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Print version ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.71 São Paulo Jan./June 2021

 

OUTRAS VIAGENS

 

Trajetória do "vir a ser" psicanalista um paralelo1

 

The trajectory of becoming an analyst: a parallel

 

 

Ana Maria Andrade de Azevedo

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / amaaz@osite.com.br

 

 


RESUMO

Tentando aproximar alguns modelos oferecidos pela mitologia, modelos estes que apontam para um constante desejo presente entre nós seres humanos, de superar as dificuldades e a dor inerentes a nossa condição, a autora procura estabelecer paralelos e aproximações que apontam para o intenso conflito entre aspectos onipotentes e arrogantes frente às limitações e a constatação da realidade. Dentro das sagas míticas que chegaram até nós, a Odisseia, que relata a trajetória de Ulisses em seu retorno à Ítaca é escolhida para ser considerada mais detalhadamente, pois seu herói, Ulisses, encarna tanto o desejo de uma condição mágica, que liberte-o de seus limites, como expressa a condição de homem racional que não pode deixar-se levar por seus desejos. As vicissitudes vividas por esse personagens possibilitam uma possível aproximação ao processo de conhecimento e de busca de verdade presente, no ser humano desde o início da vida. A autora acredita e propõe que é possível estabelecer uma aproximação entre a Psicanálise, naquilo que esta propõe como busca de conhecimento e a trajetória de Ulisses na Odisseia, o que justificou a apresentação deste texto na abertura dos trabalhos científicos do Instituto de Psicanálise da SBPSP.

Palavras-chave: treinamento, desejo, busca para o conhecimento, mitologia


ABSTRACT

In an attempt to approximate some models offered by mythology - models that point to a constant desire of overcoming the difficulties and the pain inherent to our condition as human beings - the author intends to establish parallels and correspondences that aim at the intense conflict between omnipotent and arrogant aspects confronted to the limitations and the acknowledgement of reality. Amongst the mythical sagas that survived the ruins time, the Odyssey - that recounts Ulysses's return to Ithaca - is chosen for deeper consideration, since its hero incarnates both the desire for a magical condition (liberating him from his limits) and the expression of the rational men's condition of not letting himself be carried away by his desires. The vicissitudes lived by this character suggest a possible approximation to the process of knowledge and truth seeking, present in human beings since the beginning of life. The author believes and proposes that it is possible to establish parallels between Psychoanalysis, insofar as it understands the search for knowledge, and Ulysses's trajectory in the Odyssey, justifying the presentation of this paper in the SBPSP's Institute of Psychoanalysis.

Keywords: training, desire, search for knowledge, mythology


 

 

Mas vós com laços estreitíssimos deveis amarrar-me, para que eu fique seguro, de pé no mastro do navio; para isso as cordas me prenderão. E se eu vos suplicar, se vos ordenar soltar-me, com nós mais numerosos, apertai-me.

(Odisseia, canto XII)

 

I

No fantástico conjunto dos mitos helénicos encontramos com frequência a referência a uma busca de conhecimento, ou melhor dizendo, uma busca de verdade, que pudesse libertar os homens de sua condição humana, elevando-os à condição de deuses.

Quando, por exemplo, Orfeu desce aos infernos atrás de sua amada Eurídice, para libertá-la, apesar de ter êxito em sua tarefa, fracassa, desdenhando a proibição de não vê-la enquanto caminham, acabando por perdê-la, esquecendo-se de como deveria agir, deixando-se levar pela paixão.

Mais aventurado parece ter sido Perseu, quando ao enfrentar e vencer o monstro que estava prestes a devorar a bela Andrômeda, consegue, desfazendo as cadeias que a prendiam, chegar ao reino de Cefeu, onde a desposa.

Mais infeliz, buscando da mesma forma ultrapassar os limites humanos, vemos Prometeu, arriscando-se a ir em busca do fogo dos deuses, fonte de todo conhecimento, sucumbir ao castigo de Júpiter que o acorrenta no alto de um rochedo, onde uma águia virá satisfazer-se com seu fígado, até a eternidade.

Nesta escalada de sucessos e insucessos, a Odisseia de Homero pode ser incluída, entendendo-se como o tema principal desta saga, a luta entre o humano e o sagrado, que de certa forma conduz ao triunfo do humano sobre o mítico. Poderíamos também pensá-la como uma história da "alma", encarnada no humano, exilada, buscando encontrar um caminho por meio do personagem principal Ulisses. Sua longa viagem pelos mares, figura este exílio da alma no país material, pois o mar representa o mundo da matéria. Mas o mar é também símbolo de fecundidade, de movimento e de mudanças.

Em toda a Odisseia, vemos Ulisses tentando ir em busca dos segredos da natureza, mas também em busca do ser homem, que está a procura de uma morada para a alma humana. Ulisses o inteligente, Ulisses o sensível, Ulisses o astuto, Ulisses o corajoso.

Ulisses não é um ser totalmente racional, possuidor de todo conhecimento, como pretendia talvez vir a ser. Representando o humano, ou quem sabe toda a humanidade, deseja intensamente, mas sabe que não pode ter tudo, não pode ser tudo. No entanto, luta, demonstra tenacidade e astúcia, travando uma luta para a sua sobrevivência no mundo. Em sua viagem Ulisses defronta-se com inúmeros desafios, obstáculos. O episódio das sereias é um deles. Ulisses sabe que não pode desafiar o poder das sereias diretamente: é impossível ouvir tal canto sem sucumbir.

Em meio a sua viagem, na volta de Troia a Ítaca, defrontando-se com as sereias, entoando seu maravilhoso canto e sentindo a enorme fragilidade do humano frente ao canto sedutor destas, tampa os ouvidos de seus colegas marinheiros com cera, para que suportem a tentação sem se entregarem a sua beleza, propondo-se ele, a escutá-las desde que seguro bem amarrado ao mastro do navio.

Sabe que não pode se deixar levar pela tentação, pelo prazer e encanto que o canto das sereias pode provocar, mas assim mesmo quer conhecer, quer escutá-las. É verdade que precisa amarrar-se ao mastro, mas sua natureza astuciosa e tenaz, seu desejo de aventurar-se, fala mais alto que o possível temor que poderia acometê-lo. Deixar de escutá-las deixar de ter a experiência, parece-lhe pior que correr o risco de sucumbir.

E então, Ulisses passa ao lado das sereias, amarrado, porém ciente que embora simbolicamente estas possam ser vistas como um modelo de prazer e encanto, representam também a perdição. Atraem, seduzem, cativam, transformando àqueles que se entregam ao seu canto, em passivos contempladores e ouvintes, tomados por uma inércia sem fim. Encontramos situações semelhantes mais tarde na obra de Goethe, onde Mefistófeles irá oferecer à Fausto a vida eterna, ou como conta a Bíblia, a sedução da serpente oferecendo a Eva, o fruto proibido, prometendo-lhe o conhecimento pleno.

Ulisses sentindo-se desafiado, mais do que nunca precisa escutar as sereias, não apenas atraído pela doçura de seus cantos, mas também pela variedade de suas vozes. Quer descobrir o segredo, saber como as sereias conseguem essa façanha, como são capazes de dominar o mais forte dentre os homens. (Para muitos o conhecimento das sereias corresponde ao conhecimento intuitivo).

Estas prometem plenitude, imortalidade e felicidade, mas ameaçam a autonomia do sujeito, aprisionando àqueles que se entregarem a seus encantos, assim como, Mefistófeles, prometendo a imortalidade a Fausto, torna-o seu súdito, assim como, Adão e Eva, movidos pelo desejo de se igualarem a Deus, são expulsos do paraíso.

Ulisses, como que falando consigo mesmo, avisa a seus companheiros; "todos devem olhar para frente, atentos, concentrados, ignorando o que se passa ao lado."

Protege-os ao mesmo tempo em que propõe a si mesmo, entregar-se a esse risco, aventurar- se nessa viagem, que é uma viagem pela sua própria subjetividade, sem se deixar invadir e sem ser tomado pelo poder do canto, pelo poder de suas emoções e desejos.

Ulisses é, na verdade, um estrangeiro a si mesmo em busca de respostas, de conhecimento, mas principalmente em busca de uma morada para sua alma, em busca de sua pátria, de sua real condição de ser humano.

Escutar a beleza do canto, sentir o desejo e o prazer que este produz, sem, no entanto, abandonar sua rota, nem sua busca, pode permitir-lhe conhecer e ter acesso a experiências nunca dantes vivenciadas.

Ignorar o perigo ensurdecer-se, poderia ser mais garantido, porém sem dúvida a experiência de contato com a beleza e com o encanto, seria anulada e ficaria inacessível, provavelmente para sempre.

A viagem de Ulisses de volta a Ítaca poderia ser talvez vista, como representando a tentativa do ser humano de efetuar a passagem da natureza à cultura, do instintivo e do selvagem, ao âmbito do social, da satisfação pulsional ao desenvolvimento do psíquico, pois trata o tempo todo dos desafios impostos pelo desejo, pela instintividade e pela ânsia de prazer em cada um de nós.

Ao final dessa viagem, onde tantas ameaças tantos riscos e perigos haviam sido enfrentados, Ulisses em lugar de sentir-se exitoso e satisfeito, percebe-se melancólico. Não se havia deixado desviar neste trajeto e era verdade que vinha mantendo o caminho proposto, conquistando assim seus objetivos. Para tal havia sido necessário aguentar dificuldades, abrir mão de muitas expectativas e aceitar por vezes a derrota e a perda.

Apesar de melancólico, sentia que havia finalmente conquistado sua autonomia. Esta, assim como a liberdade, sempre tem um custo, às vezes bastante alto. Na verdade, nessa viagem ao interior de si mesmo, em busca de sua verdadeira morada, Ulisses não havia vivenciado apenas satisfação e prazer. Muitas vezes tinha sido também necessário renunciar a seus desejos, a suas fantasias, desenvolvendo com esforço, a tolerância à dor e a persistência que eram exigidas.

Certamente estas renúncias, apesar de dolorosas, puderam contribuir para a conquista de sua autonomia e liberdade.

Voltar a Ítaca, depois de tanto tempo, havia soado inicialmente, como a possibilidade de encontrar um remédio para curá-lo de todos os seus males, preenchendo o vazio, a ausência de repouso e aplacando seu desejo de busca e de encontro consigo mesmo. Ao chegar, no entanto, defronta-se a constatação de que encontrar uma morada para sua alma, não equivalia a uma "cura" de todos seus males, mas sim ao encontro consigo mesmo, com sua melancolia.

Contando com a sabedoria, que lhe havia permitido anteriormente distinguir entre o verdadeiro e o falso, Ulisses havia escolhido, não apenas voltar para Ítaca, mas também para sua mulher, Penélope, afastando-se assim da ninfa Calipso, sua amada e companheira durante sete, dos nove anos que já durava sua viagem.

Esse me parece ser um aspecto muito interessante e curioso do personagem Ulisses. Porque Ulisses, tão desejoso de aventuras, de conhecimentos e conquistas, irá preferir sua esposa Penélope, uma simples mortal, à Calipso, a bela, divina e imortal ninfa?

Calipso dotada de uma beleza perfeita é filha de Atlas, representante da astrologia, da astronomia, enfim de toda mecânica celestial, Calipso encarna a ciência, a permanência, a regularidade e o controle dos movimentos. Tudo isso lhe é prometido, no entanto Ulisses sente falta de Penélope, aquela que encarna a verdadeira sabedoria de vida.

E por quê? Por que abrir mão de uma promessa de imortalidade, aceitando seguir o curso de sua vida, tendo que defrontar-se inevitavelmente com sua condição humana? Tecendo sua tapeçaria, Penélope constrói uma trama, que podería-mos dizer é uma cadeia entrelaçada de fios extremamente sólidos e consistentes. Os gregos sempre aproximaram o trabalho de tecer, ao trabalho do pensamento. Tecer as ideias costurá-las, é uma metáfora comum, até os dias de hoje.

Deixando Calipso para voltar a Penélope, Ulisses abandona o conhecimento exato, seu desejo de imortalidade e controle, pela filosofia e pelo pensamento, separa-se dos entraves presentes em sua sensoralidade, renuncia ao estudo do mundo externo para voltar-se para o interno, para expandir sua subjetividade. É um movimento em busca do encontro com seu próprio ser, em busca de verdade, em lugar de grandiosidade.

Esse é um dos aspectos que diferencia e distingue Ulisses, dos demais heróis helênicos. Há uma busca de conhecimento, um desejo de verdade que perpassa toda Odisseia. Porém o humano nunca é abandonado, o conhecimento, se alcançado, possibilitará o encontro da alma com sua morada.

Quando Ulisses chega a Ítaca, no entanto, se dá conta que esta não é mais a mesma, pois na verdade ele, Ulisses havia mudado e Penélope também. É um novo Ulisses que encontra outra Penélope. Um novo leito tem que ser construído, para abrigar um novo casamento.

O tempo para Homero é o tempo da imaginação. Ulisses quando volta a Ítaca, está mais forte, mais bonito que nunca e Penélope continua sendo a "sempre bela Penélope". Trata-se de um tempo interno, de um tempo psíquico, que é na verdade o que determina o que é visível.

Inserido nesse tempo, a condição humana toma lugar, sendo então possível perceber que o deslocamento no espaço "a viagem", produzia a ilusão de mudanças, mas que de fato é no "tempo interno e na experiência vivenciada" que tudo muda.

A "consciência de existir" possibilitada pela inserção no tempo e na experiência, permite a partir daí, momentos privilegiados onde o ser humano pode transcender o quotidiano. É o milagre do homem.

A Odisseia, em contraste com a Ilíada, que é dirigida aos feitos passados, marca o desejo de sair dos limites do mundo conhecido, de partir para outro universo, ainda desconhecido e apenas imaginado. A estadia de Ulisses na ilha de Calipso é uma chamada para uma vida intensa, aventureira longe de todo viver costumeiro, no entanto Ulisses abandona esse sonho, por uma felicidade que corresponde ao humano.

É possível considerar que em sua trajetória está muito presente uma inquietação da alma e uma necessidade de escolher entre o ideal e o real, correspondendo este, o real, à possibilidade de desfrutar da felicidade dos mortais. Abandonar o Ideal, no entanto, nunca deixa de ser uma dor, uma dor infligida à onipotência e ao controle narcísico.

Ao final da viagem turbulenta e imprevisível de Ulisses, é possível encontrar uma referência à importância de uma reconciliação do homem consigo mesmo e da natureza com a história. As etapas vencidas na viagem de volta a Ítaca são na verdade, àquelas realizadas pela humanidade, partindo do mito para alcançar a conquista interna do até então indomável no homem, transformando-o em ser pensante.

 

II

Propus no título desta apresentação a ideia de um paralelo e para tentar essa aproximação apresentei sob forma de uma "alegoria", meus comentários sobre alguns trechos da Odisseia de Homero. A proposta pode ser vista como pretensiosa, especialmente em se considerando que não sou uma estudiosa da literatura grega. Fiz uso de dois episódios da viagem de Ulisses de volta a Ítaca, considerando-os como modelos, que me permitiriam falar metaforicamente sobre o tema escolhido: A trajetória de uma análise.

Concordando com o colega, Jean-Claude Rolland, autor que muito aprecio e quem faz vários paralelos entre a psicanálise e a literatura, eu o cito:

O procedimento narrativo da Odisseia, explora algo que pode vir a ser familiar aos analistas. Muitos de nossos analisandos não passam de estrangeiros a eles mesmos que lançam mão na relação analítica, de relatos e narrativas, que muitas vezes podem produzir a sensação de mera repetição de acontecimentos, um maneirismo ou uma forma de não estarem presentes ali naquele momento. É provavelmente o "nada" que os ameaça, sendo o relato o que cria alguma esperança, um recurso para que o sujeito se aposse do que lhe é estranho. (1999, pp. 102-103)

Acredito que podemos pensar que para os analisandos, o relato cria alguma esperança. A esperança não só de ser ouvido, mas também de poder escutar a si mesmo, e vir a se apossar do que lhe é estranho. Uma narrativa escutada como uma "ficção," pelo analista, poderá apontar para a construção de figurações e fantasias, que irão corresponder à "viagem," aos feitos e aos desejos presentes não apenas naquele momento, mas durante toda a vida.

"Partir-Voltar," não é esse um modelo que propõe constantemente o setting psicanalítico? "Presença-Ausência", alternando-se a todo o momento, não aponta para a separação, para o reencontro, para experiências de perda, de abandono e também de ganho?

E, não poderíamos pensar, seja como analistas ou como analisandos, que estamos o tempo todo atraídos por um canto de sereias, ou seja, pelo desejo de um saber, que ofereça conhecimento, controle, deleite? E não necessitamos de certa disciplina para continuarmos atados a nossa prática, aguardando, escutando sem tamparmos nossos ouvidos com cera, desfrutando e sofrendo junto com o analisando daquele canto, esperando que a experiência possa vir a ser significada?

Ulisses passa por inúmeras aventuras, escolhi apenas dois trechos, simbolicamente, para inclusive tornar esta conversa possível. Encanta-me a possibilidade de considerar a análise como uma viagem, como diz Homero uma viagem em direção a subjetividade do analisando, que é também na verdade uma viagem à subjetividade do analista, que necessita estar ao lado do herói, dispondo-se a travar junto a ele, tantos combates e enfrentar tantos perigos quanto forem necessários. Ulisses foi ajudado pelos deuses, Atena, Zeus, nós analistas só podemos ser ajudados pela própria psicanálise, pela experiência vivida e pelo conhecimento partilhado com o analisando.

E Calipso, a ninfa exuberante e poderosa? Como incluir nessa viagem de descoberta de si mesmo esse personagem? Calipso capaz de controlar todo o universo aprisiona Ulisses em sua gruta e o mantém ao seu lado por sete anos, prometendo-lhe prazeres e poderes! Que outra coisa senão a "paixão" consegue tal façanha?

Não seria este um ingrediente fundamental, a paixão, em qualquer procura, em qualquer conquista? O que dizer da paixão, pensando em psicanálise e não na mitologia?

Na aula inaugural do ano passado (2009), o querido colega, Odilon de Mello Franco, fez referência a esse tema. Diz ele:

Por paixão quero salientar um grau forte de envolvimento emocional da pessoa nos vínculos que estabelece... Sem libido não podemos compreender nem criar. E sem imaginação criativa nos tornamos meros repetidores de ideias sem podermos ressignificá-las dentro de nós. (2008, p. 251)

Que vínculo pode ser mais significativo que a transferência? A paixão nem sempre é amorosa, assim como a transferência também não o é. No entanto é comum identificar amor e paixão, a ponto de confundir essas noções, excluindo completamente o ódio do campo das paixões.

A paixão insiste em evocar por meio do visual, da imagem e das lembranças, o objeto, a meta ou o objetivo desejado. No entanto o objeto ou o objetivo final de uma paixão nunca é alcançado, e talvez por isso mesmo, a paixão seja tão persistente e intensa, e frequentemente provoque um estado de sofrimento.

Cesar e Sara Botella, fazem uso de uma expressão que me parece muito esclarecedora: "O objeto perdido da satisfação alucinatória", continua durante toda a viagem do ser humano pela vida, exercendo seu poder, ativando as paixões, alimentando a busca de um estado, já perdido, porem, não abandonado de fato.

Mas se tantas vezes e com tanta veemência escutamos de nossos mestres, os alertas e avisos, quanto ao perigo do desejo em psicanálise, a necessidade de suspender e de eliminar, todo e qualquer desejo sobre o analisando ou sobre o processo analítico! Como pensar a psicanálise como próxima a paixão? Como tendo que apoiar-se nela para alcançar uma verdadeira ideia da dor e do prazer, que permeiam a existência humana?

Não é por outro lado também verdade que a criatividade e a fertilidade, precisam do apaixonamento, na maior parte das vezes, para acontecerem? E como disse o colega Odilon, sem essa força nos limitamos a ser repetidores, imitadores de ideias, desprovidos de originalidade?

Falamos aqui, principalmente, de uma paixão pelo conhecimento, aliás, presente em toda a mitologia, sendo que aqui privilegiamos a Odisseia e a viagem de Ulisses, paixão que possibilita tanto ao analista como ao analisando, ir em

busca daquilo que ainda não surgiu ou que está perdido e esquecido na história do sujeito. Paixão por um objeto perdido, um ideal, por um estado talvez apenas alucinado, mas assim mesmo, almejado.

Ulisses se torna melancólico, ao finalmente chegar a Ítaca, talvez por ter que renunciar a grande parte de seus desejos, ao adotar sua condição real, ao abrir mão de parte de seus prazeres e fantasias. Como a todos nós, a mudança assusta a Ulisses. Ao final da viagem ao interior de si mesmo, quase não se reconhece, conhecendo-se agora de verdade.

A experiência do sinistro (unheimlich), tratada por Freud, ou seja, daquilo que nos é o mais familiar e ao mesmo tempo o mais desconhecido, poderia ser pensada aqui.

O canto das sereias era o passado e a tentação de perder-se nele. A viagem ao passado é uma viagem em sentido inverso ao da morte, é uma busca da promessa de felicidade vislumbrada, por assim dizer, na infância, onde e quando a reserva de energia ainda não esta comprometida pelos anos que estão por vir. (Matos, 1988, p. 155)

 

Referências

Botella, C. & Botella, S. (2001). Figurabilidad psíquica. Amorrurtu.         [ Links ]

Franco Filho, O.M. (2008). O principal instrumento de trabalho do analista. Jornal de Psicanálise, 41(74),249-256.         [ Links ]

Freud, S. (1971). The uncanny. In S. Freud, Collected Papers (Vol. 4). Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1919)        [ Links ]

Buffière, F. (1956). Les mythes dHomére. Les Belles Lettres.         [ Links ]

Matos, O. (1988). A melancolia de Ulisses; a dialética do iluminismo e o canto das sereias. In Os sentidos da paixão. Funarte, Companhia das Letras.         [ Links ]

Rolland, J.C. (1999). Curar do mal do amor. Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

1 Aula inaugural na abertura dos Trabalhos Científicos do Instituto de Psicanálise da SBPSP, 2010.

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