prazer que obtinha. Porém na realidade não se pode renunciar a nada, o que parece renúncia é uma substituição: em vez de brincar, fantasia, cria os sonhos diurnos. Sabe-se que é mais fácil observar o brincar das crianças do que as fantasias dos adultos, pois estes se envergonham delas, considerando-as como algo da intimidade, ou porque são carregadas de desejos que necessitam ocultar. Entende-se então que o prazer estético que o poeta proporciona está carregado pelo prazer preliminar: o verdadeiro gozo da obra poética provém da descarga de tensões dadas na alma.
Marcos Aguinis (1999) aponta que a novidade de Freud é que tanto uma criança como o criador literário coincidem em cinco características que são próprias do brincar infantil: 1) criar um mundo infantil; 2) tomá-lo a sério; 3) injetam muito afeto; 4) o vigorizam com materiais da realidade concreta; 5) o mantém separado desta realidade.
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor.
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
(Fernando Pessoa)
Freud comenta que a novela psicológica deve em geral sua peculiaridade à tendência do poeta moderno a dissociar seu ego por meio da auto-observação, em egos parciais e personificar em consequência em vários heróis as correntes contraditórias de sua vida anímica. Seria essa uma possível explicação para Fernando Pessoa e seus heterônimos? Ao entender como se formam as fantasias, há uma compreensão das produções do escritor criativo: um poderoso fato atual desperta no poeta a recordação de um acontecimento anterior, pertencente quase sempre à sua infância, e desta parte então o desejo, que se cria satisfação na obra poética, à qual aparecem elementos da ocasião recente e da antiga recordação. No ato da composição poética, o autor tende a externalizar ou atualizar aspectos de seu ser e representações de objetos e de suas interações, tal como existem na fantasia inconsciente pertinente. Para o casal Josephe e Anne-Marie Sandler (1999), essa gratificação é o resultado da combinação de três processos estreitamente relacionados entre si: a gratificação de desejos através de uma identidade de percepção oculta, a identificação primária persistente e a identificação projetiva.
No texto "A interpretação dos sonhos", Freud (1900/1974) afirmou que, uma vez que o bebê tenha uma experiência particu-lar de satisfação, quando a necessidade aparecer, surgirá também um impulso psíquico que carregará novamente a imagem mnêmica de dita percepção e provocará mais uma vez esta última, ou seja, tenderá a reconstituir a situação da primeira satisfação. Tal impulso é o que os autores qualificam de desejos, a reaparição da percepção é a realização do desejo. Essa primeira atividade psíquica possui uma identidade de percepção, ou seja, a repetição daquela percepção enlaçada com a satisfação da necessidade.
Se ampliar o conceito de identidade de percepção, pode-se concluir que o leitor de uma composição criativa pode decodificar (ao menos em parte) as fantasias inconscientes que estão por trás da obra do escritor. Esta é uma das vias de acesso à compreensão do motivo pelo qual a obra do poeta proporciona tão intensa satisfação ao artista que a cria e ao leitor.
Pode-se entender a identificação primária (Freud, 1923/1974) como um estado do desenvolvimento infantil primitivo em que a representação mental do self do bebê não se distingue da do objeto: não existe um limite firme, self e objeto são o mesmo. O desenvolvimento dos limites do self-objeto pode ser um momento que conclui essa fase e persiste como a evocação reflexa no observador da conduta e sentimentos da pessoa observada, um processo automático ligado à percepção e distinto da imitação consciente. Os limites se estabelecem inconscientemente com rapidez, mas podem relaxar. A flutuação e oscilação do limite entre self e o outro possibilita o processo inconsciente de identificações primárias recorrentes e permite que o poeta se projete e identifique simultaneamente com aqueles aspectos de seu self e dos objetos, experimentando as relações entre eles tal como as representa em sua obra. É um processo que lhe permite modular e refinar seus personagens de forma significativa e satisfatória. Escritor e leitor utilizam essa forma de identificação primária e obtêm prazer da criação empregando exatamente o mesmo mecanismo. Vive-se em constante alternância entre identificações e desidentificações.
O homem necessita se precaver de que o que tem projetado (separado e deslocado de sua representação de self a uma representação de objeto) é próprio para sentir com alívio e prazer o que tem desfeito de uma parte não desejada de seu self. Esse processo permite sentir que o que se projeta é próprio por um instante e quase imediatamente tranquilizador porque não é próprio, senão de outro.
A preocupação central de Freud neste artigo é a necessidade de expor suas ideias sobre a existência de uma reserva onde reina o princípio do prazer, livre da realidade, que para alguns se situa no sonho diurno, e, para os privilegiados, como Fernando Pessoa, na escrita. Quanto mais ressoe na obra algo inconsciente e profundamente evocador, maiores as possibilidades de aplausos da crítica. Os livros, o cinema, o teatro e a televisão podem proporcionar a reserva para a conservação do pensamento fantasiado de Freud ou o ligará ao descanso para a ilusão de Winnicott.
Winnicott e o processo criativo
Winnicott (1975) adotou e desenvolveu nesse modelo a sua ideia de espaço transicional, uma área intermediária, que chamou de um lugar de repouso: porque ao viver ali o indivíduo descansa da tarefa de distinguir entre o fato e a fantasia. O espaço do brincar, espaço potencial entre o bebê e a mãe, varia de acordo com as experiências do bebê em relação à mãe, com o mundo interno e com a realidade externa. Nesse espaço intermediário entre o objetivo e o subjetivo, que não é dentro nem fora, se localiza a experiência criativa, e ele é necessário para o início de um relacionamento entre a criança e o mundo. O fenômeno transicional e o objeto transicional pertencem ao domínio da ilusão, base do início da experiência. Esse primeiro estádio do desenvolvimento é tornado possível pela capacidade da mãe (e pai) de efetuar adaptações às necessidades do seu bebê, o que permite a ilusão de que aquilo que o bebê cria existe realmente. É fundamental que a mãe possa tolerar esse objeto transicional, que é ao mesmo tempo ela própria e um substituto dela. Observa-se que não é o objeto que é transicional, pois ele representa a transição do bebê de uma relação de dependência absoluta com a mãe para um estado de relação com a mãe como algo externo e separado.
Essa área intermediária de experiência, incontestada quanto a pertencer à realidade interna ou externa (compartilhada), constitui a parte maior da experiência do bebê e, através da vida, é conservada na experimentação intensa que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginativo e ao trabalho científico criador. (pp. 13-44)
Pode-se dizer que, a partir de um funcionamento amorfo e desconexo, emerge o criativo. Winnicott destaca que é somente no brincar que o indivíduo pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral, e que somente sendo criativo que o indivíduo descobre seu próprio eu (self) (p. 80). Nesse período precoce o self do bebê ainda não está integrado, e somente com o tempo o contato do bebê com a mãe vai gerando uma consistência interna e uma delimitação do seu próprio self (p. 52).
À MINHA QUERIDA MAMÃ
Ó terras de Portugal
Ó terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Inda gosto mais de ti.
(Fernando Pessoa)
Os "jogos" (brincar) dos poemas de Fernando Pessoa não se passavam nem dentro, nem fora, mas no espaço potencial entre o objetivo e o subjetivo, entre o concebido e o percebido. Um espaço que não é, e não será, propriamente o da compreensão consciente e reflexiva, traduzida em símbolos. Quando o simbolismo é empregado, o bebê já está distinguindo entre fato e fantasia, entre objetos internos e objetos externos, entre criatividade primária e percepção (Winnicott, 1975, p. 19).
Referindo-se às origens da criatividade (no sentido de estar vivo), Winnicott diz que é através da apercepção criativa que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. À medida que a criança se desenvolve e os processos de amadurecimento se tornam mais apurados, as identificações se multiplicam e a criança se torna cada vez menos dependente de obter de volta o eu (self) dos rostos da mãe, do pai e dos outros rostos com os quais possui relacionamento fraterno ou parental. Assim, com o próprio eu (self), o indivíduo será capaz de existir e sentir-se real, no sentido de descobrir um modo de existir como si mesmo e ter um eu (self) para o qual retirar-se para relaxamento (1975, p. 161). Uma mãe suficientemente boa oferece um holding que auxilia o bebê a encontrar o espaço para realizar um gesto espontâneo. O gesto espontâneo foi um termo utilizado por Winnicott (1987/2017) para designar uma das inúmeras maneiras pelas quais o verdadeiro self pode se expressar. Estaria relacionado ao cerne, centro do ser, representando o que há de mais autêntico, mais genuíno em especial para Fernando Pessoa.
No "Desenvolvimento emocional primitivo", Winnicott aponta que no processo de vir a ser um indivíduo, assim como o bebê, o escritor junta isso e aquilo, aqui e ali. É com o auxílio da mãe que o bebê reúne as experiências de self para ficar coeso num lugar, sendo que somente após surgir o senso de self para o bebê e para o escritor é que se pode reconhecer a contribuição de outros para a criação de si e das próprias ideias. Pode-se pensar que os heterônimos são esses pedaços que se reúnem em Fernando Pessoa?
O poeta/artista vive o dilema de criar a partir do isolamento, mantendo-se autônomo, e de querer ser encontrado e comunicar. Essa dupla exigência é típica da comunicação que se dá na área intermediária entre a poesia, a arte e o mundo da cultura. Observa-se que esse dilema pertence à coexistência de duas tendências: a necessidade urgente de se comunicar (inúmeras poesias) e a necessidade ainda mais urgente de não ser decifrado (heterônimos).
Embora tenham sido esclarecidos alguns mecanismos que operam na atividade criadora, as razões do especial talento do poeta seguem sendo um mistério.
Referências
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Recebido 06.03.2020
Aceito 18.04.2020
1 Carta de Fernando Pessoa a Casais Monteiro. In Poesia de Fernando Pessoa (A. C. Monteiro, introdução e seleção). Lisboa: Presença, 2006. (Publicada originalmente em 1935)