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Ide

Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.71 São Paulo Jan./June 2021

 

OUTRAS VIAGENS

 

Uma temporada no Hades: um giro épico no hiato divino

 

A season at Hades: an epic stroll through the divine hiatus

 

 

Élvio Pereira Cotrim de Freitas

Doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Literatura Francesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e possui bacharelado e licenciatura em francês pela mesma universidade. É professor de língua francesa e de literatura. Trabalhou como pesquisador de autores como William Shakespeare e Arthur Rimbaud. Atualmente pesquisa romances distópicos / elviocotrim@gmail.com

 

 


RESUMO

O épico homérico canta o retorno de Odisseu a casa, suas errâncias e aprendizagens ao longo desta jornada. No canto XI da Odisseia, o herói vai ao Hades, espaço invisível a deuses e homens. Chama-se Nekyia esse encontro dos vivos com os mortos. O Hades é o espaço de interesse aqui trabalhado. Este artigo propõe, portanto, um diálogo entre o argumento de Walter Benjamin em "O contador de histórias" (1936/2018), e o estudo do helenista George Alexander Gazis, Homer and the poetics of Hades (2018), sobre a viagem mais radical realizada por Odisseu.

Palavras-chave: Homero, Odisseia, Hades, Nekyia


ABSTRACT

The Homeric epic sings Odysseus' return home, his wandering and learning throughout this journey. In Book XI of the Odyssey, the hero goes to Hades, a space invisible to gods and men. Nekyia is the name given to the encounter between the living and the dead. Hades is the area of interest worked on here. This article therefore proposes a dialogue between Walter Benjamin's argument in "The storyteller" (1936), and the study by Hellenist George Alexander Gazis, Homer and the poetics of Hades (2018), about Odysseus' most radical journey.

Keywords: Homer, Odyssey, Hades, Nekyia


 

 

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ella nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos Deuses.

Mas serenamente
Imita o Olympo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

(Ricardo Reis)

A arte de narrar é uma espécie de forma artesanal da comunicação, e nisso Homero é campeão. Herdeira de uma longa e heroica tradição oral, tomando emprestado para si relatos oriundos de vários cantos do Oriente Médio, a Odisseia agrupa em seus 12.109 versos hexâmetros coisas "tão pouco épicas (se tomarmos por modelo a austeridade da Ilíada) como Lotófagos, Lestrigones, feiticeiras que transformam homens em porcos e consultas de necromancia a profetas mortos" (Lourenço, 2018b, p. 25). Em seu texto "O contador de histórias",1 publicado originalmente em 1936, o filósofo alemão Walter Benjamin faz uma reflexão sobre os homens que retornaram dos campos de batalha da primeira grande guerra eu-ropeia. Assim diz o pensador alemão: regressam da guerra pobres de experiências compartilháveis, voltam mudos, não têm o que dizer. É exatamente o oposto do que faz o herói Odisseu ao retornar de Troia. Ele retorna para casa, é certo, não sem antes passar dez anos errando pelos mares. Homero canta o passado glorioso dos guerreiros gregos que é resgatado justamente em sua luminescência pelas narrativas do homem muitas-voltas. O que é a Odisseia senão o relato de pós-guerra do guerreiro Odisseu "depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada" (Od. i, 2)?

A primeira palavra da epopeia homérica no original em grego é homem. O gesto poético inaugural do aedo não deixa dúvidas de que é o homem a matéria épica em questão. Enquanto na ïlîada cada ação humana é implacavelmente regulada pelos deuses do Olimpo até o absoluto apaziguamento da cólera de Aquiles, na Odisseia as rédeas estão mais frouxas, isto é, existe uma área que os deuses não alcançam, o Hades, lugar para onde vai Odisseu no canto XI. Apenas o contador de histórias benjaminiano por excelência é capaz de acessar esse espaço invisível e inacessível a deuses e homens. Este artigo propõe um diálogo entre o argumento do filósofo alemão e o estudo do helenista George Alexander Gazis, Homer and the poetics of Hades (2018), sobre a viagem mais radical realizada por Odisseu: ao lugar interdito e invisível aos deuses e homens.

Os argumentos centrais da tese de Gazis são: o Hades na épica homérica existe como um reino e não como um deus2 - a mansão de Hades, portões do Hades, a mansão bolorenta de Hades; para além de ser um reino, o Hades é invisível, isto é, ele ocupa um espaço inalcançável aos deuses e homens. Em grego, Hades à Aàídes, o invisível (Gazis, 2018). No entanto, Odisseu rompe o interdito e acessa o Hades. Por que razão, dentro da mundividência homérica, é concedido a esse personagem penetrar o espaço onde jamais "contempla o Sol resplandecente com seus raios"? (Od. xi, 16). Tratar-se-ia, afinal, de mais uma dentre tantas passagens espúrias do épico? Ou, como defende Grazis, seria o Hades um armazém repleto de histórias humanas a salvo do ordenamento épico da kleos e da time que são revelados por Homero, numa estratégia poética radical?

Benjamin, por sua vez, sentencia logo no primeiro parágrafo de seu texto a seguinte frase: "É cada vez mais raro encontrarmos pessoas capazes de contar uma história como deve ser" (1936/2018, p. 140). Essa citação aparentemente desencantada e seca veio ao encontro do personagem tema deste número da revista Ide: Odisseu. O herói que sai vivo da guerra contra os troianos e retorna ao lar depois de uma longa errância entre canibais, deusas sedutoras e suas promessas, plantas alucinógenas e monstros marinhos, gigantes monoculares. Perseguido pelos deuses e desejado pelas deusas, o herói encontra abrigo na corte dos Feaces, a quem ele narra suas aventuras. O espaço que ele percorre transborda os limites da conhecida rota mediterrânea. Odisseu é, portanto, um homem que sabe contar uma história como deve ser. O filósofo alemão cita o poeta Matthias Claudius em seu texto: "Quem faz uma viagem traz sempre muito que contar" (Benjamin, 1936/2018, p. 141). Os primeiros versos do épico homérico dizem assim: "Fala-me, Musa, do homem versátil que tanto vagueou/depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada./De muitos homens viu as cidades e a mente conheceu;/e foram muitas no mar as dores que sofreu em seu coração" (Od. I, 1-4). Exatamente, o homem que tanto vagueou e muitas cidades e mentes conheceu é, indubitavelmente, o narrador que Benjamin elege como ideal. O filósofo imagina o contador de histórias "como alguém que vem de muito longe" (1936/2018, p. 141). Por isso mesmo, o marinheiro é apresentado como protótipo de narrador por excelência. Aquele que em muitos lugares esteve e foi capaz de trocar experiências, contar tanto suas próprias quanto acrescentar muito da alheia. Quando se pensa na palavra grega que adjetiva Odisseu logo no primeiro verso do épico homérico, polytropos (nokmponoç), também se pode observar a marca do viajante nela. As traduções em português mais atentas procuram trazer para o idioma a marca fundamental desse adjetivo, composto de um prefixo e de um substantivo. Em português o sentido do prefixo poli- se faz evidente, pois o herdamos: muitos. Polivalente, poliesportivo, politeísmo etc. Já o substantivo tropos possui um sentido de girar, rodar, voltear. Com o processo de formação dos adjetivos em grego, Odisseu é definido, grosso modo, como um homem muitas-voltas. A lista de soluções de tradução para o português é tanto longa quanto espetacular: versátil, muitas-vias, astucioso, ardiloso, solerte, industrioso, multifacetado, fértil em expedientes. Já a helenista Emily Wilson, em sua recente tradução da Odisseia para o inglês, trouxe uma solução interessante para a palavra polytropos - complicated. Odisseu é um homem complicado. Aqui a tradutora apelou para a etimologia da palavra complicado, que em latim, complicare, significa dobrar junto, dobrar com. A solução dada por Wilson, à luz de Benjamin, parece reforçar a ideia de comunicação, de dar voltas em companhia de. Odisseu é aquele que dá muitas voltas, tanto no mar quanto na linguagem, e está sempre em interação.

Em suas errâncias, à altura do canto x, o herói se encontra na ilha de Eeia, onde vive "Circe de belas tranças, terrível deusa de fala humana" (Od. X, 136). Depois de se safar do logro da deusa, derrotando-a com o auxílio de Hermes, Odisseu recebe dela instruções para ir ao Hades consultar o profeta Tirésias, que "[lhe] indicará o caminho, a distância da viagem e o [s]eu regresso" (Od. X, 539-540). Mesmo exaurido de tantas viagens, Odisseu empreende, à guisa de desvio, a viagem à terra dos Cimérios, às portas do Hades. Esse episódio da Odisseia possui o nome de Nekyia.

A Nekyia (tf véKuia) é lugar-comum em textos e relatos antigos. O interesse da humanidade pelo submundo e pelo espaço limítrofe aparece registrado já nas tabuletas do épico sumério de Gilgamesh e encontra sua expressão mais famosa, pelo menos entre os leitores modernos, na descida ao Inferno em Dante. É prática comum aos gregos a consulta aos cadáveres dos mortos. Contudo, a Nekyia da Odisseia não cumprirá a função de informar Odisseu o seu retorno, como lhe foi afirmado pela deusa Circe no canto anterior. Seria, portanto, o canto XI uma das inúmeras interpelações tardias ao texto homérico, como consideraram os estudos de Kirchhoff (1879), Wilamovitz (1884) e Page (1955), ou a descida ao Hades possui, afinal, uma coerência interna? Gazis defende a existência de uma implicação poética da ida de Odisseu ao Hades, espaço livre de restrições sociais onde os guerreiros épicos - Agamemnon, Aquiles e Ájax, por exemplo - se expressam francamente sobre seus arrependimentos, suas tristezas e seus rancores. Foi dito anteriormente que o herói se dirige a uma zona limítrofe, portanto a leitura atenta do canto XI causa confusão sobre a extensão da penetração do rei de Ítaca no submundo. Por vezes, os personagens vêm a seu encontro. Por outras, Odisseu narra cenas que se passam no interior do Hades. Quando Aquiles reconhece Odisseu, lhe diz: "Como ousaste descer até ao Hades, onde moram os mortos" (Od. XI, 475). Daí por vezes falar-se da descida efetiva ao Hades neste texto.

Não é a primeira vez que a Odisseia apresenta uma incoerência ou uma missão fracassada, por assim dizer: o motivo central da ação de deslocamento de um personagem é sumariamente ignorado, e o leitor se depara com longas narrativas, sem que haja nenhuma estranheza ou censura internas. A viagem de Telêmaco junto a Nestor e a Menelau (cantos III e IV) para saber notícias do pai é um exemplo. O jovem príncipe, confortavelmente instalado e saciado de boa comida nas cortes de Pilos e Esparta de acordo com a boa hospedagem grega, é também alimentado de narrativas e peripécias, porém volta para casa sem notícias do pai - o que motivara inicialmente sua viagem. O mesmo procedimento se dá quando Odisseu retorna a Ítaca. É impressionante pensar que o retorno do herói se dê na metade da história. Seu único objetivo é voltar para casa, o que ocorre no início do canto XIII. Porém, uma nova jornada, dessa vez doméstica, tem início: Odisseu precisa matar os pretendentes e reocupar seu trono em segurança, seu lugar de marido e de pai. No entanto, ao desembarcar em Ítaca, disfarçado de mendigo, é o porqueiro Eumeu quem passa a maior parte do tempo com Odisseu. O que eles fazem juntos? Compartilham histórias. Logo de início o rei recebe notícias de que os pretendentes estão a consumir toda a comida e a preparar uma emboscada de morte para o filho. Como Odisseu reage? Longe de se mostrar alarmado, ele lamenta a falta de comida e vinho para um jantar sossegado. Odisseu "falaria sem cessar um ano inteiro, contando as desgraças que sofr[eu] no coração e todas as coisas juntas que aguent[ou] por vontade dos deuses" (Od. XIV, 196198). Esse momento do reencontro prioritário entre o rei e seu humilde porqueiro, para além da aliança para o intricado estratagema da vingança posterior, une os dois modelos de contadores de histórias, retornando ao texto benjaminiano: o camponês e o marinheiro. De Odisseu já conhecemos o potencial para trazer a lume histórias extraordinárias, mas "não se escuta com menos agrado aquele que, ganhando a vida honestamente, ficou na sua terra e conhece as suas histórias e tradições" (Benjamin, 1936/2018, p. 141).

Camadas geológicas de anotações, impressões e estudos dos comentadores da Odisseia sempre apontam uma peculiaridade em relação a dois epítetos atribuídos ao porqueiro na poesia homérica: o de divino e o de Condutor de Homens. Frederico Lourenço, em suas notas sobre a tradução da Odisseia, explica a dinâmica de adaptação de certos nomes ao hexâmetro dactílico, os versos homéricos por excelência. O tradutor explica que "há palavras cuja presença num determinado verso não se deve ao seu alto sentido poético, mas sim à sua pragmática utilidade métrica" (Lourenço, 2018a, p. 34). Segundo o tradutor português, portanto, Eumeu é elevado à categoria de divino e de Condutor de Homens, a despeito de sua situação social devido à forma métrica de seu nome. Todavia, à luz de Benjamin, penso que o epíteto divino que o porqueiro compartilha com seu soberano se deve ao fato de ambos pertencerem à mesma categoria poética de contadores de histórias. O camponês e o marinheiro, enfim reunidos, ambos pertencentes "à estirpe dos mestres e dos sábios" (Benjamin, 1936/2018, p. 166).

De volta ao canto XI, de acordo com Circe, Odisseu deveria encontrar Tirésias e dele obter instruções para seu retorno seguro. Do mundo dos mortos Odisseu não obterá - nem dará - nenhuma resposta objetiva. O que o canto XI da Odisseia transmite é puro material narrado, relatos amargurados de heróis mortos em guerra, lamentos de marido enganado, notícias de encontros amorosos e sexuais, pedidos de sepultamento, reencontros inimaginados. Acima de tudo, Odisseu vê. O texto homérico é insistente em apresentar o herói como uma grande testemunha ocular do que se passa no submundo. Segundo Gazis, são contabilizadas 24 ocorrências do verbo "vi" à idein, em grego, cuja raiz, não por acaso, também está presente no nome Hades, como mostrado anteriormente. "No momento em que Odisseu inicia sua viagem para o Hades, até o momento em que ele finalmente volta, ele não só é o único narrador de sua catabasis mas também a única testemunha" (Gazis, 2018, p. 17). Esses encontros e esses testemunhos que Odisseu experenciou serão fundamentais para sua tomada de consciência diante da irreversibilidade da morte (Gazis, 2018). Ora, Walter Benjamin também reconhece como fundamental para o contador de histórias exemplar o trabalho de reflexão acerca da morte. O contador de histórias, ele diz, foi buscar à morte a sua autoridade. "A morte é a sanção de tudo aquilo que o contador de histórias pode narrar" (Benjamin, 1936/2018, p. 151). O filósofo aponta que a morte se retira do olhar dos vivos, paulatinamente a partir da Idade Média. Esse apagamento alcança seu ápice na Idade Moderna.

No decorrer do século XIX, a sociedade burguesa operou, com as suas instituições higiênicas e sociais, privadas e públicas, um efeito secundário que talvez tenha correspondido à sua finalidade última e inconsciente: dar às pessoas a possibilidade de se furtarem ao confronto com os que morrem. (Benjamin, 1936/2018, pp. 150-151)

De acordo com Gazis, ver a cara da morte com seus olhos mortais, falar com os mortos falecidos (um pleonasmo aberrante para os leitores modernos, todavia de grande valor estético para os gregos) o torna, de certo modo, superior aos próprios deuses. Mais uma vez o rei de Ítaca sagra-se como o grande narrador na medida em que ele supera os próprios deuses, indo à região interdita a deuses e homens. Durante todo o percurso da ïlîada, um número impressionante de almas foi enviado ao Hades, porém de lá nada sabemos, já que a Musa, ela também uma deusa, não tem poder de ver, e, por consequência, de narrar o submundo. Há um grande silêncio sobre as histórias e dores desses grandes guerreiros mortos na guerra de Troia, as quais Odisseu irá resgatar no canto XI da Odisseia.

Os três primeiros encontros de Odisseu com os mortos no Hades oferecem ao herói a chance de encarar a morte por três ângulos temporais distintos: a morte imediata do recém-falecido companheiro de errâncias Elpenor, acidentado no canto x, a quem o rei promete ritos fúnebres e sepultamento tão logo retorne ao mundo dos vivos; a sua própria morte futura, profetizada por Tirésias, que lhe anunciará uma morte uma vez "vencido pela opulenta velhice" (Od. XI, 136); e, finalmente, a morte passada de sua mãe Anticleia, a quem terá a chance de prantear "com frígido lamento" (Od. XI, 212). Além disso, os três encontros com a morte fornecem ao herói informações preciosas: Elpenor diz que ele voltará à ilha de Circe, assegurando, assim, a volta de Odisseu ao mundo dos vivos; Tirésias lhe fala da fúria de Poseidon, dá-lhe instruções sobre a necessidade de se evitar comer o gado do Sol, para que lhe seja assegurado o retorno, reforça, ainda, que a vingança contra os pretendentes realizar-se-á exitosamente. Por fim, Anticleia lhe dá notícias do lar - do filho Telêmaco, da esposa Penélope e do pai Laertes. É no Hades e não no mundo dos vivos e, sobretudo, não pelo engenho de um deus que Odisseu adquire um conhecimento fundamental para o restante de sua jornada rumo a Ítaca. A partir dessa lógica, inclusive, entende-se a razão pela qual Odisseu não cede diante da oferta irresistível de imortalidade e juventude que lhe oferece a ninfa Calipso. Àquela altura, Odisseu já se certificara de seu retorno junto aos seus, já era conhecedor do seu destino e de sua morte.

A perspectiva heroica da catabasis adquire com essa conversa entre Benjamin e Gazis outra roupagem, ao evidenciar as veias abertas do universo poético que se tornam possíveis num território sem deuses. O encontro e a conversa de Odisseu com homens e mulheres já falecidos recuperam as tradições épicas que foram enterradas junto com esses personagens que falam ao longo do canto XI. Se o Hades é inacessível aos deuses, o Sol não lança seus raios, as Musas também são destituídas do canto. Homero, contudo, não deixa sequer um espaço privado de canto e poesia em seu épico. Essas histórias do Hades precisam ser transmitidas. Sísifo, Títio e Tántalo são ali tanto os pecadores sentenciados a castigos eternos quanto homens sofredores de grandes tormentos, são vistos por Odisseu em sua condição humana mais radical, sem um deus a censurar-lhe o compadecimento. Odisseu é o contador de histórias sem Musa que o assista, falando aos mortos, que, por sua vez também desassistidos por ela, narram suas próprias memórias com dores e lamentos. "Enquanto as Musas Olímpicas são imortais e para sempre 'presentes' (Il., 2, 284-6), o Hades como o armazém das reminiscências humanas sugere um passado que é iluminado não pelo insight divino, mas pelo lamento e sofrimento humanos" (Gazis, 2018, p. 94). É importante marcar que a tradução do raciocínio do autor guarda a palavra insight pelo duplo sentido que nela opera, tanto o de clareza e estalo quanto o da ideia de visão - sight -, muito importante para o raciocínio do testemunho ocular de Odisseu no submundo estabelecido por Gazis.

Apenas Odisseu é capaz de não desviar o olhar dos mortos, como preconiza Benjamin. Portanto, só ele pode trazer inteligência do reino dos mortos. Por isso Circe o escolhe, porque o herói recusa categoricamente unir-se às deusas. Retomando a epígrafe deste texto, a resposta está além dos deuses. A resposta está salvaguardada do olhar divino e das convenções sociais do herói grego. Despido desses artifícios castradores, é no invisível reino dos mortos que Odisseu vive a aposta máxima de sua humanidade e onde adquire sabedoria e força para voltar ao espaço visível e regido pelos deuses, derrotar seus inimigos, evitar enfurecer um deus, retomar seu palácio, reencontrar a família há muito deixada em nome de uma estúpida guerra e, sobretudo, contar histórias, contá-las e recontá-las, trabalhando incessantemente "a matéria-prima das experiências - as alheias e as próprias" (Benjamin, 1936/2018, p. 161), para o deleite de sua comunidade, servindo ainda de biblioteca viva a outros contadores de histórias, quer eles estejam a carpir o terreno acidentado de Ítaca, quer seja o hóspede visitante, que, após encontrar acolhida, comida e teto, "prossegue caminho, mais sabedor" (Od. XII, 188).

 

Referências

Benjamin, W. (2018). O contador de histórias: reflexões sobre a obra de Nikolai Leskov. In W. Benjamin, Linguagem, tradução, literatura (J. Barrento, Trad.). Autêntica. (Trabalho original publicado em 1936)        [ Links ]

Gazis, G. A. (2018). Homer and the poetics of Hades. Oxford Press University.         [ Links ]

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Homero. (2018b). Odisseia (T. Vieira, Trad.). Editora 34.         [ Links ]

Homero. (2019). Ilíada (F. Lourenço, Trad.). Quetzal.         [ Links ] Homero. (2020). Ilíada (T. Vieira, Trad.). Editora 34.         [ Links ] Kirchhoff, A. (1879). Die homerische Odyssee. Hertz.         [ Links ]

Lourenço, F. (2018a). O funcionamento do verso homérico. In Homero, Odisseia (F. Lourenço, Trad., pp. 31-42). Quetzal.         [ Links ]

Lourenço, F. (2018b). Introdução. In Homero, Odisseia (F. Lourenço, Trad., pp. 13-30). Quetzal.         [ Links ]

Page D. L. (1955). The Homeric 'Odyssey'. Clarendon Press.         [ Links ]

Pessoa, F. (2016). Obra completa de Ricardo Reis (J. Pizarro & J. Uribe, Eds.). Tinta da China.         [ Links ]

Wilamowitz-Moellendorff, U. (1884). Homerische Unterschungen. Weidmann.         [ Links ]

 

 

 

1 Este texto ficou conhecido no Brasil com o título de "O narrador: reflexões sobre a obra de Nikolai Leskov", na antiga edição da Brasiliense. João Barrento opta pelo termo o contador de histórias em sua nova tradução de 2018, que, segundo ele, é mais preciso com o argumento central do artigo.
2 De acordo com o índice de nomes estabelecido por Donato Loscalzo, publicado na edição brasileira traduzida por Trajano Vieira, na Ilíada há 43 ocorrências do nome Hades. Com a exceção de sete ocorrências (V, 395, 845; VIII, 368; IX, 158, 569; e XV, 188, 191), o nome Hades representa o submundo. O mesmo procedimento é observado na Odisseia, onde o Hades possui 35 ocorrências, das quais apenas duas (X, 534; XI, 47) fazem menção ao deus. Para maiores detalhes sobre a invisibilidade do Hades na Ilíada, conferir o capítulo 1 do texto de Gazis: "Hades in the Iliad".

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